O facto é uma evidência: Há que comer e fazemo-lo todos os dias, de três a seis vezes. É através da alimentação que aportamos os nutrientes que nos permitem viver. Mas, comer, não é só isto. É, também, convivialidade e prazer. Mais, “a forma como comemos tem impacto nas questões da sustentabilidade”. Com esta frase, a nutricionista e docente Cláudia Viegas dá o mote para uma questão premente nos nossos dias: As escolhas alimentares das famílias e a sustentabilidade do planeta e do ser humano.

“Já em janeiro deste ano um relatório publicado na revista científica The Lancet, apontava os três fenómenos cruciais com um impacto brutal sobre o futuro do planeta e das pessoas”. De acordo com a docente, um trio que se prende com a “malnutrição, sob duas formas, a desnutrição e a obesidade, a que se acrescem as alterações climáticas”.

“A malnutrição é, neste momento, a maior causa de perda de saúde em todo o mundo, seja por via da falta de alimentos, seja por via do consumo excessivo de alimentos de baixo valor nutricional”, sustenta a nutricionista.

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Para Cláudia Viegas, “as alterações climáticas vão levar à produção de alimentos com menor conteúdo nutricional, diminuição da produção de alimentos o que vai encarecer o preço dos produtos”. Um caminho que “reforçará, quer a insegurança alimentar, quer a desnutrição, assim como o desvio para o consumo de alimentos processados, de elevada densidade energética”. Deste último caso, podemos concluir, de acordo com a nutricionista, que “vai sair reforçado o fenómeno da obesidade”.

Uma tempestade perfeita que tem nome: “Chama-se sindemia, ou seja, uma sinergia de epidemias, pois os três fenómenos que elenquei ocorrem em simultâneo no tempo e no espaço”.

É uma arma para o nosso planeta todo o processo industrial que está por detrás da produção

“É uma arma para o nosso planeta todo o processo industrial que está por detrás da produção. A agricultura representa 15 a 23% da emissão de gases com efeito de estufa. Contudo, nesta, 12 a 19% prende-se com a produção animal”, refere a docente.

“A nossa alimentação assenta, hoje, no consumo exagerado de carne. Muito além daquilo que é admissível, com 180 a 200 gramas por refeição. Um requisito por parte do público que entende que uma grande dose de carne é uma refeição bem servida. Por exemplo, o que preocupa as famílias é que à refeição a criança coma a cara até ao fim. Não temos a mesma perceção em relação aos hortícolas”.

No que respeita à restauração Cláudia Viegas deixa uma sugestão: “As ementas ao invés de destacarem a carne ou o peixe, os refira como acompanhamentos. Aliás, chamemos-lhes isso mesmo, acompanhamentos, porque não são o componente principal, o mais importante”.

A obesidade, o grande problema

No que respeita à obesidade, “um grande problema mundial”, as recomendações da Organização Mundial de Saúde “chegam-nos desde há mais de 30 anos. Todos os países aderem. Mas, na realidade, não há mudanças que sejam consideráveis e significativas”, sustenta Cláudia, para quem “há vários motivos para que isso aconteça e, algo com um peso muito forte, a oposição por parte daqueles que são os interesses comerciais e económicos”.

Somos um público pouco exigente ou pouco consciente do impacto que a alimentação tem nas nossas vidas.

“Todos nos lembramos da polémica em torno da lei que procurava regular o conteúdo do sal dos alimentos e que acabou chumbada pela pressão dos grupos económicos. São muito poucas, mas muito poderosas as empresas que gerem grande parte daquilo que temos disponível no mercado”.

Para a docente na Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril, “somos um público pouco exigente ou pouco consciente do impacto que a alimentação tem nas nossas vidas. Adultos e crianças têm cada vez menos literacia sobre aquilo que comemos, estando a perder-se a ligação entre o que nos aparece no prato e a origem do alimento”.

Neste âmbito, a nutricionista não poupa a indústria alimentar: “Passa-nos a ideia de que uma fruta e a congénere sob a forma bebível, em pacote, são a mesma coisa. Não o são, nem do ponto de vista nutricional, nem do ponto de vista do impacto sobre o planeta, ou mesmo naquilo que se entende sobre o que é um alimento”.

A este propósito, a docente deixa-nos um exemplo: Quatro ou cinco bolachas representam 100 calorias. O equivalente a comermos um pão. “Facilmente comemos oito ou dez bolachas. Mas, quantos jovens comeriam duas, três ou mesmo quatro carcaças de seguida?”

Outro exemplo, “apresentado com algum exagero, mas porque quero que fique bem clara a diferença entre a ´comida de plástico` e a nossa cozinha tradicional. Comer meia piza equivale à ingestão de duas taças de sopa da pedra. Não obstante a sopa da pedra ser um prato com alguma gordura saturada e sal, não podemos ignorar a sua qualidade nutricional face à piza. As calorias podem ser as mesmas, o perfil dos macronutrientes mais ou menos semelhantes, mas a principal diferença está no prazer, na saciedade, no volume que podemos ingerir e, acima de tudo, nos alimentos que estamos a ingerir. Couve, cenoura, feijão, alimentos de origem vegetal, plenos de fibras”.

Uma revolução alimentar

Cláudia Viegas apela a “uma verdadeira revolução alimentar. Ficamos, e com razão, muito incomodados quando nos chega através das notícias a disponibilidade de armas em alguns países. Uma facilidade de acesso a arsenal que leva, por exemplo, a que alguém entre numa escola e dispare. O facto tem de nos incomodar. Mas, será que temos o mesmo grau de incómodo quando vemos uma criança a ingerir sumos de pacote, pipocas, bolachas ou batatas fritas?”.

“Quem se incomoda com uma criança, por vezes bebés, a comer batatas fritas, bolachas? A mortalidade por homicídio representa 0,8% a nível mundial, enquanto que a mortalidade por doença cardiovascular, cancro ou diabetes é muito superior”.

A nossa iliteracia sobre os alimentos. “os alimentos chegam do supermercado”. Perdemos a ligação entre a produção e o que nos chega ao prato. Estudo inglês e austrália, saber identificar fruta e vegetais. Quando temos este nível de iliteracia, permitimos que a indústria aproveite para nos dizer que comer fruta é o mesmo que comer uma garrafa de sumo. Não é o mesmo do ponto de vista nutricional, nem para o ambiente.

“Não é sustentável vivermos de refeições prontas, não é saudável vivermos de comida previamente preparada. Nem sequer o é, para muitas famílias, assim viver do ponto de vista económico. Tudo isto passa por reeducar e mudar comportamentos, estimular refeições em família e as competências das crianças de tenra idade”.