Não deixará de ser consensual que o cozinheiro também tem o seu quê de artista. Também o sabemos um rebelde – sem pegar no alfarrábio histórico da gastronomia, recordemos o contemporâneo Marco Pierre White -, disruptivo no seu tempo e revolucionário - outro exemplo, o catalão Ferran Adrià. Serve o presente preâmbulo para fazer a ponte entre um movimento artístico, nascido no seio da velhinha Europa, da Primeira Guerra Mundial, e o impulso de descontinuidade, de rutura que lhe foi inerente. O movimento, o Dadaísmo; o local, Zurique, na Suíça; o ano, 1916; o lema “A destruição também é criação”. O Dadaísmo vingou, na pintura, na literatura, assim como noutras frentes, atravessou o Atlântico, estabeleceu-se nos Estados Unidos da América e repercutiu no tempo.

Porquê Dadaísmo? Crê-se que a palavra verta do francês Dada, ou seja, “cavalinho de pau”. Termo capturado aleatoriamente num dicionário pelos pais desta corrente artística.

Dadaísmo! Importa-se de repetir? Sim, é arte e chegou ao Palácio pela mão chefe de cozinha Manuel Bóia
Manuel Bóia. créditos: Luís Ferraz / Palácio Chiado

Aqui chegados, foquemo-nos na Lisboa de 2019, para encontrar na capital de traça pombalina, um chefe de cozinha empenhado em trazer para este século XXI a memória do que foi o Dadaísmo. Manuel Bóia, 37 anos, transmontano de cepa, da aldeia de Santulhão, concelho de Vimioso, tem a seu cargo a curadoria de todas as ementas do Palácio Chiado. Tarefa hercúlea, pois de seis conceitos gastronómicos se trata. Não obstante, o chefe de cozinha e uma equipa robusta com 25 cozinheiras e cozinheiros, ainda encontram na ementa nesga e oportunidade para regularmente lançarem uma ementa temática, inspirada num movimento artístico. Já o leitor terá adivinhado onde vamos desembocar. No prato, em cinco momentos, Manuel Bóia dá-nos a sua inspiração na recriação dos princípios do Dadaísmo. Para provarmos até ao final de novembro de 2019.

O SAPO Lifestyle equipou-se a rigor, de bata e toca, para entrar na cozinha e no mundo do homem que aos 17 anos deixou a sua terra transmontana, rumou à capital, ingressando na Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa, onde se formou no curso de cozinha e pastelaria. Manuel tinha na família um irmão que já dava cartas na cozinha, António Bóia.

São 11h00 da manhã e impera o afã na cozinha do Palácio Chiado, sem que haja atropelos, correrias e outras pressas. Há, isso sim, o labor de uma cozinha que dentro de duas horas terá de lançar para a sala dezenas de refeições. Manuel Bóia recebe-nos neste mundo de vapores, odores e onde a escala dos ingredientes utilizados não se mede em gramas, antes em quilos. Só queijo parmesão há de a cozinha consumir 7 kg num só dia.

Dadaísmo! Importa-se de repetir? Sim, é arte e chegou ao Palácio pela mão chefe de cozinha Manuel Bóia
Rolo de carpaccio de novilho. créditos: Luis Ferraz

É no espaço dedicado à preparação dos alimentos que assistimos ao empratamento deste cardápio Dadaísta. A saber, e por ordem de chegada à mesa, um “Farrobodó”, um Rolo de carpaccio de novilho, um “Seed”, uma Salada de polvo tradicional, um “Azimuth”, o mesmo é dizer um Bacalhau assado com azeite e trufa, um “Cutelo”, um Risotto de pato crocante e, a fechar, o Brownie Desfeito”, a casar com um gelado de pistáchio.

Um elenco que, se num primeiro momento nos parece formal e arrumadinho, rapidamente percebemos nas palavras de Manuel Bóia, o toque de irreverência encontrado.

“Quis quebrar algumas convenções nestes meus pratos. Temos o carpaccio, mas a carne chega à mesa num rolinho; também não é comum encontrar um molho de beterraba a acompanhar um prato de polvo. Já no bacalhau, quis elevar-lhe a fasquia e aromatizo-o com azeite de trufa. Faço-o, ainda, emparelhar com um ovo escalfado. O arroz de pato vem a casar com o risotto, o que não é comum”. Não obstante, tudo casa a preceito e com contrastes vívidos como, mais tarde, experimentaríamos à mesa.

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Salada de polvo tradicional com beterraba. créditos: Luis Ferraz

No empratamento, Manuel Bóia também quer deixar a sua assinatura disruptiva, com algumas pinceladas audazes de cor, na beterraba que é lançada com vigor sobre o prato, no ovo escalfado de gema desfazendo-se sobre as lascas de bacalhau, ou mesmo no brownie “escangalhado”, em namoro com o gelado de pistáchio.

Por agora Manuel Bóia é o artesão que nos revela, sem fazer segredo, todos os meandros de cada prato. “Esta lâmina de carne é ganso de novilho com 21 dias de maturação”, salienta o chefe de cozinha, enquanto lasca generosamente um pedaço de queijo parmesão. No prato, tempera a carne com sal, pimenta e uma golpada de azeite. Oferece a este preparo as lascas de queijo. Faz um rolo que descansa no prato, encimado por queijo, redução de balsâmico e rúcula.

É com gestos calculados, muitas vezes repetidos que o nosso anfitrião trata os seus pratos. Aqui, a mais de 400 quilómetros do seu berço transmontado, Manuel Bóia não faz tábua rasa das memórias associadas à tradição rural, como a matança do porco, a criação de vacas da raça Mirandesa, a produção do fumeiro, colheita da azeitona, a produção de azeite. Aliás, o que no momento presente traz para o prato é azeite da Trás-os-Montes.

O segundo capítulo desta ementa reserva ao polvo cozido e cortado em pedaços, um picadinho de tomate e cebola roxa, os coentros, novamente o azeite, emparelhando com o seu eterno amigo vinagre. Contudo, é de Dadaísmo que se fala, ou melhor que se come, e cabe ao chefe de cozinha introduzir, aqui, a reviravolta, com um puré de beterraba teatralmente lançado no prato.

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Risotto de pato crocante. créditos: Luis Ferraz

Sobre o percurso que o trouxe até aqui, ao comando da cozinha do Palácio Chiado, Manuel Bóia recorda-nos que “passei uns anos pelo restaurante Bica do Sapato, em Lisboa, onde estavam os chefes Fausto Airoldi e Celestino Grave. Fiz, também, parte da Seleção de Cozinha de Portugal e estive no Hotel Grand Real Villa Itália, em Cascais”. Mas seria Nova Iorque, para onde o chefe se mudaria de armas e bagagens em 2009, a grande escola de mundo para o português, “nas técnicas e no que de inovador se fazia na altura”. Na cidade norte-americana trabalhou no Westchester Country Club e ainda durante a permanência em terras do Tio Sam, Bóia participa no Campeonato do Mundo de Gastronomia. Aí, em dois momentos, arrecadou medalhas de bronze. Já de regresso a Lisboa, em 2012, o chefe junta-se à equipa do Bistro 100 Maneiras, de Ljubomir Stanisic, voltando, depois, ao Bica do Sapato. Aí fica até 2014, ano em que assume o comando da cozinha do Palácio Chiado.

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Brownie Desfeito créditos: Luis Ferraz

“Curiosamente nunca cozinhei com o meu irmão”, conta-nos Manuel Bóia enquanto vira no grelhador uma robusta posta de bacalhau. A que vai conhecer, já no prato, o casamento com um puré de batata com trufa e uns espinafres salteados em alho e azeite. Está aqui a portugalidade, embora com o toque de irreverência. “Se disser lá em casa que vai casar o bacalhau com a trufa ninguém faz a associação”, relata Bóia. Para rematar o prato, cai sobre o bacalhau um ovo escalfado de gema vertente.

Palácio Chiado

Rua do Alecrim, n.º 70, Lisboa

Contactos: tel. 210 101 184; e-mail: geral@palaciochiado.pt

Do peixe para a carne, num outro momento de derrubar palatos renitentes. Não há ´caderninho` luso de receitas onde falte o arroz de pato. Manuel Bóia quis, aqui, trazer-lhe outra dimensão. Em vez do arroz carolino, serve de amparo ao pato “a maciez do risotto. O sabor vem puxado com o refogado de chouriço e cebola e um molho demi-glace que esteve 72 horas, de ovos e lascas de carne de vaca, a apurar e a ganhar consistência”, conta-nos o chefe de cozinha enquanto verte no tacho o caldo, lhe junta uma bela noz de manteiga e fecha com o queijo parmesão. Chegado à mesa não haveria Dadaísta que lhe resistisse. Como também não se faria rogado face a um Brownie partido a eito, caindo no prato, onde encontra um coulis de frutos vermelhos. O resultado bem podia servir uma ementa Cubista. Quem sabe, não chegue daí a próxima inspiração para as ementas com arte do Palácio Chiado.