“Seria importante criar centros de referência com equipas multidisciplinares, até porque poderiam ajudar bastante no desenvolvimento de consensos para o acesso a novos fármacos”, defende a farmacêutica Filipa Cosme, coordenadora da Unidade de Farmácia Pediátrica do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte.

HealthNews (HN)– Os doentes com SIC são dependentes de nutrição parentérica a longo prazo. Quais os cuidados a ter na preparação e manuseamento das bolsas?

Filipa Cosme (FC) – A Síndrome de Intestino Curto pressupõe que uma porção do intestino teve de ser removida por diferentes motivos. O facto de ter uma base etiológica variada torna-a uma patologia complexa, fazendo com que estes doentes sejam difíceis de gerir.

O intestino não é todo igual. Tanto o intestino delgado como o intestino grosso subdividem-se em várias partes. Neste caso, estamos a focar-nos no intestino delgado, o grande responsável pela absorção e digestão dos alimentos. Cada parte do intestino delgado (íleo, jejuno e duodeno) possui funções diferentes. Se faltar uma parte importante do íleo, teremos problemas acrescidos em comparação, por exemplo, com o duodeno. O íleo consegue desempenhar funções de duodeno mas o contrário já não é possível.

Frequentemente, os doentes precisam de nutrição parentérica, a qual tem de obedecer a todos os requisitos legais de um fármaco. É classificada como um medicamento de risco elevado ou potencialmente perigoso. Se for utilizado incorretamente pode apresentar risco acrescido de causar um dano grave no doente. Por isso é tão relevante que todo o circuito esteja bem definido, desde a prescrição médica, garantindo que está correta, foi realizada de acordo com as guidelines internacionais e em função da idade do doente (adulto ou pediátrico) à sua preparação.

Uma mistura de nutrição parentérica pode conter mais de 50 componentes que podem interagir entre si, além do plástico das bolsas, o ar, a temperatura, a luz…. Quando a prescrição chega à farmácia, tem de ser validada pelo farmacêutico. É muito importante que a preparação das bolsas de nutrição parentérica esteja centralizada nas farmácias hospitalares porque é onde existem estruturas próprias para a preparação deste tipo de medicamentos.

Nas farmácias hospitalares, dotadas de equipas com formação específica, as bolsas são preparadas em salas limpas, de pressão positiva, temperatura e humidade relativa controladas, de modo a garantir um produto assético. Dentro dessas salas, as bolsas são preparadas em câmaras de fluxo de ar laminar horizontal e, após a preparação, sujeitas a controlo microbiológico e físico-químico.

Se surgirem problemas durante a administração da nutrição parentérica, os farmacêuticos são contactados de imediato pelos médicos e enfermeiros para dar resposta a essas situações.

HN- Quão importante é a personalização das bolsas de nutrição parentérica para os doentes com SIC?

FC – As recomendações internacionais em termos de nutrição parentérica referem que, mesmo nos bebés prematuros, sempre que possível devemos escolher a standardização porque nos dá uma grande segurança a vários níveis.

Por exemplo, em relação às bolsas comerciais que existem no mercado, prontas a utilizar, conhecemos a sua validade, sabemos que foram preparadas em condições de indústria, e que podem ser aditivadas (com vitaminas e oligoelementos, nomeadamente) sem que surjam problemas de incompatibilidade entre os constituintes.

Mas claro que existem exceções e os doentes com Síndrome do Intestino Curto podem incluir-se nesse grupo pois podem precisar de nutrição parentérica durante muito tempo e beneficiar da individualização.

Consoante a parte do intestino que foi removida, estes doentes podem ter dificuldade na absorção de determinados macronutrientes ou micronutrientes, que têm de ser suplementados de outra forma que não a oral. Nesses casos, a individualização pode ser fundamental para corresponder às necessidades específicas de cada doente.

Assim, sempre que possível, standardizamos. Nos doentes com Síndrome do Intestino Curto que, à partida, vão precisar de nutrição parentérica durante mais tempo, sempre que necessário individualizamos.

HN- Quais as possíveis consequências da utilização de nutrição parentérica a longo prazo para estes doentes?

FC – A nutrição parentérica é uma forma de nutrição não fisiológica. A forma fisiológica significa deglutir os alimentos. A partir daí, o tubo digestivo funciona de forma natural, com movimentos peristálticos, produção de hormonas e de enzimas que permitem a digestão e mantêm a mucosa funcionante.

Isso é importante porque quando a mucosa do tubo digestivo não está intacta, o risco infeccioso aumenta e podem ocorrer fenómenos de translocação bacteriana (passagem de microorganismos do tubo digestivo para a corrente sanguínea).

Esta é uma das possíveis consequências da nutrição parentérica prolongada. Para a evitar, se não conseguirmos alimentar o doente por via oral, utilizando uma sonda, devemos optar por uma nutrição trófica que, em vez de pretender alimentar o doente, visa manter o tubo digestivo minimamente funcionante.

A nutrição parentérica, para além de ser o processo menos fisiológico de nutrição do doente, apresenta um risco infeccioso muito elevado. Como expliquei antes, protegemos todo o processo de preparação das bolsas e utilizamos filtros que tendem a evitar que os microorganismos passem para a corrente sanguínea. Contudo, o risco infeccioso continua presente.

Não podemos esquecer ainda as complicações associadas ao cateter. Este pode sofrer obstruções, pode deslocar-se e ainda ser um ponto de partida infecioso. Podem ainda ocorrer alterações metabólicas importantes, nomeadamente doença metabólica óssea, colesterase e outras alterações eletrolíticas que precisam de ser controladas.

HN – Para além da preparação das bolsas, qual o papel do farmacêutico no acompanhamento destes doentes?

FC – Sempre que possível, tentamos que os doentes estejam no seu domicílio. Além do apoio à prescrição médica e preparação da nutrição parentérica, o farmacêutico tem de lidar com questões práticas como, por exemplo, como fazer chegar as bolsas ao domicílio dos doentes, caso os doentes ou os seus cuidadores não o possam fazer. Há situações em que é a farmácia hospitalar que faz a entrega e também já existem laboratórios com capacidade de ajudar os doentes no domicílio. Esta gestão tem de ser muito bem articulada com os doentes e cuidadores.

Por outro lado, fazemos o ensino das pessoas e estamos sempre disponíveis para responder às suas dúvidas (basta dizer que são dos poucos doentes que têm o nosso número de telefone pessoal). Os doentes podem ter outras patologias, ou mesmo para gerirem a síndrome, por vezes necessitam de fazer medicação oral e é necessário ensiná-los a gerir os medicamentos.

A formação dos doentes e dos cuidadores é feita pela equipa multidisciplinar: médicos, enfermeiros e farmacêuticos. A consulta farmacêutica é essencial para fazermos não só a gestão de toda a terapêutica mas também para percebermos as dificuldades dos doentes e das famílias.

HN – Que outras terapêuticas estão indicadas na SIC?

FC – Inicialmente, pretendemos um controlo dos sintomas e dos sinais clínicos. Frequentemente, estes doentes têm hipersecreção gástrica, sendo necessária a administração de inibidores da bomba de protões, ou diarreia crónica que tem de ser controlada com medicamentos.

Entretanto, os novos avanços terapêuticos parecem ser bastante promissores porque tentam potenciar ao máximo a capacidade absortiva do intestino com o objetivo de diminuir a necessidade de nutrição parentérica.

HN – Quais os principais desafios na gestão dos doentes com SIC? O que poderia melhorar?

FC – Os próprios doentes são um desafio porque a SIC tem bases etiológicas muito diferentes. Mas, essencialmente, penso que a grande dificuldade é de índole organizacional. Seria importante criar centros de referência com equipas multidisciplinares, até porque poderiam ajudar bastante no desenvolvimento de consensos para o acesso a novos fármacos.

Por outro lado, há disparidades no acesso à nutrição parentérica a nível nacional que têm de ser resolvidas. Não existindo um circuito de entrega das bolsas, têm de ser os farmacêuticos ou enfermeiros hospitalares a fazê-lo. Já tive pais e doentes adultos que precisaram de se deslocar várias vezes por semana ao hospital para levantar as bolsas.

A administração das bolsas de nutrição parentérica requer muito material que é cedido pelo hospital, mediante autorização superior. Todo o apoio ao doente no domicílio carece de circuitos perfeitamente delineados para que tudo corra cada vez melhor. Não pode estar apenas dependente dos profissionais de saúde.