Um ano depois do lançamento de "O cardeal", Nuno Nepomuceno prepara-se para fazer uma digressão nacional por todo o país para promover "A noiva judia", o sexto e último capítulo da trilogia Afonso Catalão, à venda a partir desta quinta-feira. Em entrevista exclusiva ao Modern Life/SAPO Lifestyle, o escritor, que celebra este ano 10 anos de carreira, explica por que decidiu acabar com a saga, desvenda alguns hábitos de escrita e faz revelações surpreendentes.

Tem um novo livro, um livro que marca o fim de um ciclo. Segue a mesma linha narrativa dos anteriores ou, por corresponder ao fim de uma etapa, acaba por ser um livro diferente?

É ligeiramente diferente porque abrange um período narrativo maior. Passa-se durante quase dois anos. Acompanhamos o percurso de algumas personagens ao longo desses dois anos e, depois, voltamos a um tempo anterior, acompanhando outros percursos. O livro divide-se em duas levas de personagens. Temos o núcleo da Sofia e do Adam e o núcleo do Afonso e da Diana. As duas histórias vão evoluindo paralelamente, com algumas analepses pontuais para percebermos como é que chegamos de um ponto ao outro.

Porquê este título para marcar o fim desta saga? Consegue explicá-lo sem desvendar demasiado da história?

O título foi algo difícil de obter. Nós tentámos várias opções e nenhuma delas parecia adequar-se completamente. Eu, depois, acabei por chegar sozinho a "A noiva judia", apesar de ser um título que já foi usado noutros livros, nomeadamente num do Pedro Paixão.

Este título está relacionado com um dos quadros que integram o enredo do livro. Há uma pintura dentro da história que se chama "A noiva judia" e é ela que acaba por dar nome ao livro, apesar de isso não ser evidente no início da narrativa.

Por que é que decidiu agora dar por concluída a série Afonso Catalão, uma das figuras centrais de alguns dos últimos livros que publicou?

Eu prefiro que a série termine enquanto as pessoas gostam dela. Não queria que se arrastasse demasiado só porque é bem sucedida comercialmente. Por outro lado, quando estava a escrever "O cardeal", o quinto livro da série, fiquei com a sensação de que alguns dos arcos narrativos já estavam a prolongar-se demasiado e achei que o sexto livro seria um bom número para a terminar.

Para além disso, pretendo fazer a minha carreira evoluir e acho que, para o conseguir, teria forçosamente que fazer uma pausa nesta série. Em vez de fazer essa pausa, prefiro mesmo terminá-la...

Uma das imagens de marca desta sua coleção de livros é a indicação do local e do horizonte temporal em que decorrem os factos descritos em determinado momento no início de cada capítulo. Porquê essa opção?

Acho que está relacionada com o início do meu percurso enquanto escritor de espionagem. Normalmente, nesses livros, faz-se sempre essa localização porque, muitas vezes, contam-se histórias que se passam em espaços diferentes e é preciso dar uma pequena ajuda ao leitor, para que ele não se perca ao longo dos capítulos.

Eu tenho mantido isso ao longo da minha carreira em todos os livros que escrevi mas penso que no próximo livro já não o irei fazer. Vai ser um livro com um registo diferente e não fará sentido manter essa localização no início de cada capítulo.

No seu anterior livro, "O cardeal", há, a dada altura, um crítico literário que faz uma crítica arrasadora ao livro que uma das personagens acaba de lançar. Sempre que tem um livro novo, também teme esse tipo de críticas?

Por acaso, no caminho para esta entrevista, vinha a pensar nisso. Nós nunca sabemos qual vai ser a reação do público. Nós podemos achar que escrevemos o melhor livro de sempre e o público pode detestá-lo. É muito difícil saber de antemão como é que as pessoas vão colher uma ideia nova, que ainda não foi experimentada.

É óbvio que o livro, até chegar às livrarias, já passou pela mão de outras pessoas, nomeadamente dentro da editora. E essas pessoas já deram a sua opinião sobre o livro. Sentimos, por isso, alguma segurança relativamente àquilo que será o seu desempenho. Mas, na realidade, nunca sabemos o que vai acontecer. Há sempre um misto de excitação por ser algo novo e algum respeito pela opinião do leitor também...

Depois de entregar os manuscritos à editora, já teve a tentação de os pedir de volta para fazer alterações de última hora?

Já aconteceu, já... [sorri] "O cardeal" sofreu alterações entre o momento da entrega à editora e a ida para a gráfica. Houve dois capítulos que foram bastante alterados. No caso de "A noiva judia", curiosamente, não houve muitas alterações. Apenas um ou outro pormenor mais específico...

Mas, sim, eu acho que o trabalho nunca está perfeito, está sempre inacabado. Se me pedissem hoje para escrever "A noiva judia", eu iria fazer outras alterações. Eu, pelo menos, estou sempre insatisfeito com aquilo que faço e acho sempre que posso melhorar...

Os artistas, de um modo geral, pensam praticamente todos assim. Há uns anos, numa entrevista ao Modern Life/SAPO Lifestyle, o joalheiro Eugénio Campos assumiu que não estava propriamente orgulhoso das primeiras coleções de joalharia que lançou...

O nosso primeiro trabalho revela sempre alguma inexperiência e eu hoje olho, por exemplo, para a trilogia Freelancer, os primeiros três livros que escrevi, "O espião português", "A espia do oriente" e "A hora solene", e, realmente, percebo que fiz opções que não foram as mais acertadas e tenho tentado corrigir isso através das reedições.

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Mas eu acho que nós evoluímos... Eu sou hoje, 10 anos depois de ter lançado o meu primeiro livro, um escritor muito diferente daquilo que era naquela altura. Por dois motivos. Por um lado, adquiri experiência dentro do mercado literário. Sei melhor aquilo que estou a fazer porque fui tendo contacto com os leitores. E isso deu-me outro tipo de capacidade. Sou também uma pessoa bastante diferente. O meu primeiro livro, "O espião português", foi publicado em 2012 mas, na realidade, começou a ser escrito muito antes, em 2003.

Estamos a falar de algo que se passou há 18 anos. "A noiva judia", que é publicado agora no início de 2022, foi escrito em 2021. Há aqui uma diferença de 17 anos e, 17 anos depois, eu estou muito mais maduro, não só enquanto escritor mas também enquanto pessoa e é natural que o livro reflita isso...

Este livro, tal como os anteriores, é inspirado em factos reais e em locais existentes. Até que ponto é que essas opções influenciam ou condicionam a narrativa e o processo criativo quando está a desenvolver a história?

Eu gosto de fazer uma fusão. Gosto de brincar um bocadinho com a realidade. Gosto que as pessoas peguem numa história que conheçam e pensem que ela poderia ter ocorrido de outro modo ou que estejam a ler uma história completamente ficcionada e, de repente, apareçam pequenas ligações com a realidade, como é o caso de "Pecados santos", com o arco narrativo da morte de Yasser Arafat [líder palestiniano falecido em 2004].

Essa morte aparece no meio do livro e há uma relação com o enredo... De certa forma, é sempre uma inspiração. Um ponto de partida. E, quando lerem o livro, vão perceber isso... Os livros da série Afonso Catalão têm todos uma nota de autor onde eu faço uma explicação daquilo que eu utilizei como real e aquilo que ficcionei.

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No caso de "A noiva judia", parte apenas de uma premissa real, que foi a morte de Pier Paolo Pasolini [realizador, poeta, escritor e intelectual italiano assassinado em 1975]. Eu fiz um decalque do crime que motivou a morte e, depois, extrapolei-o para o meu universo e para as minhas personagens. O ponto de contacto é apenas esse. É o início da história. Depois, a partir dali, foi todo o meu trabalho de construção narrativa...

Em "O cardeal", escreve, a dada altura, que muitos escritores pegam em histórias reais que depois desenvolvem com a sua criatividade, preenchendo espaços vazios. Estava, no fundo, a descrever o seu método?

Um pouco, sim... Eu acho que isso é mais óbvio no caso de "A morte do papa". Dos seis livros da série Afonso Catalão, é aquele que tem maior fundamento real porque está completamente estruturado em cima de uma história verdadeira. As próprias personagens que só fazem parte e "A morte do papa" são, embora com nomes falsos, figuras que existiram na realidade na altura em que João Paulo I faleceu.

Nesse caso, o que eu fiz foi exatamente isso. Foi preencher espaços vazios. Eu tinha uma história, que tinha começado na noite em que o papa João Paulo I apareceu morto e que terminava na noite da eleição do novo papa.

Havia uma série de acontecimentos naqueles 33 dias pelos quais eu tinha que passar. Mas não se sabe tudo aquilo que aconteceu. Aliás, ainda hoje não se sabe como é que João Paulo I morreu. Não há certezas acerca disso. Portanto, o que eu fiz foi preencher os espaços vazios. Há livros onde o faço mais e livros onde o faço menos. Em "A noiva judia", faço-o menos.

À semelhança do anterior, este livro foi escrito em período de pandemia. O facto de estarmos num período de um maior distanciamento físico e de um maior isolamento social acabou por afetar, de algum modo, a sua criatividade?

Eu sou, por natureza, uma pessoa introspetiva. Prefiro estar sozinho ou em grupos pequenos de pessoas do que em multidões. E, para mim, escrever é um ato de solidão. Eu não consigo escrever ficção na companhia de outras pessoas. Preciso mesmo de estar sozinho e preciso de ter algum tempo para me dedicar ao texto que estou a fazer. Nesse aspeto, não houve assim uma alteração muito grande na minha forma de trabalhar.

Por outro lado, sim, há uma influência da pandemia. Eu acho que, infelizmente, nós nos tornámos todos mais egoístas e mais introspetivos. E os meus livros tornaram-se mais psicológicos nos últimos dois volumes, "O cardeal" e "A noiva judia". Acho que isso também é um reflexo da pandemia. Isso nota-se já em "O cardeal", que termina no início da pandemia, e, sobretudo, em "A noiva judia", que abrange um período de quase dois anos...

Se fizermos a extrapolação para a realidade, começa no início da pandemia, por volta de março de 2020, e, depois, termina nesta altura, em janeiro de 2022. Eu tentei acompanhar o ritmo dos acontecimentos. Há referências ao primeiro e ao segundo confinamento mas de uma forma que tentei que não fosse muito explícita, porque não queria que o livro ficasse marcado pela pandemia. Mas esses elementos estão lá...

Quando diz que precisa de estar completamente sozinho para escrever, não pode ter mesmo ninguém por perto ou o Kimi, o seu cão, que costuma mostrar nas redes sociais, pode estar ao pé de si?

Não, o Kimi não pode estar por perto, porque é muito traquinas e não me deixa sossegado. Eu posso estar com pessoas dentro de casa e até pode haver algum ruído mas tem de ser algo que não desperte muito a minha atenção. Tem de ser um ruído com o qual eu esteja familiarizado. Pode ser a televisão ou até alguém que está a ver televisão na sala.

Pode haver música. Mas, no caso da música, convém que seja algo que eu já conheça porque, se for um álbum novo, eu automaticamente desconcentro-me e começo a prestar atenção àquilo que estou a ouvir. Eu, por vezes, escrevo ao som de música mas, por norma, opto por discos que eu já conheço bastante bem, que não me retiram atenção em relação àquilo que estou a fazer...

E tem uma divisão que use mais ou pode escrever em qualquer parte da casa?

Posso escrever em qualquer divisão da casa mas tenho mudado um pouco ao longo do tempo. O meu primeiro livro foi escrito em muitos locais. Eu, na altura, estava a viver nos Açores. O livro começou a ser escrito lá. Na minha sala de estar. Depois, passei pela fase em que estava a construir a casa onde vivo atualmente e estive a viver em casa dos meus pais.

O livro foi, depois, escrito na sala de estar deles. Na minha casa, escrevo em vários locais. Tenho um escritório onde não escrevo muito, curiosamente. Prefiro escrever noutros locais da casa. No alpendre. Na varanda do primeiro andar... Ultimamente, tenho-me refugiado no quarto das visitas... [risos]

O seu anterior livro, "O cardeal", foi lançado um dia antes do segundo confinamento, numa altura em que as livrarias encerraram. Isso acabou por ter um grande impacto nas vendas ou os leitores conseguiram adquiri-lo online ou em versão digital? Em relação aos livros anteriores, sentiu uma grande diferença?

Sim, essa situação teve um impacto muito grande nas vendas de "O cardeal" e nas iniciativas comerciais que estavam programadas entre a editora e os retalhistas. Houve promoções que estavam programadas que não aconteceram. O livro acabou por ser bastante prejudicado em termos comerciais porque, praticamente, esteve fechado nas livrarias durante dois meses.

Foi muito mau, não só para o meu livro como para todos os outros que saíram na mesma altura. Embora muitas pessoas pensem o contrário, janeiro é um mês de lançamentos importantes para as editoras e, normalmente, nessa altura, saem livros em que as editoras apostam bastante.

Depois, o que aconteceu foi que, quando as livrarias reabriram em março, foram inundadas com as novidades de março e de abril e os livros que tinham sido lançados no início do ano foram, de alguma forma, devolvidos e considerados, de certa forma, antigos porque entretanto tinham surgido muitas novidades.

No caso particular de "O cardeal", inicialmente o impacto foi grande, porque o mercado português ainda não tem uma grande expressão em termos digitais. A venda digital de audiolivros e a venda online nas livrarias não acompanha aquilo que é a venda real em papel. Além de muitos leitores gostarem da sensação de toque do papel, este mercado também funciona muito através da venda por impulso, que existe pouco no online. As pessoas, online, controlam muito mais aquilo que estão a comprar.

No caso concreto de "O cardeal", curiosamente, o livro acabou por sobreviver a esta crise e recuperou, depois, ao longo dos meses que se seguiram. Atualmente, está mais ou menos equiparado, em termos comerciais, àquilo que foi o desempenho de "A morte do papa", que era, até à altura, o grande best seller da série.

A realidade é que esses números vieram em fases diferentes. "A morte do papa" teve uma grande explosão no início, em janeiro de 2020. "O cardeal" acabou por fazer um percurso mais consolidado ao longo dos meses que se seguiram, apesar de ter vendido mais devagar...

Tem uma presença muito ativa nas redes sociais. Encara-as como uma forma de publicitar o seu trabalho e de dar conta daquilo que vai fazendo, também para se aproximar dos leitores, ou, pelo contrário, uma vez que já assumiu nesta entrevista que é uma pessoa mais reservada e introspetiva, acha que são um mal necessário e/ou uma imposição que faz parte do negócio?

Eu não gosto muito de me expor. Se as pessoas repararem bem, embora eu reconheça que esteja bastante presente nas redes sociais, a minha presença é controlada. Eu só mostro o que acho que devo mostrar. Como sou uma pessoa reservada, não me sinto confortável com uma exposição muito grande. Por outro lado, para mim, as redes sociais não são um mal necessário mas, sim, uma forma de manter o contacto com os leitores.

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O mundo mudou muito nas últimas décadas e eu, que já vou com uma carreira de 10 anos, tenho visto essa mudança também nos leitores. Eu estou presente nas redes sociais a partir do momento em que lancei o meu primeiro livro. Antes disso, não estava. Não tinha um único perfil numa única rede social até o ter lançado. Mas noto uma evolução na forma como os leitores comunicam comigo. Inicialmente, faziam-no essencialmente por e-mail. Enviavam-nos através do endereço que é público no site oficial. Depois, houve uma fase em que me contactavam muito através de mensagens no Facebook. Isso agora mudou um pouco.

Hoje, aparecem mais a comunicar através de comentários nas publicações que faço. Muitos fazem perguntas acerca dos livros. Ao longo dos últimos dois anos, isso foi sendo um pouco transferido do Facebook para o Instagram. Neste momento, essas são as duas plataformas onde eu tenho mais interação com os leitores. O e-mail desapareceu, praticamente. Agora é muito raro receber um e-mail, apesar do meu site estar com 100 vezes mais tráfego do que aquele que tinha anteriormente...

Apesar de ser reservado e introspetivo, acaba por ter uma presença muito ativa nas redes sociais, com muitas publicações, muitos diretos...

Eu acho que faz parte do meu trabalho enquanto escritor. Eu tenho direito a ser aquilo que sou enquanto pessoa mas também tenho de compreender que, para fazer o meu trabalho, há certas coisas que são necessárias. Não vou recusar um pedido de entrevista em direto só porque não gosto de me expor.

Apesar de ter essa postura, faz uma aposta forte na estética promocional dos livros, sem medo de dar o corpo às balas e de fazer um trabalho que acaba por não ser muito diferente do de um modelo...

Sim... Isso foi algo que surgiu de uma forma não planeada. Inicialmente, houve a necessidade, quando eu fiz a transição para a Cultura Editora, de termos um leque de fotografias, tiradas por um fotógrafo profissional, que pudéssemos usar para vários fins. Para incluir no design dos livros, para distribuir à imprensa... Fizemos uma primeira sessão fotográfica, em 2018, que teve esse fundamento.

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Depois, ao longo desse ano, eu trabalhei no "A última ceia" e, numa das viagens que fiz a Inglaterra para trabalhar, consegui uma entrevista com o diretor da coleção da Academia Real das Artes de Londres e surgiu, em conversa, de uma forma muito espontânea, a possibilidade de, para promovermos o livro, regressarmos ao museu para tirar umas fotografias. Ele disse que sim... Havendo uma personagem masculina, sendo eu um homem, fez sentido ser eu a fazer de modelo dessa própria personagem. Acabei por começar a encarnar o Afonso Catalão, se bem que eu apareça com um estilo de roupa que não é bem o do Afonso.

Ele só usa sobretudo às vezes e eu apareço sempre de sobretudo nas fotografias. Isso tem acontecido mais por uma questão de imagem... Esse trabalho começou por acaso... Se há uma coisa que eu vou deixar, agora que vou fazer uma paragem, ao fim destes 10 anos de carreira, é uma forma diferente de comunicar com os leitores. Eu, por exemplo, no cartaz promocional de "Pecado santos", surjo com uma mão ensanguentada. Nunca vi ninguém fazer nada assim.

Quando lancei "O cardeal" e aparecia nos cartazes promocionais das livrarias Bertrand vestido de cardeal, também nunca tinha visto ninguém a fazê-lo. Eu, pelo menos, vou deixar a minha marca porque, de alguma forma, criei uma imagem minha e fui irreverente ao ponto de ter rasgado um bocadinho com aquilo que era convencional, sem chocar ninguém. Isso deixa-me satisfeito em relação àquilo que tem sido a minha carreira literária.

Voltou a falar há pouco dos 10 anos de carreira. Quando a iniciou, em 2012, era assim que a perspetivava uma década depois?

[respira fundo] Inicialmente, quando comecei, em 2012, tinha um plano para três livros, "O espião português", "A espia do oriente" e "A hora solene". Na altura, estavam muito em voga as trilogias e as séries. Foi isso que me motivou. Eu não queria escrever um livro, queria escrever três livros. Depois, com a evolução da minha carreira, acabei por achar que tinha potencial para ir mais longe e escrevi "A célula adormecida".

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Esse livro teve como intuito romper com a imagem que estava criada com a trilogia Freelancer e com a necessidade de criar um protagonista mais velho que se adequasse mais ao estilo que eu pretendia seguir a partir dali. Um estilo mais psicológico, mais negro. Eu não conseguia fazer isso com as personagens de "O espião português". E depois, de repente, sem saber muito bem como, eu lembro-me do momento mas, sem ser planeado, "A célula adormecida" transformou-se no início de uma série de seis livros. Enquanto o redigia, escrevi uma frase.

No meio de um diálogo, o Afonso diz que nada se passou em Londres e fica no ar o que é que terá acontecido no passado daquele homem naquela cidade. Foi isso que motivou a construção da série. Se reparar, quando ler "A noiva judia", vai enconrar referências àquilo que é descrito em "Pecados santos" e que está relacionado com o passado do Afonso em Londres. O passado do Afonso em Londres e o passado do Afonso em Istambul acabam por marcar toda a série, definindo a personagem que o Afonso é...

Há 10 anos, não imaginaria, provavelmente, que um dia a sua escrita se poderia internacionalizar. Na entrevista de há um ano, afirmou que é difícil um escritor de espionagem português conseguir oportunidades e abertura nesse sentido noutros mercados. Ainda assim, poucos meses depois, era surpreendido por uma proposta de internacionalização...

Sim, uma editora húngara comprou os direitos de "A morte do papa". Ainda estamos à espera da publicação na Hungria. A editora tem um ano e meio para publicar o livro. Passou, sensivelmente, cerca de meio ano. Em princípio, essa publicação deverá ocorrer ainda em 2022...

Eu nunca escondi que a internacionalização era um objetivo. Sendo muito honesto, eu gostaria mais de uma tradução para uma outra língua, como o inglês, que me permitisse abrir mais mercados. Mas também não vivo amargurado pelo facto disso ainda não ter acontecido. Aliás, eu tinha três objetivos quando escrevi o meu primeiro livro e todos eles já foram cumpridos.

Tudo aquilo que puder vir a seguir, eu irei acolher, de braços abertos, porque o meu objetivo enquanto escritor não é ser famoso ou enriquecer. É chegar às pessoas e a quantas mais pessoas eu chegar melhor. Eu apenas quero comunicar com as pessoas. Não lhes quero extorquir dinheiro nem promover-me às custas delas...

Na altura em que iniciou a sua carreira de escritor, não existiam plataformas de distribuição digital de filmes e de séries como a Netflix, a HBO ou a Disney+. Algumas delas até já exibem produções portuguesas. Via os seus livros a serem convertidos num desses formatos? Já teve abordagens nesse sentido?

Sim, faz-me sentido e já houve abordagens. Mas, até ao momento, esses projetos ainda não foram consumados. Não posso, por isso, dizer que esse projeto vá para a frente... Já houve contactos entre mim e a agência que me representa e produtores, nomeadamente uma produtora de grande expressão no país. Já houve, inclusivamente, o desenvolvimento de conteúdos mas ainda nada se confirmou e é um passo a dar com cuidado e devagarinho...

Mas agrada-lhe a ideia?

Agrada-me muito, se bem que eu acho que é um projeto de difícil concretização cá. Penso que nunca seria um produto de canal aberto. Pelo facto de a série Afonso Catalão decorrer em várias cidades estrangeiras, iria ter grandes custos de produção. Seria, por isso, um produto sempre mais adequado para um canal de streaming.

Se bem que, se houvesse uma proposta de um canal aberto, eu também não iria dizer que não. Não sou preconceituoso a esse ponto. Neste momento, estamos um bocadinho a ver o que é que o futuro dirá. As portas não estão fechadas mas também não estão completamente escancaradas.

Escreveu, numa das suas últimas obras, que vivemos num tempo em que as pessoas não gostam de pesquisar. Um tempo em que as pessoas leem cada vez menos e, como consequência disso, falam e escrevem pior. Na entrevista que nos concedeu o ano passado, afirmou também que não encarava o futuro da literatura portuguesa com otimismo. É só o futuro da literatura portuguesa que não encara com otimismo ou é também o futuro do português e da própria evolução sociocultural do país?

Literariamente falando, não mudei de opinião. Acho que o panorama não é bom e não o é em termos de autores. Acho que não está a haver renovação. A que está a surgir não está a corresponder àquilo que seria desejável em termos de qualidade. Se pensar bem, os grandes nomes da literatura portuguesa, e eu não vou dizer que me incluo neles, são pessoas que já o são há muitos anos. Parece que ninguém consegue romper...

Por outro lado, acho que, em termos sociais, infelizmente, a pandemia tornou-nos mais egoístas e isso está a ter reflexos na nossa sociedade. As pessoas deixaram de se ajudar tanto porque se isolaram mais. Acho, sinceramente, que estamos todos a precisar de conviver mais e de nos tornarmos mais solidários uns com os outros. Se isso vai ter reflexos na leitura, eu, honestamente, acho que não. A tendência, sobretudo em Portugal, é para que as pessoas leiam ainda menos nos próximos anos.

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A leitura tem sido substituída por outras fontes de ocupação e de entretenimento. Se nós pensarmos, hoje em dia, as distrações que temos em nossa casa são muito superiores, em termos de entretenimento, às que tínhamos há 10 anos. Pensemos, por exemplo, na quantidade de canais de streaming que entretanto surgiram em Portugal ou até mesmo na quantidade de canais por cabo que atualmente temos à disposição, que permitem horas de entretenimento quase infinitas. Além disso, as pessoas começaram a depender mais do telemóvel e isso faz com que, a meu ver, haja uma redução da capacidade de concentração das novas gerações.

Estão habituadas a trabalhar num registo muito mais imediato e a estarem concentradas durante períodos muito mais pequenos. Isso, depois, coloca-lhes alguns entraves à leitura de um livro, uma vez que o período de concentração tem de ser aumentado. Muitas das novas gerações acabam por não ter essa capacidade.

Por outro lado, estamos a entrar um bocadinho num mundo de extremos. Temos leitores que são vorazes e que, desde pequenos, leem tudo aquilo que podem e consomem o máximo que conseguem e, depois, temos o extremo oposto, temos pessoas que rejeitam o livro em si. Infelizmente, acho que, em termos globais, nós estamos a perder leitores, em vez de os ganhar.

A imprensa impressa queixa-se do mesmo...

Durante a pandemia, pelo menos em Portugal, pensou-se que a obrigação de alguma reclusão faria com que as pessoas se reencontrassem com a leitura. Não foi isso que aconteceu. E se compararmos, por exemplo, o primeiro com o segundo confinamento, em que houve mais vendas de livros online, as pessoas achavam que, por estarem em teletrabalho ou por estarem em isolamento profilático, iam ler mais e consumir mais livros na expetativa de terem mais tempo para ler.

No segundo confinamento, isso já não aconteceu porque as pessoas já tinham a experiência do primeiro e já sabiam que o teletrabalho não lhes daria tempo para poderem pegar num livro à noite nem sequer a capacidade de concentração necessária para o fazer.

Sabiam que chegariam ao fim do dia completamente saturadas e que iriam aproveitar o tempo livre que tinham numa fonte de entretenimento que não as fizesse pensar. Ler um livro obriga o leitor a concentrar-se. Um livro de ficção como os meus obriga as pessoas a estarem atentas para não perderem o fio à meada e isso, hoje em dia, não é muito compatível com o ritmo a que nós vivemos...

Uma das coisas que também assumiu na anterior entrevista que nos concedeu foi que uma das coisas que mais gosta de fazer é criar enredos...

[interrompe] Sim!

Agora que acabou a série Afonso Catalão, há novos enredos em perspetiva?

Há uma ideia vaga, ainda... Nos próximos meses, vou dedicar-me à conclusão da reedição da minha primeira série, a trilogia Freelancer. Nós prevemos que a "A espia do oriente" saia algures entre maio e junho e depois, não sei se ainda este ano se no próximo, será republicada "A hora solene". Com isto, todo o meu trabalho acabará por ficar representado pela Cultura Editora. Tanto os originais da série Afonso Catalão como as reedições da minha primeira série.

Eu espero ter este trabalho terminado por volta do início do verão e, após essa fase, irão seguir-se alguns meses de descanso. Vou fazer um interregno e espero retomar o trabalho a partir do outono. Em outubro ou em novembro. Nessa altura, irei começar a desenvolver um projeto antigo, que ainda não está completamente estruturado, mas que já anda há alguns anos na minha cabeça e que vai precisar de muito tempo. Daí também a necessidade de abrandar um pouco o ritmo para me poder dedicar mais a esse projeto...

Será um projeto para ver a luz do dia em 2024?

Sim, possivelmente, será um projeto para 2024. Eventualmente, se tudo correr excecionalmente bem, para o fim de 2023. Mas isso, depois, teria de ser encaixado dentro do planeamento editorial da Cultura Editora...