“Já avisei em casa para não contarem comigo na ceia de Natal”, disse à Lusa, em tom desiludido e conformado Paulo Gomes, 52 anos, o camionista de Braga que conduz um dos mais de 1.500 veículos pesados que estão retidos no condado de Kent, à espera de uma solução para o problema que retém milhares de condutores na fronteira com França.

Paulo Gomes está parado na autoestrada M20 e teve o azar de não conseguir chegar a um dos parques de estacionamento que estão a ser improvisados para as centenas de camiões que se dirigem para Dover através de uma das mais movimentadas vias que liga o porto fronteiriço a algumas das principais cidades britânicas.

“Fui apanhado no pior dos lugares. Porque, aqui, a polícia vai-nos obrigando a andar e a parar constantemente, às vezes apenas umas dezenas de metros. Não temos descanso”, desabafa o motorista, invejando a sorte dos colegas que conseguiram chegar a parques de estacionamento, onde, pelo menos, existe a possibilidade de repousar enquanto aguardam novas instruções.

“Dizem que esta noite vão reabrir as fronteiras. Mas também já ouvi dizer que nos vão obrigar a fazer testes, se quisermos atravessar a fronteira. E nem quero imaginar o número de dias que vão ser precisos até que todos sejamos testados e conheçamos os resultados”, diz Paulo Gomes, referindo-se às informações que vão sendo partilhadas pelas transmissões de rádio entre os camionistas.

Rui Filipe, 43 anos, foi um dos “sortudos” que conseguiu estacionar o seu camião frigorífico e vai falando telefonicamente com a Lusa enquanto passeia por um “bonito parque” nos arredores de Medway, a sul de Londres.

“Pelo menos estico as pernas. E, além disso, aqui temos casas de banho e até postos de atendimento médico, se precisarmos de alguma coisa”, diz o camionista de Almada cuja única preocupação parece ser o atraso nos planos que tinha para as festas natalícias.

“Fala-se em termos de fazer testes. Ainda bem. Ando há alguns dias com umas dores de cabeça e, assim, já tiro as teimas, sobre se estarei infetado”, diz Rui Filipe, entre risos que escondem o nervosismo de ter de contar à família que, afinal, vai ficar um lugar livre na mesa da consoada.

“Não sei como lhes vou dizer. Até tenho evitado falar com eles ao telefone. Limito-me a mandar mensagens a dizer que estou bem e que ainda aguardo instruções sobre como irei sair daqui”, confessou o motorista.

Pior está Paulo Gomes, que olha para a sua dispensa debaixo do camião e começa a perceber que, ao fim de um dia e meio de espera, os mantimentos já não são muitos e não duram para muitas mais horas de bloqueio.

“O que nos vale é que há sempre quem tenha muito no farnel e há solidariedade entre todos. Mas também tenho a certeza de que alguém nos viria distribuir alimentos, se tivéssemos de ficar aqui muitos mais dias”, diz o camionista de Braga, confiante em que as autoridades britânicas e francesas cheguem a um acordo nas próximas horas.

“Os que estão melhor informados são os franceses. E eles dizem que os patrões deles lhes prometeram que na próxima madrugada já começaríamos a andar”, explicou Paulo Gomes, embora pense que “começar a andar” é apenas a expressão usada para uma resolução do problema burocrático, mas que a passagem da fronteira ainda vai demorar.

Até lá, o camionista prepara-se para mais uma noite na estrada, que será passada a descansar, a conversar e a jogar “uma bisca lambida” com um baralho de cartas que ele nunca deixa para trás e que partilhará com os colegas que o rodeiam na estrada.

“A noite passada foi pior. Porque ainda não sabíamos o que esperar. Agora, pelo menos, já nos prometem uma solução. E aqui não vamos ficar de certeza!”, disse Paulo Gomes, preparando-se psicologicamente para voltar a colocar o veículo a andar mais uns metros, seguindo uma caravana que ele diz parecer “não ter fim”, relatando a visão que conseguiu ter da estrada quando subiu para cima do seu camião.

“Estamos todos no mesmo ‘barco’. E sabemos que não é culpa de ninguém”, disse Rui Filipe, explicando aquilo que diz ser um clima de resignação dos motoristas com quem tem falado, não tendo sentido momentos de tensão ou de conflito, já que todos percebem os problemas causados pela crise sanitária que levou a este bloqueio.

“Haja saúde. O resto, a gente resolve”, conclui o camionista de Almada que, entretanto, decidiu ganhar coragem para ligar à família, para lhes contar do Natal adiado, “não vão eles ler isto pelos jornais, agora que você falou comigo…”.