Vivemos tempos conturbados, mas ninguém disse que viver era fácil. O refúgio na expressão suaviza a conduta e responsabiliza a vida, essa mandriona. Fugir aos problemas não os ameniza. Pelo contrário. A forma como lidamos com eles é o que nos diferencia.

Os desenhos animados preparavam-nos para algumas adversidades da vida, como a perda e a dor associada. Chorava-se baba e ranho na mesma medida em que se criavam estratégias de coping. Falava-se da morte como se ela acontecesse e relativizava-se a vida na certeza da sua finitude. Hoje são limados ao mais ínfimo pormenor, para evitar a dor, e quase que se ludibria a verdade incómoda que não tardará a aparecer. Este excesso de protecção torna-nos vulneráveis e desprotegidos. Respeitar a dor é o primeiro passo para esta nos consumir e sair a ganhar.

Nos tempos que correm, o Simba e o Bambi (após a morte do seu pai e da sua mãe, respectivamente) já tinham sido retirados aos pais e entregues a uma família de acolhimento. Claro que estaria uma equipa da CMTV à entrada da selva para cobrir em primeira mão a chegada da assistente social. Ninguém toleraria que uma criança fugisse para o mato para viver com um javali e um suricata, alimentando-se de larvas e escaravelhos, à mercê de uma qualquer parasitose.

Hoje em dia até o nome das personagens seria diferente. Nenhum director de conteúdos deixaria passar o nome de "Nala" na revisão final. É que uma frase que junte o "Simba e a Nala" soa logo a promiscuidade.

Quanto ao Homem-Aranha, safa-o ter sido criado em Nova Iorque.  A mesma história contada na Buraca tinha outro desfecho. Note-se que um rapaz que é órfão, que foi criado pelos tios que permitiram que fosse picado por uma aranha radioactiva (demonstrando má higiene e desleixo), que lida com as lutas diárias próprias da idade (levando a crer que sofre de bullying) enquanto combate o crime com uma máscara, claramente já tinha sido sinalizado à CPCJ. Já para não falar do facto de ser um anti-social atormentado pela culpa edipiana, com um enorme problema de identidade, um complexo de inferioridade e um medo das mulheres que, hoje em dia, não seria mais do que um Síndrome de Asperger subdiagnosticado.

Os Super-Heróis modernizaram-se. Nos tempos que correm, se fossem para a capital inchados dos esteróides, com aqueles tecidos cheios de cor e as cuecas por fora das calças, tinham entrada VIP na Moda Lisboa. Tornaram-se metrossexuais, mas com aquela paneleirice de salvar o mundo dos vilões, quando este está cheio de racistas e xenófobos, que vivem na impunidade.

Num século XXI sedento de imparcialidade e informação desmedidas, o Super-Homem teria de mudar de nome para Super-LGBT e o Batman teria as revistas cor-de-rosa à porta, para o forçar a assumir a sua relação com o Robin.

O culto da imagem, da saúde e da alimentação teria impedido as histórias tal como as conhecemos:

- A Rapunzel não poderia lançar os cabelos porque tinha acabado de ir ao cabeleireiro, não podendo apanhar humidade;

- O Mickey e o Dumbo já teriam feito uma plástica às orelhas;

- O Monstro d’“A Bela e o Monstro”, a meio do filme, já teria feito uma plástica, estragando o final da história;

- A Branca de Neve só teria comido a maçã se esta fosse desidratada. Mais depressa ficaria com uma gastroenterite depois de um brunch num hotel, cujo preço daria para pagar um ano de refeições aos sete anões;

- O Pato Donald já teria começado a fazer Omeprazol para o refluxo gastroesofágico e estaria com uma voz diferente, muito possivelmente a fazer rádio ou a trabalhar numa linha erótica;

Os tempos mudaram, mas nós não mudámos com eles e recusamo-nos a acompanhá-los. O meu avô diz que "antigamente é que era" - afirmação que eu refuto, por não gostar de moralismos. Certo é que depois desses tempos, aí sim, é que foi.