Como é que tu fazes para teres tempo de arrumar as coisas? perguntava Ana (nome fictício) ao seu colega Manuel (nome fictício). Ligo a televisão e coloco-lhe os desenhos animados preferidos! disse-lhe sorrindo. E não tens medo? continuava Ana. Medo? retorquiu Manuel. De quê? continuou. Sei lá, tenho ouvido tanta coisa sobre a exposição aos ecrãs. São as adições, tornarem-se agressivos, ficarem menos inteligentes e agora também o autismo! conclui. Manuel estava incrédulo. Autismo!? Autismo!? Tu leste bem!? perguntava-lhe este.

Foi publicado recentemente um estudo, Association Between Screen Time Exposure in Children at 1 Year of Age and Autism Spectrum Disorder at 3 Years of Age - The Japan Environment and Children’s Study na conhecida revista JAMA Pediatrics. Não demorou muito para a internet inflamar com artigos em diferentes línguas sobre o facto.

O tempo de exposição aos ecrãs com idade de um ano está intimamente relacionado com o autismo aos três anos de idade? Era a questão de investigação colocada no estudo. Para tal foram questionar cerca de 84000 mães acerca do comportamento de utilização dos ecrãs dos seus filhos. Concluíram que das respostas obtidas, nas crianças do sexo masculino mas não do sexo feminino, aquelas que com 1 ano de idade tinham mais tempo de visualização de ecrãs, apresentavam uma maior probabilidade de ter autismo aos três anos de idade.

A equipa de investigação pediu às mães para avaliarem através de uma escala de Likert o quanto os filhos com 1 ano de idade tinham de uso de ecrã num registo diário. E faziam o mesmo quando eles fizeram 3 anos de idade. Sendo que na altura também perguntaram àquelas mães se os filhos tinham ou não um diagnóstico de autismo. Tendo para o efeito aplicado um questionário de rastreio para validar a afirmação das mães face ao diagnóstico reportado dos seus filhos.

Desinformação causa sobressalto desnecessário

Limiting screen time in infants may decrease risk of autism spectrum disorder, study finds (Limitar o tempo de ecrã em crianças pode reduzir o risco de perturbação do espectro do autismo, encontra o estudo), pode ler-se no New York Post.

Estas e outras frases semelhantes podem ser lidas a partir da publicação deste mesmo estudo, levando a que inúmeros pais tenham passado a questionar acerca da veracidade da situação. Sendo que no campo do Autismo tem existido, e continua a existir, toda uma gama variada de desinformações que têm lançado esta comunidade num sobressalto desnecessário e num prejuízo incalculável ao longo destes anos.

Apesar de haver alguns, ainda que muito poucos, estudos científicos credíveis e que têm procurado caracterizar o comportamento de uso dos ecrãs e dos videojogos nas pessoas autistas e que afirmam que parece existir um maior número de pessoas autistas comparativamente às não autistas a usar os ecrãs e os videojogos, isso não é o mesmo do que afirmar que o uso dos ecrãs com um ano de idade está relacionado com o diagnóstico de autismo aos três anos de idade.

No entanto, parece-nos importante poder tentar perceber quais as características presentes no espectro do autismo e no comportamento parental dos pais com crianças com este mesmo diagnóstico, que podem levar a este número aparentemente aumentado no que diz respeito ao uso dos ecrãs e dos videojogos.

Tal como se verifica que algumas pessoas, normalmente jovens, com um diagnóstico de ansiedade e/ou depressão, apresentam maior probabilidade de usarem ecrãs e videojogos, aquilo que parece existir é devido a boa parte destas suas características e perfil de funcionamento, há um maior evitamento no contacto social e nas interacções, mas também uma percepção mais baixa das suas competências.

Estes e outros fatores parecem levar a uma maior aproximação dos ecrãs e dos videojogos. Seja porque assim parecem conseguir manter o contato social com os outros, ainda que num ambiente virtual, mas também porque retiram da utilização, em boa parte dos videojogos, uma sensação de competência, sensação essa que têm dificuldade em sentir no mundo real.

Já para não falar das próprias dificuldades sociais a que muitos destes jovens acabam por estar sujeitos, nomeadamente enquanto vítimas de bullying e de incompreensão ou falta de aceitação por parte dos seus pares. Algo que inclusive é bastante comum de ocorrer no espectro do autismo.

A importância de melhor conhecer os benefícios e os riscos associados à utilização dos ecrãs e dos videojogos

Contudo, parece-nos igualmente importante, poder pensar neste tema e aproveitar para sublinhar a importância de melhor conhecer os benefícios e os riscos associados à utilização dos ecrãs e dos videojogos. Este tema torna-se especialmente relevante para todos os pais, ou seja, para os pais de crianças com um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo, mas também para pais com filhos sem qualquer tipo de diagnóstico.

E no caso específico do espectro do autismo, é importante perceber que algumas características especificas do diagnóstico poderão capacitar, mas também vir a causar maiores dificuldades ao longo do tempo.

Conforme referido anteriormente, uma das questões que podem aproximar os utilizadores dos videojogos é a noção de competência. Ou seja, o jogador pode ir procurar no jogo precisamente essa sua necessidade de competência, atendendo a que pode não a estar a obter em outras áreas vitais da sua vida, designadamente as áreas pessoal, social, familiar e/ou académica.

Como tal, será importante poder desde o início procurar junto da criança, e depois do jovem, acompanhar esta sua evolução em termos da sua noção de competência e auto-eficácia nas várias áreas da sua vida e, em conjunto com ele, poder ter experiências de vida que sejam validantes deste aspeto.

Se pensarmos nas dificuldades que as crianças e jovens autistas têm na escola, seja devido a algumas das suas dificuldades de aprendizagem, mas também todas as situações que vão ocorrendo em termos das relações interpessoais, podemos antever que será necessário poder intervir neste campo desde sempre. Correndo o risco de que a criança e jovem autista vá procurar uma fonte de competência bastante rápida e recompensadora - os videojogos.

E se sabemos que as crianças e jovens autistas possam ter uma maior preferência por um espaço de conforto e conhecido, e que esse lugar normalmente é a sua casa, também se sabe que se houver desde cedo um habituar a criança a poder fazer todo um conjunto de aprendizagens em contextos diversificados, isso irá certamente ajudar a construir uma ideia de maior heterogeneidade, associado a conforto e conhecido.

Os diversos estudos realizados na área da Perturbação de Adição aos Videojogos pela Internet (Internet Gaming Disorder) têm demonstrado que a percentagem de utilizadores com características que se enquadram dentro deste diagnóstico é mínima. Por exemplo, em Portugal e na Europa estamos a falar de percentagens entre 0,9 e 1,3% da população jogadora.

É verdade que existe uma percentagem de 5 a 10% dos jogadores que apresenta características de risco e que sem o devido acompanhamento poderá vir a desenvolver uma situação clínica mais complexa. Além do mais, também é sabido que no grupo de jogadores com um diagnóstico de Internet Gaming Disorder, há uma forte prevalência de outros diagnósticos, nomeadamente de Perturbação de Ansiedade e do Humor.

Além de poder ser encontrado determinado conjunto de casos com diagnóstico de Perturbação do Neurodesenvolvimento, nomeadamente Perturbação do Espectro do Autismo e Perturbação de Hiperactividade e Défice de Atenção.

Contudo, não é real ou sequer cientificamente comprovado que exista uma relação direta e muito menos causal entre o autismo e a utilização dos videojogos.

Texto: Pedro Rodrigues, Psicólogo Clínico do PIN