HealthNews (HN) – Na sua opinião, quando falamos em Miocardiopatia amiloide associada a transtirretina (ATTR-CM) podemos dizer que estamos perante uma doença “escondida” à vista de todos?

Dulce Brito (DB) – Sim, penso que a expressão “escondida” à vista de todos define realmente o que acontece com a Miocardiopatia amiloide associada a transtirretina.

Tal acontece porque, em primeiro lugar, sempre foi considerada uma doença rara e associada a causa genética, com áreas geográficas focais de maior incidência para mutações genéticas específicas. Tal continua a ser o caso nas formas genéticas de ATTR-CM, embora progressivamente, particularmente no mundo ocidental, um número crescente de mutações associadas à doença tenha vindo a ser identificado, bem como o reconhecimento das suas várias expressões clínicas, incluindo o envolvimento cardíaco. Mas, em segundo lugar e provavelmente com muito maior impacto em termos de incidência, é o reconhecimento de que a ATTR-CM tem um outro tipo, não genético, a forma chamada wild type, relacionada com o envelhecimento, a qual se crê vir a ser considerada provavelmente a causa mais frequente de miocardiopatia amiloide.

Ora, passar duma doença considerada rara para uma forma “frequente” de miocardiopatia, é uma grande mudança de conceito clínico. E no entanto, sendo uma doença associada à progressão da idade, e sendo cada vez maior a longevidade das populações, não é estranho que assim seja, faz aliás todo o sentido.

Por outro lado, “escondida”, porque a sua expressão no coração e a forma como se manifesta clinicamente pode ser muito idêntica à de várias outras situações muito comuns. Assim, “olhamos” mas não “vemos”, porque não pensamos nela.

HN- Com base na sua experiência, quais os fatores que mais contribuem para esta situação de subdiagnóstico ou atraso do diagnóstico correto?

DB – Primeiramente pelas razões que expressei acima: considerar que a ATTR-CM é rara, e confundi-la com outras doenças comuns e que podem ter expressões fenotípicas semelhantes.

Com efeito, quer as formas genéticas, quer a forma não genética (wild type) de ATTR-CM caracterizam-se principalmente por hipertrofia ventricular, cujas causas podem ser várias, incluindo hipertensão arterial (doença muito comum nas populações), estenose valvular aórtica ou miocardiopatia hipertrófica sarcomérica. E a expressão clínica cardíaca (sintomas/sinais) é frequentemente insuficiência cardíaca (IC). Ora a IC é uma situação muito prevalente e pode ter muitas causas. Habitualmente pensa-se nas causas mais comuns e que até podem coexistir com a amiloidose a transtirretina. De notar que algumas das possíveis alterações electrocardiográficas na ATTR-CM (incluindo a presença de fibrilhação auricular, bloqueios de ramo ou aurículo-ventriculares) são também muito frequentes noutras doenças, e também na população idosa. Mais uma razão para o subdiagnóstico.

Há, pois, que pensar na ATTR-CM como uma possível causa quer de hipertrofia ventricular, quer de IC, e procurar manifestações sugestivas da doença, tanto ao nível de achados no ecocardiograma como no electrocardiograma (porque há “sinais” ou padrões nestes exames que podem ser muito sugestivos de amiloidose cardíaca).

Adicionalmente, sendo a amiloidose a transtirretina uma doença sistémica, ela pode manifestar-se por envolvimento de outros órgãos ou sistemas além do coração, ou mesmo precedendo o envolvimento cardíaco. Pode haver envolvimento ocular, neurológico, hepático, do tubo digestivo, renal, das articulações e tendões, etc. Mas cada órgão expressa-se clinicamente duma forma relativamente monótona qualquer que seja a causa da “lesão”, mais uma vez contribuindo para o atraso no diagnóstico correto. Há assim que pensar na doença e procurar a existência de manifestações que a possam sugerir. Entre estas, dou como exemplo a síndrome do túnel cárpico, situação frequente nas populações e que pode preceder de anos a evidência de envolvimento cardíaco na ATTR-CM, mas poderia nomear várias outras manifestações clínicas extra-cardíacas sugestivas.

HN – Falando agora sobre a classe médica, numa altura em que a componente multidisciplinar é amplamente discutida, que especialidades considera essenciais para a suspeita, diagnóstico e seguimento dos doentes com ATTR-CM?

DB – Como referi, a ATTR-CM caracteriza-se por hipertrofia ventricular esquerda e manifesta-se frequentemente por IC, habitualmente com fração de ejeção ventricular esquerda preservada, pelo menos inicialmente. A IC é habitualmente abordada pela cardiologia e pela medicina interna, mas a medicina geral e familiar também será importante para a suspeita do diagnóstico. Por outro lado, os imagiologistas (quer de imagem cardíaca, quer especialistas em medicina nuclear) são fundamentais quer para a suspeita de ATTR-CM, quer para o diagnóstico, pois não só há características ecocardiográficas e na ressonância magnética muito sugestivas da doença, como a cintigrafia óssea com tecnécio (realizada frequentemente no contexto de outras doenças) pode mesmo fazer o diagnóstico de ATTR-CM ao mostrar de forma expressiva a captação cardíaca do radioisótopo.

No avaliação e seguimento destes doentes, a neurologia é também essencial, sendo de notar que é obrigatório excluir envolvimento neurológico, se é que esse envolvimento não é já evidente ou mesmo dominante, pois as formas genéticas em particular podem ter manifestações predominantemente neurológicas.

Também de realçar que o envolvimento de outros órgãos (como referi previamente) pode exigir a colaboração de várias outras especialidades, incluindo gastrenterologia, oftalmologia, neurocirurgia e nefrologia.

HN – E quanto à articulação entre cuidados primários e cuidados hospitalares?

DB – Essa articulação é fundamental e o muito que há ainda para fazer terá que ser desenvolvido num modelo eficaz. A Medicina Geral e Familiar, como já referi, é uma especialidade essencial para a suspeita diagnóstica de ATTR-CM, mas será necessário um maior estado de alerta em relação a sinais sugestivos, como por exemplo a investigação da causa de hipertrofia ventricular esquerda quando tal é nomeado no relatório do ecocardiograma, mesmo antecedendo manifestações francas de IC. Perante a suspeita do diagnóstico o doente deverá ser referenciado para um centro hospitalar com experiência em lidar com este tipo de doentes.

HN – Que mensagens deixaria para os colegas de outras especialidades, como forma de chamar a atenção para esta patologia? Há algum perfil de doente típico?

DB – Já referi as principais características da ATTR-CM que podem levantar a suspeita clínica: IC com hipertrofia ventricular esquerda no ecocardiograma e habitualmente fração de ejeção preservada. Essa situação, em doente com 65 anos ou mais, deve fazer pensar num possível diagnóstico de ATTR-CM (wild type ou genética), mesmo que o doente tenha outras patologias associadas (como hipertensão arterial ou estenose valvular aórtica). A existência de história de síndrome do túnel cárpico (nomeadamente se bilateral) é frequente.

De forma quase telegráfica eu diria que este é um dos perfis mais típicos.

HN – No caso da ATTR-CM, quão importante é diagnosticar e agir cedo?

DB – É determinante para a evolução clínica e para o prognóstico dos doentes.

É retardar a progressão da doença, levando a menos sintomas, melhor qualidade de vida, menor taxa de hospitalizações e maior sobrevivência.

HN – Os doentes com ATTR-CM são apoiados por alguma associação de doentes? Qual o principal objetivo de uma associação de doentes nesta patologia?

A AADIC (Associação de Apoio aos Doentes com Insuficiência Cardíaca) apoia todos os doentes com IC, incluindo aqueles que têm ATTR-CM. Os principais objetivos duma associação de doentes nesta patologia, visam sensibilizar a população geral para o diagnóstico (com vista a que possa ser precocemente detetada), e informar, quer a população afetada, quer os decisores, das necessidades e consequências da doença, bem como sobre as opções de tratamento disponíveis.

A AADIC tem promovido várias campanhas de sensibilização e de divulgação da ATTR-CM, visando divulgar informação sobre a doença a todos os níveis e tem atuado também como facilitador/interlocutor entre os doentes, os cuidadores, os profissionais de saúde e os decisores.

HN – Há motivos para ter esperança nesta doença?

DB – Sim. Há excelentes motivos. Existem várias terapêuticas em fase de ensaios clínicos e dispomos atualmente de um medicamento que provou ser eficaz justamente no que se pretende e que referi previamente: proporcionar ao doente uma vida mais longa e com mais qualidade. Será fundamental que o doente obtenha esse benefício atempadamente e, para tal, o diagnóstico precoce da ATTR-CM é o primeiro grande passo.