A comissão do Parlamento Europeu que está encarregue de defender os direitos das mulheres e a igualdade de género em todo o território da União Europeia não tem dúvidas. A conjuntura atual pode comprometer (muit)as conquistas conseguidas nos últimos anos. No passado dia 3, em antecipação do Dia Internacional da Mulher, que se comemora hoje um pouco por todo o mundo, promoveu uma reunião interparlamentar para discutir os desafios que a nova realidade social veio gerar.

O mote do encontro confirma-o. "Um futuro ambicioso para as mulheres europeias depois da COVID-19: Sobrecarga mental, igualdade de género no teletrabalho e trabalho de cuidador não remunerado após a pandemia" foi o título dado à iniciativa. De acordo com a informação recolhida por este organismo, continuam a ser as mulheres a assegurar a maioria das tarefas domésticas, uma situação que, em muitos casos, o surto viral de SARS-CoV-2 ainda veio agravar mais.

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"Durante o confinamento, esbateu-se a fronteira entre a vida pessoal e a profissional. As atividades domésticas multiplicaram-se. Ainda hoje, são as mulheres que realizam a maior parte das tarefas não remuneradas, como tomar conta das crianças ou cuidar dos membros mais idosos da família. A crise de COVID-19 veio, sem qualquer margem para dúvidas, agravar as desigualdades a este nível, tornando mais difícil a conciliação da vida profissional com a pessoal e isso tem tido um impacto devastador na saúde mental feminina", refere um documento interno da comissão a que o Broader/SAPO Lifestyle teve acesso.

Um estudo científico divulgado pelo National Center for Biotechnology Information e pela National Library of Medicine, dois reputados organismos norte-americanos, confirma-o. "As mulheres têm uma maior predisposição para as vulnerabilidades e para os impactos adversos", asseguram as quatro autoras da investigação. A psiquiatra brasileira Marcela Almeida é uma delas. As conclusões a que as cientistas chegaram não surpreenderam a maioria dos analistas.

"As mulheres grávidas, que deram à luz, que sofreram abortos e/ou que foram vítima de violência doméstica durante a pandemia são as que correm maior risco de vir a desenvolver problemas mentais", defendem as investigadoras. "Uma abordagem proativa a estes grupos de mulheres, complementada com a ação de grupos de suporte social, permitir-nos-ia prevenir, detetar atempadamente e até tratar de forma mais célere estas situações. O apoio social é um fator-chave", asseguram.

"A parentalidade também foi substancialmente mais stressante durante a pandemia. As diferenças entre géneros foram acentuadas em muitas situações. No caso das mulheres empregadas e das que vivem sozinhas com os filhos, que já são desproporcionalmente responsáveis pela esmagadora maioria das tarefas domésticas, incluindo as que se prendem com as crianças e com os idosos, o agravamento foi notório", sublinham ainda as investigadoras do estudo científico.

As (eternas) dificuldades de acesso a cargos de chefia

Outro dos problemas que continua a preocupar os grupos que defendem os direitos das mulheres e a igualdade de género é a discrepância dos ordenados. "A maior parte dos trabalhadores europeus que recebem o salário mínimo [nacional] na maioria dos países da União Europeia são mulheres", alerta um documento interno do Parlamento Europeu. O acesso a cargos de chefia é outra das batalhas que a pandemia veio condicionar. Os dados oficiais do Eurostat mostram-no.

No terceiro trimestre de 2020, segundo as percentagens divulgadas há pouco mais de um ano, Portugal tinha apenas 36% de mulheres em cargos de gestão. A média da União Europeia, nessa altura, ainda era menor, não indo além dos 34%. Apesar de 46% desses trabalhadores europeus serem mulheres, não chegam a ser 35% a ocupar posições de chefia. Ainda assim, o panorama é hoje substancialmente diferente do que era antes, como recorda a socióloga Anne Guillou.

"Ainda estamos longe da igualdade de género mas não nos podemos esquecer do caminho que tem sido percorrido. As nossas avós podem comprová-lo. Eu tenho 82 anos e lembro-me que, nas décadas de 1950 e 1960, muitas famílias proibiam as filhas de ler. Era considerado uma perda de tempo. Em França, as mulheres só puderam votar a partir de 1945. Antes de 1965, não podiam abrir uma conta no banco nem trabalhar sem autorização. Conseguiram-se grandes vitórias", regozija-se.

Ainda que a pandemia tenha vindo condicionar o percurso evolutivo do empoderamento feminino em curso, Anne Guillou não tem dúvidas. "A sociedade continua a avançar lentamente para a liberação da mulher. Mas não podemos pensar que isso se processa de forma automática. Ainda existe uma espécie de patriarcado que promove a superioridade masculina. Isso ainda se vê em muitos órgãos políticos e em muitas reuniões de trabalho", lamenta a socióloga.

Madonna é uma das artistas internacionais que mais se tem rebelado contra a tal opressão patriarcal de que a investigadora francesa fala. "O patriarcado continua a tentar esmagar o meu pescoço com as suas botas pesadas, tentando retirar-me a força e calar-me", lamentou a cantora numa publicação nas redes sociais. Ainda assim, Anne Guillou está confiante. "Não estou nada preocupada. A inteligência das mulheres que hoje têm 30 anos vai continuar a fazer avançar as coisas", acredita.