“Há que manter a esperança, o entusiasmo e a capacidade criativa das organizações do terceiro setor, muito em especial das associações de doentes, e esta energia também não deve deixar de existir junto de determinadas entidades – algumas autarquias e também a nível dos cuidados de saúde primários – que conseguem, contra a maré, desenvolver iniciativas que colmatam muitas daquelas falhas de que falámos ao longo da nossa conversa”, disse-nos Rosário Zincke, presidente da Plataforma Saúde em Diálogo, numa entrevista em que se falou de falhas no Serviço Nacional de Saúde, mas também de soluções e bons exemplos “que devem ser reconhecidos pelo Governo e replicados de forma sustentável noutros locais”. “O que me parece indispensável é uma boa articulação entre a saúde e outros setores”, referiu.

Estes foram alguns dos temas em destaque na Conferência Anual da Plataforma Saúde em Diálogo, com o tema ‘’DIREITO À SAÚDE: uma responsabilidade partilhada. Um compromisso de Todos’’, que decorreu no dia 28 de outubro. A Plataforma Saúde em Diálogo representa 56 associações de doentes em Portugal e tem como missão fazer ouvir a voz dos doentes, lutar pelos seus interesses e contribuir para a evolução de um sistema de saúde cada vez mais centrado nas pessoas.

HealthNews (HN)- A centralidade e melhoria das condições e a criação de sistemas de apoio não devia ser uma competência do Serviço Nacional de Saúde?

Rosário Zincke (RZ) Eu penso que aquilo que deve existir é uma rede em que todos têm um papel a desempenhar. Esta questão da saúde tem que estar presente em todas as políticas; a política tem que estar definida; tem que estar estabelecida a obrigação de criar respostas concretas e que vejam a pessoa como um todo – não só como a pessoa que tem a patologia A, B ou C, mas como a pessoa que também precisa de apoio social, de envolvimento social, de apoio psicológico, etc.

Como é que isso se operacionaliza? Eu acho que devem estar vários atores envolvidos: as autarquias, os cuidados de saúde primários, que são fundamentais, e o terceiro setor, principalmente as associações de doentes, que já desenvolvem muito trabalho que podemos dizer que seria competência do Estado, mas que desempenham bem, porque conhecem as verdadeiras necessidades das pessoas. Conhecem-nas porque as pessoas procuram-nas diretamente e desenvolvem um trabalho muito focado, muito específico, e esse trabalho não deve ser, de maneira nenhuma, desperdiçado.

HN- Os cuidados de saúde primários demitem-se até do seu papel mais essencial que é acompanhar a vida das pessoas, mesmo com doentes de alto risco.

RZ- Existem imensas lacunas a esse nível, e o Plano de Recuperação e Resiliência promete, entre outras coisas, apostar na reforma dos cuidados de saúde primários. Esperamos que isso seja efetivamente concretizado e que seja concretizado seguindo aqueles bons exemplos que aqui e acolá existem. O exemplo da prescrição social é extremamente interessante e vai ao encontro daquilo que me estava a dizer. As pessoas não precisam só de fazer análises, dos medicamentos, ou de atacar determinada doença; precisam de outras respostas, como, por exemplo, apoios sociais ou apoio psicológico, que é uma coisa que falta muito e que também foi focada na nossa conferência – a existência de psicólogos a nível dos cuidados de saúde primários -, e podem precisar de combater o isolamento e a solidão. Um dos exemplos dados a nível da prescrição social foi precisamente encaminhar utentes para a universidade sénior que existe naquela zona de atuação do centro de saúde. Há determinados exemplos muito positivos que devem ser reconhecidos pelo Governo e replicados de forma sustentável noutros locais.

HN- Mas isso nunca aconteceu. Mesmo a reforma dos cuidados de saúde primários que ainda está em curso e que começou em 2006 falhou ao nível do atendimento. Às vezes os utentes têm de fazer uma exposição a entidades superiores para que os profissionais se convençam que têm mesmo de fazer aquilo que lhes está a ser pedido.

RZ- É verdade. Há muitas falhas a nível dos cuidados de saúde primários que, no fundo, são a porta de entrada do cidadão. Eu pessoalmente não tenho muita razão de queixa do meu centro de saúde e até já tive alguma experiência de proatividade da parte deles. Mas os centros de saúde não devem ser diferentes. Não podemos depender da maior ou menor vontade da equipa de profissionais que está em determinado local, porque o cidadão tem direito a ser bem tratado independentemente do local do país onde se encontra. Penso que aí encontramos a grande falha – muitas discrepâncias, mesmo.

HN- O Estado tentou ultrapassar isso remunerando pelo desempenho, mas isso não resolveu os problemas. Como é que se obriga uma equipa a agir de maneira diferente?

RZ- É difícil de dizer. Eu penso que o dinheiro não é tudo. Depende muito das características intrínsecas de cada um. Se calhar ajudava que essa avaliação de desempenho também passasse por uma avaliação por parte dos próprios utentes.

HN- Há unidades que têm essas avaliações. Ouvi numa conferência sobre a reforma dos cuidados de saúde primários que o desempenho é uma questão de denominador. Altera-se o denominador e tem-se os resultados que se pretende.

RZ- Olhe-se para o terreno, olhe-se para as experiências positivas e tente-se replicar. Claro que cada local tem as suas especificidades, mas há determinadas coisas que podem ser feitas da mesma maneira. O que me parece indispensável é uma boa articulação entre a saúde e outros setores.

HN- Um dos temas que abordaram foi o da saúde mental. A situação agravou com a pandemia?

RZ- Foi com essa perceção que ficámos. Não só a situação piorou, como trouxe ao de cima muitas situações que estavam escondidas, porque estes problemas da saúde mental só se dão a conhecer quando existe algum fator que quebra a rotina ou aquilo a que a pessoa está habituada. Quem tem problemas de saúde mental tem muita dificuldade em lidar e ter arcaboiço para fazer face às adversidades e à reviravolta que o nosso dia-a-dia sofreu. Isso foi muito reforçado na nossa conferência e salientou-se muito a importância de se estar atento à saúde mental nos meios laborais.

HN- E o que é que propõem? A nível dos cuidados de saúde primários, por exemplo, há muito poucos psicólogos.

RZ- Tivemos uma representante da Ordem dos Psicólogos que nos falou precisamente disso, da necessidade de existirem mais psicólogos. Existem muito poucos psicólogos a nível dos cuidados de saúde primários. Falou-se também na atenção que tem que ser dada no mundo laboral e nas escolas. Ou seja, nos mais diversos locais da comunidade temos que estar atentos a esses problemas. Outro aspeto que foi focado foi da literacia sobre saúde mental, não só para quem possa sofrer problemas de saúde mental, mas também para os outros, para poderem entender e, assim, combater o estigma e lidar melhor com a situação.

HN- Uma das propostas recusadas deste Orçamento do Estado chumbado era o aumento do número de pessoal do SNS, que foi recusado pela ministra, que disse que o dinheiro não pode ser só para pessoal. Temos de facto pouco pessoal no SNS para dar resposta às pessoas ou há um problema de organização?

RZ- Uma coisa não exclui a outra. Podia-se melhorar algo a nível da organização, mas parece-me que mais pessoal qualificado, e não só médicos, mas enfermeiros e outros profissionais de saúde, poderia fazer a diferença, uma vez que sabemos que existem muitos atrasos a nível dos diagnósticos, das cirurgias, etc.

HN- Tem-se defendido, ao longo de décadas, que o doente deve ter voz. Hoje, um doente faz uma queixa porque foi mal atendido, recebe uma resposta a dizer que tomaram nota da queixa e nunca mais lhe marcam consulta. Esta situação foi-nos relatada por um doente de risco.

RZ- Quanto mais as pessoas reclamarem, maior a probabilidade de as coisas mudarem.

HN- Mas a maior parte da população não tem a capacidade de reclamar como este doente. Haver provedores de utentes não seria uma solução?

RZ- Está previsto, em determinados órgãos dos hospitais e dos centros de saúde, participar pelo menos um representante dos utentes. Esse representante pode ser mais ou menos proativo, mas parece-me, pelo menos em termos teóricos, uma boa solução – em órgãos de decisão e de consulta participarem representantes dos utentes.

HN- As novas tecnologias são mais uma barreira ou uma ferramenta útil?

RZ- Penso que são uma ferramenta útil, mas não podem dispensar o contacto físico, o contacto pessoal, nem ignorar que há muitas pessoas que nem sequer telemóvel têm. Por isso, esta transição digital é importante, é importante apostar na literacia a este nível, mas temos que ter a noção de que, nos próximos anos, continuarão a existir muitas pessoas que têm que ser contactadas pelos meios tradicionais.

HN- O que é que gostaria de deixar como nota final?

RZ- Acho que há que manter a esperança, o entusiasmo e a capacidade criativa das organizações do terceiro setor, muito em especial das associações de doentes, e esta energia também não deve deixar de existir junto de determinadas entidades – algumas autarquias e também a nível dos cuidados de saúde primários – que conseguem, contra a maré, desenvolver iniciativas que colmatam muitas daquelas falhas de que falámos ao longo da nossa conversa.

HN- Muitas vezes, quando se pretende implementar qualquer coisa, é necessário haver algum consentimento ou colaboração com as entidades, e o projeto morre.

RZ- Ou não morre, mas passa por muitas barreiras. Depende muita da carolice de cada um e não tanto se a pessoa ganha mais ou menos.

Entrevista de Miguel Mauritti