Sabia que o mau controlo da diabetes pode resultar em problemas de saúde oral e que os problemas orais dificultam o controlo metabólico da diabetes? A Dr.ª Ana Rita Fradinho explicou-nos porquê e falou-nos de prevenção, tratamento e do seu recente estudo observacional focado nesta temática. No ano passado, depois de observar utentes da Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal (APDP), Ana Rita Fradinho concluiu que a prevalência da doença periodontal era de 82,7%. Segundo a médica dentista, os cuidados a ter com a higiene oral são simples e fáceis de integrar na rotina e os tratamentos são eficazes, por isso “as nossas pessoas mais idosas, e não só, estão a perder dentes de uma forma que seria evitável, porque não têm o controlo, não têm a ajuda, não têm os tratamentos que poderiam ter para evitar perda dentária associada a esta doença periodontal”.

HealthNews (HN)- É frequente pessoas com diabetes terem patologias da cavidade oral?

Ana Rita Fradinho (ARF)- As pessoas com diabetes podem ter uma série de comorbilidades associadas à doença, que estão essencialmente correlacionadas com o mau controlo metabólico, ou seja, com uma glicemia cronicamente elevada. Isto tem repercussões nas estruturas nervosas, nas estruturas vasculares e, obviamente, terá também, eventualmente, algumas repercussões na saúde oral. E estas repercussões são muito mais comuns do que aquilo que se fala comumente. As comorbilidades mais comumente faladas estão relacionadas com os olhos, com os pés, com os rins, mas efetivamente, numa fase até precoce do mau controlo da diabetes, pode haver consequências para a saúde oral.

HN- Qual a relação entre a saúde oral e a diabetes?

ARF- A relação está essencialmente no mau controlo metabólico. Isto quer dizer que um doente com uma diabetes bem controlada terá muito menos probabilidade de ter problemas gerais e, também, da saúde oral do que um doente mal controlado metabolicamente. Esta glicose alta no sangue vai-se refletir também numa glicose alta salivar, e isto está associado, por exemplo, a um aumento de incidência de cárie dentária, de xerostomia, que é a sensação de boca seca, que pode estar correlacionada com a medicação que se toma para o controlo da diabetes, um aumento da incidência de infeções fúngicas, nomeadamente a conhecida candidíase – isto porque nós temos presentes na boca alguns fungos que se vão hiperdesenvolver mais facilmente com uma glicemia elevada. Também temos algumas alterações neurosensoriais, que já têm a ver com a neuropatia periférica associada à diabetes, que podem levar à síndrome de boca ardente, que é uma sensação de dormência, ardência e boca seca. Podem ocorrer problemas ao nível da cicatrização, tal como acontece nas outras zonas do corpo. A cicatrização, aquando de uma ferida da cavidade oral, seja por uso de prótese, seja por extração dentária ou outro tipo de cirurgia, poderá eventualmente estar mais atrasada. E temos também a patologia mais estudada e associada à diabetes, que é a doença periodontal, que afeta as estruturas de suporte dos dentes, nomeadamente o osso e a gengiva, e que vai fazendo com que osso vá reabsorvendo e a gengiva retraindo, os dentes vão perdendo suporte e, eventualmente, ocorre perda dentária ao longo dos anos.

HN- A saúde oral nos diabéticos tem sido subestimada?

ARF- Penso que a saúde oral nos diabéticos tem sido subestimada, embora cada vez mais seja uma temática presente, até em congressos da área da endocrinologia. Acho que há um aumento da atenção dos clínicos em geral para esta temática. No entanto, é, sem sombra de dúvida, a área menos estudada em relação às comorbilidades da diabetes. Todos nós já ouvimos falar do pé diabético, todos nós já ouvimos falar dos problemas da visão, dos problemas dos rins que os diabéticos têm, isso é amplamente difundido pela comunidade em geral. A parte da saúde oral tem vindo a ser mais estudada, falada e desenvolvida, mas ainda está um bocadinho no desconhecido daquilo que é a opinião pública, sem sombra de dúvida, e mesmo nos especialistas, é uma temática que começa só agora a ser abordada.

HN- Porque é que a saúde oral nos diabéticos ficou para trás?

ARF- A saúde oral é uma área que se tem desenvolvido muito em paralelo ao resto das áreas da saúde. É uma área que se destacou desde cedo e que tem uma formação própria. A medicina dentária, de uma forma geral, é uma área mais recente da medicina, mas, também, se nós pensarmos naquilo que são as consequências de uma má saúde oral e se compararmos com as consequências daquilo que são a perda de visão, a amputação dos membros, problemas renais, obviamente todos têm a sua importância, mas conseguimos perceber que a comorbilidade associada à saúde oral será sempre inferior. Eu penso que por aí, por não ser uma situação life-threatening, tenha sido uma área menos abordada. Mas agora, como a história da medicina dentária e da saúde oral está a desenvolver-se em todos os seus parâmetros, começou a dar-se mais de atenção a esta área. Aquilo que é fundamental para um doente diabético e para um bom controlo metabólico, que é não só a medicação, mas também a alimentação, passa por ter uma boca sã. Se não tivermos dentes, ou se tivermos problemas orais que nos dificultam a alimentação, também vamos ter um controlo metabólico da diabetes dificultado.

HN- Que cuidados devem os diabéticos ter com a higiene oral? Há diferenças em relação aos não diabéticos?

ARF- É muito importante esclarecer que as pessoas com diabetes não devem ter cuidados diferentes da população em geral. Ou seja, é importantíssimo que qualquer indivíduo, tenha diabetes ou não, tenha cuidados de higiene oral como os que eu vou referir a seguir. No entanto, sabemos que, se temos uma predisposição a algum tipo de problema de saúde oral – como é o caso da pessoa com diabetes -, esta importância torna-se vital. Estas práticas são bastantes simples e fáceis de integrar no nosso dia a dia, e são a escovagem duas vezes por dia, limpeza da língua, com recurso à escova de dentes ou, preferencialmente, a um raspador de língua, e a limpeza interdentária, com recurso a fio dentário e escovilhão. Existem agora no mercado alguns agentes químicos, como pastas de dentes, elixires, géis ou sprays direcionados para a população com diabetes, que podem ajudar. Se fizermos isto tudo duas vezes por dia, não só vamos minimizar a incidência da patologia periodontal, como também minimizar a incidência de todas as outras comorbilidades, como a cárie e as infeções fúngicas. Portanto, ter uma higiene oral é fundamental para a população em geral e em particular para as pessoas com diabetes.

HN- Qual o impacto das patologias da cavidade oral no dia a dia dos doentes com diabetes?

ARF- O impacto é uma diminuição da qualidade de vida, que se reflete em termos de bem-estar emocional. Depois há interferência com a parte mecânica, com a alimentação, com a nossa fonética, com a nossa capacidade de falar. Portanto, interfere com a forma como nos relacionamos com os outros e interfere com a forma como nos alimentamos. É fundamental, para um bom controlo de uma pessoa com diabetes, ter uma boa alimentação, uma alimentação variada e que seja (um nutricionista dirá muito melhor que eu) rica em alimentos fibrosos, em vegetais, em cereais, e isso tudo tem de ser muito bem mastigado. Se o doente tem falta de dentes ou dor, ou se tem muita mobilidade dentária e não consegue mastigar bem, isto vai ter um impacto, em última análise, no seu controlo metabólico.

HN- A população em geral está sensibilizada para esta problemática?

ARF- Eu diria que não. Eu diria que ainda temos de fazer um longo caminho, não só nós, médicos dentistas e especialistas na área, mas também com os clínicos de medicina geral e familiar, que são quem acompanha uma grande fatia dos nossos doentes com diabetes, e os endocrinologistas. Eu diria que é uma área em que nós temos de sensibilizar mais, de prevenir mais. Se pensar que uma criança com diabetes tem um acompanhamento do seu endocrinologista, este poderá não estar tão sensibilizado para isto, mas se a criança vai ao seu odontopediatra, ao seu médico dentista especialista em crianças, e esse já está mais sensibilizado e ajuda, aqui é um trabalho de equipa. Se temos um médico de medicina geral e familiar que já está alerta, ou se o médico dentista também já sabe que a pessoa tem diabetes e que está mais exposta a determinadas patologias, o diagnóstico e a triagem vão ser muito mais eficazes.

HN- Qual o objetivo do seu recente estudo sobre esta temática?

ARF- Houve um trabalho que foi desenvolvido em parceria com os laboratórios Biojam, que foi a apresentação de um webinar, daquilo que seria o estado da arte, a atualidade do que se sabe sobre a importância da higiene oral em pessoas com diabetes. Foram abordadas quais são as complicações orais mais associadas à diabetes, como prevenir e os tratamentos que podem ser feitos a nível de gabinete.

No ano passado, desenvolvi um estudo em parceria com a Faculdade de Medicina Dentária da Universidade de Lisboa e a Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal (APDP), com o objetivo de caracterizar aquilo que era a saúde periodontal de alguns utentes da associação. A APDP vê pessoas de todas as faixas etárias e de todo o país; tem uma representatividade muito importante ao nível do que se passa com os nossos doentes com diabetes em Portugal. Depois dessa observação, concluiu-se que a prevalência da doença periodontal foi de 82,7%. Portanto, 82,7% das pessoas observadas tinham algum grau de doença periodontal. É importantíssimo termos a noção que mesmo nas pessoas seguidas na APDP – que são seguidas sob um regime bastante controlado e seria de esperar que tivessem um controlo metabólico acima da média, em comparação com doentes seguidos noutros regimes – existe uma incidência de quase 83% de doença periodontal.

É muito importante sabermos que as nossas pessoas mais idosas, e não só, estão a perder dentes de uma forma que seria evitável, porque não têm o controlo, não têm a ajuda, não têm os tratamentos que poderiam ter para evitar perda dentária associada a esta doença periodontal, que acaba por surgir muito mais com o avanço da idade, assim como a diabetes. A diabetes tem uma incidência que aumenta com a idade e anda de mãos dadas com a incidência da doença periodontal. Quando não há um controlo metabólico da diabetes, a severidade da doença periodontal aumenta. Portanto, temos aqui uma perda mais severa de osso, uma perda mais severa de gengiva, o que vai levar a uma perda dentária mais evidente.

HN- Quer destacar outros resultados?

ARF- A presença de gengivite foi muito mais baixa: cerca de 7,4%. Das pessoas com doença periodontal, a maioria tinha uma doença periodontal moderada. A severidade da doença periodontal aumentou à medida que aumentou a idade dos intervenientes. Seria de esperar que o exame que traduz o controlo metabólico dos doentes apresentasse diferenças significativas entre os grupos de saúde e de doença periodontal, mas não conseguimos fazer essa correlação, provavelmente porque a amostra não foi grande o suficiente.

Não havia nenhum estudo deste género feito em Portugal. Acreditamos que deve ser um projeto de investigação para continuar, talvez multicêntrico, em outras áreas do país, em outros centros que veem diabéticos, para termos o retrato da saúde oral dos nossos doentes com diabetes.

HN- Quer deixar alguma nota final?

ARF- É fundamental a pessoa que tem diabetes procurar o seu médico dentista e informar da sua doença. Se não informarem, os colegas não estarão tão alerta para o diagnóstico precoce destes problemas. Porque, como disse, todos eles têm tratamento, e o tratamento destes problemas de saúde oral vai forçosamente melhorar o controlo metabólico destes doentes, porque vai contribuir para uma saúde geral. É fundamental as pessoas procurarem ajuda. É muito importante para a população em geral e em particular para as pessoas com diabetes ter um controlo periódico do médico dentista, seja anual ou semestral.

Entrevista de Rita Antunes