Quando pensamos em Gucci, o que nos vem à cabeça? “Opulência, riqueza… É isto que me surge”, confessa a jovem designer Maria Carlos Baptista.

Mas há algo que o filme de Ridley Scott nos conta que a maioria das pessoas simplesmente desconhece. Inspirado na história real do império familiar da casa de moda italiana, o filme derrenrola-se ao longo de três décadas onde navegamos entre histórias de amor, traição, escândalo, decadência e até vingança levada a extremos.

Vamos perceber o que está por detrás do assassinato de Maurizio Gucci, neto do fundador, a mando da ex-mulher, Patrizia Reggiani, que em entrevistas chegou a assumir-se como a mais Gucci de todos, mesmo não sendo da família por sangue, mas por casamento. Uma história que chocou na época e que inspirou o livro “Casa Gucci: Uma História de Glamour, Cobiça, Loucura e Morte”, da jornalista Sara Gay Forden.

“Estou muito curioso com o filme. Vi o trailer recentemente e fiquei a pensar que tenho de investigar mais sobre a história da Gucci. Vou regressar a ela, depois de ver o filme”, confidenciou ao SAPO Lifestyle o criador Luís Onofre, assim como Maria Carlos Batista que também assume curiosidade em ver o filme. “É a abordagem à história de uma Maison extraordinária e conhecimento nunca é demais”.

Para Luís Buchinho a curiosidade é sobretudo pelo trabalho de Ridley Scott porque “é um realizador que fez as minhas delícias quando era mais jovem, com “Blade Runner”, nos anos 1980, e desde aí ficou marcado como alguém que respeito o trabalho, sem dúvida alguma. É uma história que conheço apenas pelas manchetes e tenho alguma curiosidade de saber o que se passou na realidade”.

Há muitas Gucci dentro da Gucci ao longo de 100 anos: a dos acessórios em couro, a dos motivos equestres, a clássica das estrelas de Hollywood, a de Tom Ford ou a de Alessandro Michele.

“Tem que ter uma grande capacidade narrativa e de reinvenção, no fundo estar a contar a mesma história, mas sempre de maneiras diferentes. É isso que é a essência de uma marca: tem de ter uma assinatura muito vincada porque ela vai ser apelativa pela linguagem gráfica e emocional que tem. Uma marca tem que se sempre muito fiel a si própria, conseguindo ser sempre um bocadinho diferente. É um bocadinho paradoxal, mas é mesmo isto que acontece”, resume Luís Buchinho.

Sendo este um ano de celebração, nunca é demais recordar um pouco da sua história.

De Florença para o mundo

Florença, a cidade dos Medicis, de espaços emblemáticos como as Galerias Uffizi ou da famosa Ponte del Vechio é a cidade onde nasce a Gucci. O fundador de uma das Maisons mais famosas da atualidade, Guccio Gucci é um florentino nascido, em 1881, que cedo emigrou para Londres e acabou a trabalhar num dos hotéis mais importantes da alta sociedade, o Savoy, em 1897. Foi aí que desenvolveu o seu gosto pelas malas da elite que frequentava este hotel e que mais tarde, em 1921, fez com que criasse a sua própria loja, onde trabalhava o couro sobretudo para o negócio das viagens. Afinal as malas que ele tanto admirava eram agora a sua maior inspiração e depressa conquistou essa mesma elite.

Não demorou muito para começar a desenvolver outros produtos, sobretudo de motivos equestres, e nasce aí uma das suas imagens de marca até hoje: o uso das riscas verdes e vermelhas. E começa também a expansão. De uma loja, para uma oficina, de Florença para Roma e Milão. A partir da década de 1930, com Guccio trabalham os filhos Aldo, Vasco e Rodolfo que têm o objetivo de fazer crescer a Gucci.

100 anos de Gucci. A história de uma marca icónica que sobreviveu a guerras (mundiais e de família) e que tem sabido reinventar-se
créditos: AFP or licensors

A II Guerra Mundial é o primeiro grande desafio da Maison. A guerra e posteriormente as sanções a Itália levam a família a procurar soluções para o racionamento do couro. A utilização de outros materiais como o algodão, o linho ou a juta tornam-se uma necessidade e o vestuário entra no universo Gucci, assim como o logotipo que até hoje é a identidade da marca: os dois G cruzados.

Em 1953 chegam a Nova Iorque, com a abertura de uma loja no Hotel Savoy Plaza – uma referência e uma homenagem ao local onde tudo começou, podemos dizer. E a partir daí, nada será como antes.

Uma marca icónica cheia de ícones

Como diz o ditado “a necessidade aguça o engenho” e a escassez da II Guerra Mundial faz nascer, em 1947, a “Bamboo Bag”, uma mala referência. Na altura foi uma lufada de ar fresco no mercado de luxo com a utilização do bambu japonês na alça da mala, que teve até direito a patente, em 1958. Um sucesso tão grande que se mantém até aos dias de hoje e que foi usada por estrelas como Carla Bruni, a Princesa Diana ou Beyoncé.

A abertura da Gucci em Nova Iorque catapulta a marca para o universo das estrelas de Hollywood. Elizabeth Taylor, Peter Sellers ou o dramaturgo Samuel Becket, são alguns dos nomes que se passeavam com malas Gucci. Mas quando Jaqueline Kennedy foi vista com uma, rapidamente a mala foi batizada de “Jackie”, como homenagem. Sophia Loren é outro nome famoso a usar a marca e está até representada no filme “Casa Gucci”.

Mas as referências não se ficaram por aí. Como forma de agradecimento a Grace Kelly, Rodolfo Gucci pede ao ilustrador Vittorio Accornero que crie um lenço com motivos florais para oferecer à Princesa do Mónaco. E assim nasce, em 1966, o padrão Flora, mais um ícone da marca que se mantém até aos dias de hoje e que foi reinventado de várias formas, servindo até de imagem a perfumes da marca. Em 2021, a fragância “Flora Fantasy” tem nada mais, nada menos que Miley Cyrus na campanha.

Na opinião de Ana Salazar, “essas peças, usadas por essas mulheres, conferiam um sinal de poder para muitas pessoas, mesmo em Portugal, no Brasil… no mundo inteiro. Esses anos foram uma época áurea para a Gucci”.

Quando os conflitos da família começam a interferir na Gucci

A chegada aos Estados Unidos revelou ser uma das decisões mais acertadas da família e a expansão continua com a entrada, nos anos 1970, no mercado asiático, com lojas em Hong Kong e Tóquio, assim como a oferta de novos produtos – óculos, relógios e joias começam a fazer parte do catálogo da Maison. Em 1981 é apresentada a primeira coleção prêt-a-porter e o céu parece ser o limite.

Mas… (há sempre um). Quanto mais a marca cresce, mais crescem os conflitos familiares, que começam a fazer parte do dia a dia da empresa. E é aí que entram os protagonistas do filme de Ridley Scott. Maurizio Gucci (protagonizado por Adam Driver), filho único de Rodolfo, consegue afastar um a um os elementos da família – primeiro os primos e por fim o tio Aldo (Al Pacino) – depois de herdar a parte do pai, em 1983, assumindo o controlo da empresa no ano seguinte. A guerra custa-lhe caro. A marca entra numa fase de estagnação, de dívidas avultadas e a falência da Gucci espreita. Em 1993, Maurizio lança a toalha ao chão e vende a sua participação à Investcorp, dando por terminada toda a relação da família com a empresa. A Gucci não é mais dos Gucci.

O destino de Maurizio também não será risonho: no ano seguinte é morto por um assassino profissional a mando a ex-mulher Patrizia, uma história que pode acompanhar no filme “Casa Gucci”.

O renascimento da Gucci na era Tom Ford

Depois de uma queda (constante) restavam dois caminhos para a Gucci: acabar ou dar a volta por cima. E a volta por cima tem um nome: Tom Ford. Mas falamos de um Tom Ford antes de ser “O” Tom Ford. Um ilustre desconhecido, com origem no Texas, que catapultou a marca e a colocou num patamar ainda mais elevado que nos seus melhores anos com uma mulher muito sexy, poderosa, dona de si.

Sob a liderança de Tom Ford, começa uma nova era na Semana da Moda de Nova Iorque
créditos: ANGELA WEISS / AFP

“É com ele que a marca se afasta da repetição dos seus padrões clássicos, arrisca novas cores, padrões e até uma atitude que muda completamente o ritmo de uma marca que estava um pouco adormecida”, constata Luís Onofre.

A chegada de Tom Ford à Gucci, em 1990, faz-se pela mão de Dawn Mello, que vinha da Bergdorf Goodman – um grupo com lojas de departamento de luxo -, e que foi contratada em 1989 para o lugar de diretora criativa da marca com o objetivo de voltar a colocar a Gucci no patamar de desejo de outros tempos. A passagem de Dawn Mello revela-se isso mesmo, uma passagem, pois regressa à origem em 1994, deixando o génio, que tinha sido contratado para desenhar as coleções prêt-a-porter, brilhar e a Gucci ganha aquilo que tinha perdido: relevância.

“Houve ali o afirmar de uma mulher muito forte, com um imaginário sensual muito inteligente, que me marcou muito, sem dúvida”, confessa Luís Buchinho, uma vez que “se olharmos para trás, aquelas roupas eram muito fáceis, muito vestíveis, mas faziam o contraponto perfeito entre o comercial e o inovador que é, sem dúvida, o mais difícil de conseguir numa marca de moda”.

Em conjunto com Mário Testino, assina campanhas publicitárias memoráveis (e também polémicas). Quem não se recorda do G depilado na zona púbica da modelo Carmen Kaas ou das palmadas que Kass levava do modelo Adam Senn em outra campanha. “Acho o Tom Ford um homem do marketing”, resume Ana Salazar. “Aquelas campanhas enormes nos anos 1990, com Mário Testino, com a mulher muito sexy, com o vestido preto e com um salto muito alto. Ele trouxe de novo muito dinheiro à casa Gucci”, conclui.

A relação com a Gucci termina abruptamente em 2004. Como nos divórcios das celebridades, diferenças irreconciliáveis terminam com o casamento de 10 anos. Mas o legado de Tom Ford perdura até aos dias de hoje. Foi “um renovar de uma imagem, com um styling tão forte e uma proposta com uma visão tão clara, que redefiniu o conceito de luxo italiano nos anos 1990”, assinala Luís Buchinho.

Ainda durante a era Tom Ford, novas mudanças na Gucci acontecem a nível empresarial numa disputa de poder entre o grupo LVMH de Bernard Arnault e o Pinault Printemps Redout – atualmente grupo Kering -, de François Pinault, com o segundo a sair vencedor, em 2001. Hoje a Gucci faz parte deste grupo que detém ainda marcas como Yves Saint Laurent, Bottega Veneta, Balenciaga, Alexander McQueen, entre outras.

Alessandro Michele eleva a Gucci a outro patamar

Diz o ditado que “rei morto, rei posto”, mas foram precisos 11 anos para que alguém voltasse a fazer a Gucci vibrar.

Com a saída de Tom Ford, Frida Giannini, com uma experiência anterior na Fendi, deixa a área dos acessórios da Gucci para assumir o lugar de diretora criativa. Revisita clássicos, como o padrão Flora, trazendo um certo romantismo e coloca a Gucci na televisão com campanhas assinadas por David Lynch. Cumpre o seu papel: não estraga o trajeto da Maison, mas também não entusiasma.

Com a sua saída, em 2015, abrem-se alas para deixar passar Alessandro Michele, mais uma figura secundária dentro da Gucci, com uma carreira de 12 anos dentro da Maison. De figurante a protagonista, torna-se uma presença marcante. “Ele lançou um imaginário muito lúdico, muito fashion, talvez com um elemento maior de extroversão que alguma vez a Gucci já teve. É o criativo mais arriscado, digamos assim”, considera Luís Buchinho tornando a Gucci “uma das referências criativas mais interessantes da atualidade”, acrescenta Luís Onofre.

A noite em que a necrópole de Alyscamps se transformou na passerelle da Gucci
créditos: BERTRAND LANGLOIS / AFP

Apesar de se identificar do ponto de vista criativo com outras marcas do grupo como Balenciaga ou Alexander McQueen, Ana Salazar confessa que “agora tenho um olhar diferente para a Gucci que jamais teria noutros tempos. Ainda usam muito os símbolos de antigamente, mas é uma coisa completamente louca, porque misturam muito esses símbolos”. “Recuperam um arquivo clássico com o qual brincam e cujos códigos subvertem”, constata Luís Onofre.

Escrevia o The New Times, em 2015, que a saída de Frida Giannini deixou Alessandro com uma batata quente nas mãos: a responsabilidade de terminar a coleção inteira em pouco mais de uma semana. Michele abraçou o desafio e entregou.

O próprio grupo Kering descreve-o como alguém com uma visão original e eclética em constante evolução e capaz de encantar tanto aqueles que já conhecem a Gucci, como os que estão a descobrir a marca pela primeira vez.

“As pessoas mais velhas que usam essa marca como estatuto, vão usar um cinto, uma mala. Mas não a roupa. Quem a veste são essencialmente rappers e pessoas mais jovens”, conclui Ana Salazar. Prova disso são os nomes de peso que se assumem como “Gucci lovers” onde se destacam, por exemplo, Harry Styles ou Billie Eilish.

“O tipo de roupa que agora fazem é para pessoas mais jovens, na casa dos 20, 30 anos. Em Paris ou Milão, as lojas têm filas à porta e não é para comprar cintos. É outro mundo”, constata Ana Salazar que completa: “Uma vez fui a Milão e achei muito engraçado pois via as pessoas vestidas com a roupa”, mas conjugada “com Birkenstock e soquetes”.

É impossível negar a inspiração que o trabalho de Alessandro Michele está a ter na indústria da moda. “Ele está a marcar uma era na Gucci e é bom porque nesta altura estamos a precisar de ser estimulados. E o facto de as pessoas estarem a reagir a esse trabalho, é um impacto muito grande”, confessa Maria Carlos Baptista, que relembra que a roupa que usamos é uma forma de comunicação. “Nota-se muito um elemento cêntrico e muito ligado a um movimento um pouco neo-hippie, um pouco cinematográfico, daquilo que são as propostas dos jovens criadores e isso pode ter uma quota parte de culpa do Alessandro Michele”, acredita Luís Buchinho.

A Gucci quer estar à frente do tempo e exemplo disso é a posição tomada em 2017 quando anunciaram que iam deixar de trabalhar com peles ou o compromisso de reduzir o seu impacto ambiental e social até 2025. “Neste momento têm uma grande preocupação com a sustentabilidade. O Alessandro Michele está a reciclar coisas de coleções anteriores, faz coisas muito engraçadas em que mistura coisas de designers mais jovens”, salienta Ana Salazar.

Num mundo tão concorrencial, cheio de marcas, “é preciso gritar um bocadinho mais alto e com mais cor para podermos ser notados em relação aos vizinhos do lado. A Gucci acompanhou muito bem o século XXI com a entrega da direção criativa a Alessandro Michele”, conclui Luís Buchinho, que não deixa de destacar outro ponto: “Parece-me que a Gucci, desde a contratação do Tom Ford, enquanto diretor criativo, é uma marca que respeita a visão das pessoas que contrata, deixa que façam a construção do imaginário muito fiel ao lado pessoal dos próprios diretores. E isso faz com que tenha uma identidade sempre renovada e muito respeitosa dos seus profissionais”.