“É o fim de todo um processo evolutivo”, esclarece Eugénio Teófilo. O especialista de Medicina Interna do Hospital dos Capuchos chama ainda a atenção para o facto de grande parte da população com VIH estar a envelhecer e para a necessidade de “gerir e distinguir a patologia do idoso para além dos antirretrovirais”.

HealthNews (HN) – A demência associada ao VIH é consequência da deterioração progressiva da função mental devido à infeção do cérebro pelo vírus da imunodeficiência humana?

Eugénio Teófilo (ET) – A denominada “demência associada ao VIH” não é uma entidade fixa mas um continuum de patologias que podem evoluir nas pessoas com infeção por VIH.

Quando falamos em alterações cognitivas numa pessoa infetada com o VIH podemos ter patologia ligada ao vírus da imunodeficiência humana, patologias relacionadas com doenças oportunistas, doenças psiquiátricas – tais como ansiedade, depressão, esquizofrenia, etc. – e ainda, alterações cognitivas associadas ao consumo de drogas que, na população infetada com o VIH também é mais frequente do que na população em geral. A demência associada ao VIH é, assim, o fim de todo um processo evolutivo.

Atualmente, dividimos essas alterações neurológicas específicas do VIH em “fase assintomática” (a pessoa praticamente não sente nada), “fase com pequenos sintomas” (esquecimentos, pequenas alterações da forma como pensa), até à “fase mais tardia”, em que as alterações já são muito graves.

Os testes neuropsicológicos são a forma mais simples de detetar alterações cognitivas: alterações da capacidade de raciocínio, da capacidade motora, de soletrar números ou contar ao contrário…

Felizmente, nos dias de hoje, quando cumprem a medicação, os doentes não morrem. Mas estão a envelhecer. Portanto, para além do VIH, temos patologias normais do envelhecimento, nomeadamente aterosclerose, lesões associadas à isquémia e também à má perfusão dos vasos no sistema nervoso central. Isso, por si só, pode provocar algum tipo de demência.

Tenho muitos doentes com mais de 80 anos. Temos que gerir e distinguir a patologia do idoso para além dos antirretrovirais.

HN – Não dever ser fácil diferenciar todas essas situações…

ET – Não é nada fácil. Aliás, com as pessoas mais velhas é até muito difícil. Temos que testar, para excluir, as causas reversíveis e fáceis de tratar. Hipotiroidismo, sifílis, défice de algumas vitaminas (por exemplo, vitamina B12 e ácido fólico), são as mais frequentes. Estas são as baterias de testes que fazemos sempre numa pessoa que apresenta alterações cognitivas.

Na pessoa com VIH, para além disso, temos que distinguir as que têm a sua imunidade já muito afetada (linfocitos CD4 baixos) das que têm um valor normal de CD4. No primeiro caso, diversas doenças oportunistas podem afetar o cérebro e provocar alterações cognitivas: encefalite CMV – uma lesão provocada pelo vírus JC – leucoencefalopatia multifocal progressiva, toxoplasmose, etc.

Se todos os testes forem negativos, então existe a hipótese de estarmos em presença de demência associada ao VIH. Existe um pequeno grupo de pessoas que, apesar de terem uma carga viral indetetável no sangue, continuam a ter carga viral detetável no líquido cefaloraquidiano. Precisamos de medir a carga viral nesse líquido e, se não estiver controlada, tentar alterar um pouco a medicação antirretroviral, na medida em que há medicamentos que penetram melhor no cérebro do que outros.

Mas aquilo que, antigamente, se definia como “demência da SIDA”, incidia em pessoas não tratadas, com infeção muito avançada. Hoje, só acontece em alguém que esteja fora do sistema de saúde. A imensa maioria das pessoas tratadas e seguidas não chega a essa situação.

HN – As medidas de prevenção são semelhantes àquelas que se preconizam para a população em geral?

ET – Grande parte da população com VIH está a envelhecer. Tenho muitos doentes com mais de 60 anos e vários com 80. Se controlarmos três fatores – hipertensão arterial, diabetes e dislipidémia – vamos obter muitos ganhos em termos de doença neurológica futura das pessoas.

HN – Referiu o problema das alterações neurológicas associadas ao consumo de drogas. Quais são as que têm maior impacto no sistema nervoso central?

ET – Existem vários tipos de drogas muito tóxicas que têm impacto direto no sistema nervoso central. A cocaína é um exemplo. Provoca alterações muito importantes em termos da perfusão do sangue no cérebro.

As anfetaminas são outro exemplo. Provocam lesões acentuadas e, por vezes, irreversíveis no sistema nervoso central. Infelizmente, hoje em dia são um dos fármacos mais utilizados em termos de drogas de abuso.

Temos sempre que excluir, quando avaliamos uma pessoa com estas alterações neurológicas, se não existe, para além do VIH, consumo deste tipo de drogas. A única solução é parar o uso das drogas, não havendo a certeza de que essa paragem vá melhorar o quadro neurológico das pessoas. Como referi antes, as lesões provocadas são, muitas vezes, irreversíveis.

Há uns anos atrás, parecia que a situação estava controlada mas descontrolou-se muito com as drogas sintéticas, mais fáceis de comprar e muito mais acessíveis.

Por outro lado, nalgumas pessoas que tinham parado de consumir verificou-se o retorno ao consumo de drogas devido ao isolamento social que a Covid-19 provocou.

Entrevista de Adelaide Oliveira