Alexandre Valentim Lourenço defende a reestruturação do sistema de saúde em Portugal, através da “autonomia completa” de hospitais e centros de saúde. Questionado sobre a falta de médicos de família, Valentim Lourenço diz que o problema poderia estar resolvido “há muito tempo” com a implementação de USF modelo C.

HealthNews (HN) – O SNS está em colapso. Há falta de recursos humanos, há problemas financeiros, a administração tem-se demonstrado incapaz de resolver os problemas e a Ordem não é chamada a cumprir o seu papel…

Alexandre Valentim Lourenço (AVL) – Pela primeira vez, ouvimos o Presidente da República, o primeiro-ministro, a ministra, a sociedade toda e todos os partidos políticos concordarem que há um problema estrutural na Saúde.

E um problema que nasce do facto de nós termos uma estrutura e um modelo de funcionamento com 50 anos. Foi feito a seguir ao 25 de abril, baseado num documento das reformas das carreiras médicas e de uma estruturação da medicina que começou no início da década de 60 com as carreiras médicas, mas que só em 1982 foi implementada. E o SNS neste momento tem 40 anos. E foi organizado, nessa altura, já com uma planificação de 10 anos antes. Ou seja, ao fim de 50 anos, a estrutura do SNS é igual à do início da década de setenta, mas a forma como se faz medicina e se trata a saúde dos portugueses é diferente assim como os diversos problemas que se colocam na atualidade.

Continuamos a trabalhar da mesma maneira, o que significa que o modo como nos organizamos nos hospitais, nas especialidades, os tratamentos que fazemos, a nossa carreira médica e a relação entre profissões estão desatualizados. Estando isto tudo desatualizado, com todos nós a trabalhar num mundo muito diferente – mas como se estivéssemos a trabalhar há 50 anos – claro que não vai funcionar corretamente.

HN – Porquê?

AVL – Primeiro, porque passámos a ter um problema de organização interna, que não é eficiente. E se não é eficiente, gastamos mais dinheiro para fazer as mesmas coisas. E daí sabermos que o dinheiro que temos para o sistema é insuficiente em todos os aspetos. Deixou de se investir. Investimento tecnológico, em equipamentos e em estruturas está quase parado. Deixámos de ter capacidade de contratar e melhorar os recursos humanos.

Já os sistemas privados continuaram a evoluir, por isso as pessoas migram para os sistemas privados. E, em terceiro, temos um subfinanciamento crónico do sistema de saúde – dizemos isto há anos; que o sistema está subfinanciado em mil milhões de euros todos os anos.

Deixámos de pagar aos profissionais, deixámos de fazer investimento. O subfinanciamento de mil milhões significa pagar o que está em dívida e continuar a melhorar, pagar melhor aos funcionários, investir em tecnologia e prestar melhor serviço às populações. É por isso que temos um subfinanciamento.

HN – E se aumentar o financiamento?

AVL – Se aumentarmos o financiamento para meios adequados, podemos resolver o problema. Mas não chega. Deitar dinheiro para cima do problema sem mudarmos a estrutura é aumentar o problema. E é o que tem acontecido.

HN – E como é que se muda a estrutura?

AVL – Nós temos de dar, primeiro, autonomia aos hospitais, aos serviços, aos centros de saúde. Autonomia completa.

HN – Mas isso já se fez.

AVL – Já se fez há 20 anos, mas agora não se faz. Eu estou a dirigir um serviço e não posso contratar a pessoa que quero. Eu nem sequer consigo contratar uma pessoa, quanto mais a pessoa que quero. Se eu preciso de uma pessoa que tenha uma capacidade técnica de que o meu serviço necessita, tenho de ter a capacidade de a poder contratar. Mas não consigo pagar o que ela merece, não lhe consigo dar as condições de trabalho para ela funcionar, nem tenho o equipamento para ela aplicar essa capacidade técnica. Tenho um serviço que tem de fazer muitas ecografias e eu, neste momento, perdi as pessoas que faziam ecografia diferenciada para as instituições privadas. Não consigo, nem formar, nem contratar outras. Não tenho autonomia. Se eu tivesse autonomia, não tinha sequer deixado sair os que tinha formado. Não há autonomia nos serviços!

HN – Um problema que nos leva às carreiras médicas….

AVL – Vamos ser muito claros: não há carreiras médicas. Acabaram com as carreiras médicas. As carreiras médicas estão legisladas, estão estruturadas há 40 anos. O problema é que se não há concursos para consultores, ou abrem de cinco em cinco anos e demoram quatro anos a resolver, se um concurso de assistente graduado sénior demora 15 anos e depois pode ser impugnado e não se resolve (temos concursos de 20 anos que não estão resolvidos), como é que eu posso dizer que as pessoas têm uma progressão? Não têm progressão. As carreiras estão escritas; teorizadas; mas, se não há dinheiro para as pagar, se elas não são eficazes, a pessoa ao fim de 20 anos está a ganhar o mesmo, nas mesmas condições.

HN – E quanto à falta de autonomia?

AVL – Não há autonomia nos serviços, não há autonomia nos hospitais. Nós ouvimos o Dr. Fernando Araújo, que foi secretário de Estado e é presidente do conselho de administração de um grande hospital, o Hospital de São João, a queixar-se disso todos os dias, publicamente, em artigos escritos, afirmando que não era normal. Estamos a falar de um Presidente do conselho de administração de um dos grandes hospitais do país; um hospital que é reconhecido como trabalhando bem. Já ele diz que não está a trabalhar bem. E o hospital dele trabalha melhor que a maior parte dos outros. Imaginemos os outros… Depois há um conjunto de pessoas que não têm coragem de dizer isso, ou têm medo de perder o emprego. Felizmente o Dr. Fernando Araújo ganhou idoneidade e uma capacidade de intervenção que não se lhe pode retirar.

HN – Quais as soluções que advoga?

AVL – Temos que criar uma nova carreira médica. Temos que ter um modelo de contratação que permita uma progressão técnica, científica, de todos os médicos ao longo dos anos. À medida que eu vou ganhando mais capacidades, e mesmo depois de ser especialista, continuo a aprender, a introduzir novas técnicas, e tenho que ser recompensado por isso.

HN – Uma das soluções poderia ser manter os concursos abertos o ano todo?

AVL – Exatamente. Se um serviço precisa de um consultor ou de um chefe de serviço, tem que abrir quando precisa, e se não tiver logo um concurso, tem que o abrir logo a seguir, e tem que durar mais tempo. Isso é essencial fazer-se.

HN – Relativamente à Ordem…

AVL – A Ordem tem que continuar a intervir. Se não fosse a Ordem, não havia normas técnicas da DGS. São os colégios da especialidade da Ordem e muitos membros da Ordem que são nomeados pela Ordem para redigirem as normas técnicas. Grande parte do acompanhamento da DGS é feito por médicos que estão nos colégios de especialidade. Toda a formação se baseia nas visitas e na formação médica estruturada que os colégios fazem. E o Ministério simplesmente aproveita-as, porque não tem pessoas para isso, e usa-as. Ou seja, no aspeto diretamente técnico, a Ordem tem continuado a dar o seu contributo, e o Ministério normalmente nem sequer fala disso, porque tenta minimizar esse contributo. O interesse da Ordem dos Médicos e do Ministério é o mesmo: dar melhor saúde aos portugueses. Da parte da Ordem, com uma melhor medicina. Por isso, este entendimento será sempre fácil se se identificarem os problemas e se trabalhar para os resolver. E nós temos feito isso sempre que nos é solicitado e temos pedido para o fazer sempre que não nos é pedido.

HN – Este caos das urgências era uma consequência inevitável de tudo o que ficou por fazer?

AVL – Nós já vivemos no caos há cinco ou seis anos. O que nós tivemos agora foram uma ou duas gotas de água que fizeram transbordar o copo. Ele vai acalmar daqui a uns meses. Mas vamos ter, ciclicamente, gotas de água que vão transbordando o copo. É um problema crónico. Sempre que existe um evento, sempre que há umas férias, uma pequena pandemia ou um stress qualquer, o sistema não tem elasticidade para responder. Vai fazendo de conta nos períodos de acalmia e parece que faz muitas coisas nos períodos em que é stressado. Mas não faz.

HN – Nós vamos ter, dentro de relativamente pouco tempo, mais de 2 milhões de utentes sem médico de família atribuído, com a passagem à reforma de médicos.

AVL – Aí está um caso em que a Ordem já fez o seu trabalho. Nós estamos a formar, neste momento, mais de 500 médicos de família por ano. As capacidades formativas para o ano que vem são de 550. Quinhentos e cinquenta médicos permitem a cobertura de um milhão de portugueses. Dito de outra forma, um ano de formação de médicos de família permite dar médico de família a um milhão de portugueses. Nos próximos três anos, vão-se reformar mil e tal médicos de família, mas nós vamos formar 1500. Ou seja, estamos a formar médicos de família, mas não lhes estamos a dar capacidade de entrar no sistema, como garantimos. A prazo, em dez anos, teremos mais cinco a seis mil médicos de família. Em dez anos, formamos tantos médicos de família como os que estão agora a trabalhar. Significa que o trabalho de planificação e de adaptação está feito em termos de formação. Agora temos que garantir que eles têm condições de trabalho para fazerem aquilo para que foram treinados: serem médicos de família. Se não lhes dermos essas condições, se não lhes dermos emprego bem remunerado, eles vão deixar de ser médicos de família – e isso é um desperdício.

Ou seja, só haverá dois milhões de portugueses sem médico de família se o Governo não fizer a sua parte, se não criar unidades de saúde familiares modernas, que paguem e retribuam bem aos profissionais, onde eles sejam felizes e gostem de estar.

HN – Unidades modelo B?

AVL – Modelo B ou mais ainda: o Modelo C.

HN – O modelo C? Mas nunca chegou a ser implementado….

AVL – O modelo C, que nunca foi implementado, está na reforma desde o princípio, há 20 anos. Se tivesse sido implementado, estaria, provavelmente, resolvido este problema há muito tempo.

HN – Seria uma solução?

AVL – O modelo C é uma grande solução porque cria as mesmas condições, retribuições e exigências que o modelo B e não é do Estado. Não está dependente diretamente de uma determinação superior. Tem uma autonomia completa. Tem uma iniciativa privada que se organiza para responder à exigência do Estado. E o modelo C é semelhante ao que funciona na maior parte dos países da Europa. São modelos que não dependem diretamente do ministro, nem do ministério das Finanças, mas que têm um contrato, cumprem o seu contrato e organizam-se para o fazer. E isso permite que os modelos C façam uma coisa mais interessante: terem modelos diferentes conforme o sítio onde estão.

Agora, as necessidades das populações são as mesmas, as condições são as mesmas, o financiamento deve ser semelhante e depois a maneira como se organizam depende de quem lá está e das organizações locais.

HN – O que é que falta fazer relativamente à Ordem dos Médicos?

AVL – A Ordem dos Médicos, já tem 80 anos e também precisa de ir evoluindo nestas áreas. Foi feito algum esforço nos últimos anos – a Ordem passou a ser digital, passámos a ter uma forma de comunicação diferente –, mas ainda há muito por fazer. É necessário, neste momento, fazermos também dentro da Ordem aquilo que preconizamos para o SNS, sabendo exatamente onde é preciso mexer – na forma de comunicar, nos serviços que presta, na utilização de meios digitais e fazendo com que os médicos se sintam mais próximos da Ordem sem terem que estar lá dentro.

Temos mais de mil médicos a trabalhar diariamente nos colégios de especialidade e nos conselhos técnicos. Fazem tudo pro bono, porque sentem essa vontade, e o trabalho deles é muito útil, e temos que, de alguma forma, dar-lhes melhores condições para serem mais eficazes, sentirem-se mais recompensados. Porque nós temos que fazer a certificação dos médicos, temos que os avaliar, temos que visitar os serviços, e fazemos tudo sem nenhuma estrutura adaptada internamente. Se tivermos uma estrutura mais profissionalizada, com melhores recursos, provavelmente podemos fazê-lo melhor, e fazendo com que os próprios médicos que trabalham na Ordem, ou outros, sintam mais essa proximidade.

HN – Há problemas específicos em que parece que a Ordem poderia ter alguma intervenção, nomeadamente no burnout dos médicos.

AVL – A Ordem dos Médicos, em relação ao burnout, tem que começar por exigir condições de trabalho. As principais causas do burnout estão relacionadas com as condições de exercício nos vários locais. Há menos burnout nas instituições privadas e quando os médicos ganham domínio sobre a sua atividade. Por isso, o nosso tratamento do burnout também passa por mudar o sistema de maneira que ele seja mais recompensador em todas as matérias (não só financeira) para os médicos que nele trabalham. Depois, temos comissões de apoio – pessoas que fazem essa avaliação e pessoas que podem prestar apoio psicológico e técnico – porque o tratamento do burnout é feito por psicólogos e psiquiatras. A Ordem tem essa capacidade de intervir e de ajudar estes colegas. O burnout é um problema gravíssimo em várias profissões de elevado stress, como os pilotos de avião, as forças de segurança e os médicos – profissões de alta responsabilidade.

HN – Quais seriam os pontos mais relevantes de mudança?

AVL – Será, dentro da Ordem, primeiro, começarmos a fazer a certificação de outras competências que já existem e aumentá-las. Certificação de especialidades e de essas especialidades depois serem reconhecidas. Só a Ordem tem capacidade técnica para o fazer. Não é possível ser feito por pessoas que não estejam dentro da área médica. Segundo, termos uma capacidade muito grande de comunicar e dar mais informação aos médicos, útil para o seu desempenho. Temos de ter um sistema de comunicação, através de meios digitais, que dê ferramentas úteis ao médico no dia-a-dia, sem eles terem de andar à procura em milhares de sítios ou mesmo ficarem sem elas.

A Ordem pode alterar a sua forma de comunicação nessa área e, também, no que respeita a todas as atividades complementares que os médicos gostam de fazer, como a literatura, a pintura, a política. Temos que dar condições para que isso seja feito e mostrado pela Ordem para a comunidade em geral e para os próprios médicos sentirem que há mais do que apenas a medicina na nossa vida.

Entrevista de HealthNews, pode aceder à revista completa aqui