O medo da doença, a incerteza quanto ao futuro e a saturação de estar confinado em casa estão a afetar perigosamente a saúde mental dos portugueses. Em entrevista ao Modern Life/SAPO Lifestyle, Vera Machaz, psicóloga e mentora do projeto OFF!cina, que realiza consultas de psicologia, presenciais e virtuais, com uma abordagem inovadora, explica os impactos psicológicos da pandemia viral de COVID-19 no nosso quotidiano. "Tem vindo a aumentar exponencialmente a inquietação generalizada", alerta mesmo a especialista.

A pandemia tem deixado muitas pessoas com as emoções à flor da pele e os portugueses já lidam com ela há quase um ano. Com base no que têm analisado nas pessoas que procuram as vossas consultas, quais é que estão as ser as maiores consequências para a saúde mental dos portugueses?

A partir do momento em que todos nós ficámos com menos possibilidades de fuga às nossas fragilidades, fomos obrigados, desde o início, a ter de mudar comportamentos. Desde aspetos mais básicos de desenvolvimento pessoal até outros mais complexos, a mudança brusca que surgiu desta pandemia não só nos infeta como, acima de tudo, nos afeta. Afeta-nos a todos, sem exceção. De uma maneira ou de outra.

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A verdade é que, se antes podíamos camuflar algumas angústias, as alterações provocadas por este panorama obrigaram-nos a aprofundar, muitas vezes, o que deixámos à superfície. O medo e a incerteza levantam muros que não só nos tiram a real visão dos problemas como também nos assustam. Este desassossego pode distorcer o recurso natural à nossa capacidade de reação aos estímulos do exterior. Nasce o pânico e a ansiedade toma conta da normalidade. Tem vindo a aumentar exponencialmente a inquietação generalizada, pela ausência de controlo da situação em que vivemos. A falta de liberdade abriu portas a momentos de insatisfação compulsiva. O facto do número de infetados ser, tantas vezes, crescente tornou impossível a conquista de estabilidade.

Mesmo que da desordem nasça a ordem, como muitos costumam afirmar, a impossibilidade de vermos esta situação superada no momento gera aquilo a que, aqui na OFF!cina, chamamos de esgotamento emocional. Com a interação e com as relações estabelecidas, tanto a nível pessoal como profissional, altamente comprometidas por causa da pandemia, existe uma redução de processos de empatia que são necessários ao nosso bem-estar.

Os problemas detetados nos vossos atendimentos tendem a ser transversais ou notam consequências psicológicas da pandemia distintas em diferentes faixas etárias?

As consequências são distintas e variam de pessoa para pessoa, assumindo que os adultos trazem consigo um encargo acrescido de todas as responsabilidades que lhes competem. Nesse aspeto, não falamos só de contas a pagar, mas também de um equilíbrio familiar a sustentar. Aqui na OFF!cina costumamos dizer todos diferentes são mesmo todos diferentes.

O que pode ser muito destrutivo para uns não tem de o ser necessariamente para outros. Naquilo que temos vindo a acompanhar e a avaliar, o contexto familiar é a principal base que sustenta os distúrbios resultantes desta mudança. Famílias equilibradas, no que se refere à atenção e a alterações comportamentais entre pais e filhos, são e serão sempre famílias mais unidas. Aquilo que nasce da união não há pandemia que abale.

Relativamente ao contexto socioeconómico, que é outro aspeto que acabamos por analisar, é de concluir que pessoas com menos recursos estão a ser as mais afetadas na manutenção do dia a dia e nas despesas que suportam as suas necessidades. Como tal, é impossível comparar mudanças dramáticas com alterações de estilos de vida.

Utilizam, nas vossas consultas, um método que comparam a uma caixa de ferramentas. Como é que funciona e em que medida é que pode auxiliar os portugueses a ultrapassar esta fase de incertezas?

Nós, aqui, fazemos um paralelismo entre as ferramentas que existem numa caixa numa oficina e os nossos recursos emocionais, que são capazes de elevar ao expoente máximo o nosso desempenho. A nossa história é simples, objetiva e altamente emotiva. Dá prioridade ao facto do nosso cérebro precisar de uma linha de raciocínio. Era uma vez sete ferramentas que despertam o melhor que há em ti... Podíamos começar por aí.

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Curiosamente, mesmo antes disto acontecer, o nosso logotipo, onde se destaca a palavra anglo-saxónica off, já dava enfase à necessidade de nos desligarmos da imensa pressão das exigências do dia a dia para nos podermos conhecer melhor a nós mesmos. De facto, quando nos conhecemos, deixamos de nos pôr em causa. Esta mudança de atitude pode gerar um autorreconhecimento que produz, de forma quase automática, uma série de mudanças muito positivas que se refletem nas várias áreas de atuação da nossa vida. Desconstruímos a palavra off transformando-a na sigla da expressão "otimização das funções das nossas ferramentas".

Assim, cada ferramenta desperta a possibilidade de sairmos do alvo dos problemas para entrarmos no das soluções. O martelo está associado à ação de acertar, com o objetivo de nos pôr a acertar no alvo adequado. A lanterna ilumina e ilumina-nos a escolha de um caminho. A lixa está afeta à ação de pensar e à necessidade de analisarmos as preocupações. A trincha é a ferramenta da transformação, sublinhando a importância da mudança.

O alicate, outra das ferramentas que usamos, pela utilização que dele fazemos, materializa a ação de retirar, no sentido de removermos da nossa vida aquilo que não nos permite evoluir. Os pregos estão associados ao gesto de amar e têm a ver com a intenção que pomos nas coisas. Por fim, a fita métrica equivale ao relativizar e ao imperativo de aprendermos a perspetivar as coisas para valorizarmos aquilo que realmente importa.

O vosso método funciona da mesma maneira para os homens e para as mulheres e da mesma forma nas diferentes faixas etárias?

O nosso método, tanto em grupo como individual, quer na forma presencial como na virtual, funciona sempre com o principal intuito de promover a nossa agilidade emocional. Acreditamos que as emoções são como os músculos. Para se tornarem mais fortes, têm de ser trabalhadas. Mesmo que seja num breve momento, a OFF!cina deixa clara a possibilidade de cada um de nós poder, diariamente, afinar os seus recursos emocionais.

A nossa experiência indicia-nos que, quando se fala de afetos, sentimentos, traumas e desilusões e/ou do passado, do presente e do futuro, somos todos iguais. Todos temos uma história de vida que nos caracteriza e que, se não estiver arrumada na nossa cabeça e no nosso coração, pode gerar uma enorme confusão. Concluímos que grande parte dos nossos problemas estão relacionados com a falta de tempo para se investir no desenvolvimento pessoal. Pessoas mais felizes serão sempre pessoas mais produtivas.

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No que diz respeito às faixas etárias, trabalhar com crianças é sempre uma agradável surpresa, pela autenticidade e pela ausência de preconceitos na apresentação de fragilidades e de contextos de vivências. Por outro lado, cabe-nos a nós, adultos, validar e valorizar essa opinião tão ingénua quanto credível. São verdadeiros professores quando nos ensinam a lidar com as emoções, sem amarras e sem a necessidade que os mais velhos têm de esconderem o que lhes parece ser fora da caixa. É, muitas vezes, nessa diferença que reside a eficiência da agilidade dos afetos.

Os adolescentes são os mais provocadores e os que põem a maior parte da informação em causa. Quando se rendem à mnemónica que criámos com as ferramentas, qualquer hesitação da sua eficiência é substituída por um sorriso confortável. São o nosso público mais fiel e aquele que, com mais frequência, repete as visitas à OFF!cina. A magia do nosso conceito para estas idades começa e acaba quando os jovens percebem que as respostas que tanto procuramos estão, afinal, em nós.

Trabalhar com adultos, sejam eles homens ou mulheres, dá-nos sempre a possibilidade de partilhas muito produtivas e também proativas. Juntos, desconstruímos aquilo que, a maior parte das vezes, tem uma dimensão bastante maior do que a realidade. Foi dessa constatação que fomos fazendo ao longo do tempo que nasceu o nosso slogan, que é "eu transformo nós em laços".

Nas famílias, nas empresas, nas escolas e nas instituições onde têm aplicado este método, as necessidades que identificam têm sido basicamente as mesmas ou cada um destes universos está a ser afetado pela pandemia de formas distintas?

As necessidades são basicamente as mesmas e prendem-se com o controlo de ansiedade, com a projeção de um futuro incerto, com o poder dos nossos recursos emocionais, com a nossa capacidade de reação ao imprevisto e com a gestão de relações em permanência e/ou à distância. Nós, no nosso trabalho, não fazemos distinção entre a vida pessoal e profissional.

Criamos pontes sólidas entre estas duas vertentes e promovemos momentos de realização, mesmo num contexto contingente. O nosso desafio passa sempre por convidar as pessoas a viverem com aquilo que têm e a esquecerem aquilo que não têm. Fizemos um vídeo, durante a quarentena, que acaba com a frase "A melhor vacina para isto chama-se valorizar". Sabemos que os pensamentos levam à ação. Por isso, também trabalhamos o peso das palavras que usamos para enfrentar momentos difíceis.

Seja em que contexto for. A programação neurolinguística, que nós utilizamos na nossa atividade, é uma metodologia de transformação que alimenta a psicologia positiva e os processos de motivação e de automotivação. Mesmo num cenário em que pouco podemos controlar, os nossos pensamentos podem sempre ser disciplinados para contribuírem para o nosso bem-estar.

Em países como a França e a Espanha, tal como em Portugal, a violência doméstica entre casais e as agressões de pais aos filhos atingiram níveis alarmantes. Como é que, num cenário de limitações e de saturação como o que atualmente vivemos, estas situações se ultrapassam?

Ultrapassam-se partilhando e pedindo ajuda. De um minuto para o outro, fomos obrigados a ter de ficar fechados em casa, com toda a nossa estrutura posta em causa. Cada um, dentro da sua realidade, teve de viver o desespero de uma mudança abrupta, o que nos limitou em vários sentidos. As relações tóxicas não melhoraram. As relações superficiais afundaram.

Na ausência de outros alvos a abater, muitos recorreram à violência, agredindo os mais próximos. Os números são aterrorizadores e revelam muita falta de consciência. É, infelizmente, uma realidade triste e angustiante. Contudo, as vítimas têm, na maior parte dos casos, uma postura de submissão que já não se justifica nos tempos que correm.

Aqui na OFF!cina, apoiamos pessoas nesta situação por forma a criar alternativas que sustentem uma vida mais digna. A nossa intervenção está sempre relacionada com as possibilidades de cada pessoa. Se está a ler esta entrevista e é o seu caso ou se conhece alguém que precisa de sair de um desses cenários de abuso físico e psicológico, por favor entre em contacto connosco.

Apesar de já existir uma vacina, na realidade já existem várias, muitos especialistas afirmam que, antes do fim do verão deste ano, dificilmente assistiremos à normalização das nossas vidas. Num cenário de cansaço da pandemia como o que atualmente vivemos, como é que essa saturação pode ser combatida?

Com calma e com aceitação, com recolha e com resignação, com um sentido de vida e com uma intenção... Entre a nossa vida pessoal e profissional, existe uma pessoa que precisa de paz e de saúde mental para prosseguir. Essa pessoa somos nós próprios. Cada um com as suas preocupações, cada um com as suas limitações.

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Com medos e competências e, acima de tudo, com uma vida pela frente que nos coloca a todos num lugar de sobreviventes de uma pandemia viral que levou o mundo inteiro a um panorama que ninguém, alguma vez, pensou existir. Essa é que é a realidade! Estamos todos no mesmo barco e, nesta navegação, não há cunhas nem preferidos. Não há etnias nem religiões. Há pessoas que não sabem como vai ser o dia de amanhã e muitas delas perderam, para além do emprego, pessoas que amavam e que deixaram de existir. O controlo da saturação que sentimos tem, na minha opinião, de contribuir necessariamente para o bem de todos, sem exceção.

Procurar estar o melhor possível e estarmos disponíveis para quem está ao nosso lado são atos de higiene emocional, como nós aqui lhe chamamos. Investir no desenvolvimento pessoal, fazer desporto, criar opções e promover encontros dentro das limitações são formas acessíveis de vivenciar este momento difícil de uma forma menos pesada.

Também podemos contribuir, naturalmente, para a nossa felicidade quando proporcionamos momentos em família que nos levam a participar em jogos, atividades lúdicas que nos ajudam a desligar. A possibilidade de fazermos trabalhos manuais é outra forma de canalizarmos o nosso pensamento para o lado da criatividade.

A leitura leva-nos a viajar, mesmo que estejamos sentados no mesmo lugar. Arrumar e organizar a nossa casa será sempre uma forma de sentirmos o mesmo com os nossos recursos internos. Estes são apenas alguns exemplos. Há outros. Mas aqui fica a prova de que podemos contribuir naturalmente para a nossa felicidade...

Os efeitos da pandemia na saúde mental global ainda vão demorar muito tempo a resolver, antecipam os analistas. É também essa a sua noção? Consegue apontar um horizonte temporal para a esperada normalização?

A normalização desta situação está diretamente ligada à consciência de cada um. Relativamente à saúde mental, quer agora quer mais tarde, somos responsáveis e não vítimas no que diz respeito aos nossos hábitos. Bons hábitos geram bem-estar e maus hábitos geram mal-estar. Como referi anteriormente, cada caso é um caso, mas eu acredito num futuro em que se veja a vida de outra maneira, em que as pessoas deixem de dar tudo como adquirido.

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Acredito num futuro em que a gratidão substitua as queixas permanentes e tantas vezes injustificadas, porque, no fim, o que sobrar vai dar voz ao muito que se ultrapassou. Não seremos todos capazes de aguentar negócios ou de ter a família e os grupos de amigos completos. Por isso, também acredito que venha a surgir, desta época, uma consciência de solidariedade coletiva que até agora não vimos existir. A nossa saúde mental também é e será sempre reflexo das nossas escolhas.  Os profissionais das áreas de saúde de psiquiatria e de psicologia não existem só para os malucos, como alguns ainda acreditam nos tempos que correm.

Todos nós devemos ter a humildade de pedir ajuda num momento de desespero que nos leve a dormir mal, a engordar ou a emagrecer, a beber mais ou até mesmo a querer desistir de tudo. Apontar um horizonte temporal terá sempre de ser uma análise relacionada com os períodos de stresse pós-traumático, que se manifestam das mais variadas formas e consoante os contextos sociais. Saíremos desta pandemia mais fortes e mais unidos, estou convencida. Essa é, pelo menos, a nossa previsão aqui na OFF!cina.