HealthNews (HN) – Como explica esta “antecipação”?

André Biscaia (AB) – Penso que é porque ainda não estamos no dia 31 de janeiro. Acho que estão a aguardar para posteriormente anunciar o tipo de modelo.

HN – Mais 28 Modelos B. É o bastante?

AB – A principal crítica que vejo a esta reforma que se iniciou em 2005 é o tempo que levou a conseguir generalizar o modelo B. Se não se tivesse imposto quotas penso que já teríamos 90% da população coberta por USF.

HN – Significa que com mais unidades modelo B seria possível alargar o número de utentes com médico de família?

AB – Sim. Trata-se de um objetivo fazível. E fazível até ao final deste ano. É claro que o grande problema que se coloca aqui são as instalações. Tirando isso, este objetivo é perfeitamente tangível. Temos médicos de família, enfermeiros e secretários clínicos suficientes no mercado.

Temos que criar um esquema de incentivos de atração e retenção que não carreguem problemas em si próprios. Por exemplo, o facto de se ter associado incentivos de fixação às UCSP leva a que recém-especialistas não queiram evoluir para uma USF porque perdem um incentivo importante. Portanto, os incentivos têm que ser pensados conforme os objetivos de funcionamento do sistema de saúde.

HN – Mas se se tratasse de uma passagem para modelo B isso deixaria de ser um problema. Ou não? Não faltariam interessados, mesmo que perdendo os tais incentivos de fixação.

AB – Sim. Aquilo que nos propomos, e penso que está previsto, é que se passe diretamente de UCSP para USF modelo B.

HN – Como é que isso é possível? A lei diz expressamente que têm que cumprir as regras do decreto de lei, designadamente: “O processo específico de avaliação tem de se encontrar completo e as unidades têm de cumprir os requisitos estabelecidos no Despacho n.º 24101/2007, de 8 de outubro, publicado no Diário da República, 2.ª série”.

AB – É possível e foi o que aconteceu no início. No princípio da reforma houve algumas passagens, depois houve um momento de maturação mas, por exemplo, as unidades que estavam em Regime Remuneratório Experimental entraram logo. Não me lembro exatamente de como se processou a questão da retribuição, mas esta foi rapidamente para modelo B. Portanto, é algo que é possível e penso que é o que está planeado. Em suma, passava-se diretamente de UCSP para USF modelo B. Até poderia ser feito num período experimental de três anos.

HN – Por que três anos?

AB – Porque há indicadores que são a três anos. Portanto, se se conseguisse provar resultados positivos, estas unidades mantinham-se, caso contrário poderiam regredir para o modelo A.

Um salário em regime remuneratório de modelo B já permite, em regiões como Lisboa e Vale do Tejo e o Algarve, pagar o arrendamento de uma casa ou mesmo um crédito à habitação. Portanto, era um incentivo que, de certa maneira, potenciava aquilo que se pretende do sistema – que é cobrir o país de Unidades de Saúde Familiar.

HN – Existe alguma ideia do que é que se pretende alterar no modelo B?

AB – A USF-AN ainda não foi recebida pelo atual ministro da Saúde. Já fomos recebidos pela Direção-Executiva do SNS para apresentar projetos e ideias, mas ainda não se discutiu em concreto as alterações ao modelo B. De qualquer maneira, a USF-AN fez as suas propostas. Algumas delas têm vindo a ser acatadas, como foi o caso da passagem de UCSP para USF modelo B. É uma medida que poderá fazer sentido nesta fase e que poderá ser capaz de atrair de forma imediata os profissionais.

HN – O problema é que a passagem de modelo A para B pode levar muitos anos…

AB – A média é mais ou menos de oito ou nove anos, sendo que há unidades que chegam a esperar 14 anos. Isto faz com que muitos desistam, ao mesmo tempo que dá a ideia de que nem vale sequer a pena candidatar-se.

Aquilo que vimos no ano passado foi que quando se passaram ao modelo B aquelas que aguardavam, houve uma avalanche de candidaturas. Neste momento há mais de uma centena de candidaturas entre A e B.

HN – Não considera que a diferença de salário entre o modelo B e os outros modelos é excessivo, tendo em conta que um médico que esteja no topo da carreira com 35 horas de exclusividade, em modelo B, recebe por mês 7.278,49 euros. É mais do que aquilo que o Presidente da República ganha.

AB – Esse valor é o teto máximo.

HN – Mas é um ordenado que se tudo for cumprido é possível alcançar…

AB – Sim, mas 40% deste valor está dependente da carga de trabalho e do atingimento de objetivos de qualidade que podem não ser atingidos.

HN – Tampouco deixaram de ser pagos por não serem atingidos objetivos.

AB – Aquilo que nunca se diz é que estes profissionais de saúde podem ganhar menos. Ou seja, se falhar tudo ganha-se menos do que as pessoas que estão em USF modelo A. Quando realizamos o estudo “O Momento Atual da Reforma dos Cuidados de Saúde Primários em Portugal” verificamos que 7% das USF modelo A não querem avançar para modelo B exatamente por causa disso.

HN – Voltando à tabela remuneratória modelo B, o ordenado pode chegar aos 8.806,18 euros para o assistente sénior 3.

AB – Mas para isso é preciso muita coisa, formar internos, ter funções de coordenador e estar no topo da carreira, que é algo quase impossível. Não abrem concursos. Eu, por exemplo, poderia já estar no topo da carreira há dez anos.

O problema não deveria ser se os médicos ganham mais ou não. Há uma série de profissões que ganham muito pouco… Este ordenado o que tem do bom é que é concorrencial com o setor privado e até com o estrangeiro. Lembro que, ainda assim, há países que pagam o dobro ou o triplo deste valor.

HN – Mas Portugal não tem as mesmas capacidades económicas e financeiras que têm países como o Reino Unido ou os Países Baixos.

AB – Sim, mas continuamos a precisar de médicos de família. De qualquer forma, este ordenado tem a ver com o valor que é dado às funções desempenhadas, a responsabilidade e a carga de trabalho. Na verdade, esta carga de trabalho é superior nas USF modelo B, o que é algo de que também não se fala. O nosso trabalho não se limita apenas à vertente clínica, nós fazemos o trabalho administrativo e de gestão que deveria ser feito por outras pessoas. Toda a vertente organizacional é tida em conta na remuneração.

HN – Como é que vai ser possível criar USF em sítios onde há excesso de utentes sem médico de família?

AB – Pois… Existe um limite. Portanto, a única solução passa por criar mais USF e mais instalações nesses sítios. É preciso que o poder local atue neste sentido e posteriormente se criem mecanismos de atração. Sabemos que o modelo B é muito atrativo.

HN – Em relação ao geral é muitíssimo atrativo

AB – Sim. Foi por isso que se conseguiu que aumentasse o número de médicos a escolherem a especialidade de Medicina Geral e Familiar e a ficarem no SNS durante muitos anos. Quando é que isto começou a parar? Quando começou a haver quotas para o modelo B e com as pessoas a esperarem em média nove anos para passarem de modelo A para B. Não é razoável. Aquilo que a USF-AN quer é que as pessoas consigam entrar diretamente no modelo B.

HN – Como é que uma UCSP com lista de utentes sem médicos de família se consegue transformar numa USF modelo B?

AB – Tem que ter mais equipas de saúde familiar.

HN – Mas não há médicos…

AB – Nós fizemos o nosso trabalho, formámos 450 médicos de família, sendo que 75% foram formados em USF. Se tivéssemos conseguido absorver, nos últimos três anos, estes profissionais, não teríamos hoje este problema.

HN – Atualmente estão em condição de se reformarem em 2023 até 500 médicos de Medicina Geral e Familiar…

AB – Por isso mesmo não deveríamos ter perdido o número de médicos que perdemos nos últimos tempos. E não os retivemos porquê? Porque não lhes foram dadas condições de trabalho.

Nós fizemos o nosso trabalho, aumentámos a formação até ao número que era necessário (os 450). Se os tivéssemos conseguido manter no SNS não estaríamos a assistir a todos estes problemas. Este é o resultado das escolhas políticas adotadas nos últimos anos.

HN – No seu entender estes 450 médicos teriam ficado no SNS se tivéssemos mais unidades modelo B?

AB – Sim. Já vimos que com UCSP e USF modelo A não se está a conseguir reter os médicos. Não vale a pena insistir num modelo que não funciona e é por isso que sugerimos que todas as USF passem para o modelo B.

HN – Há uma outra questão que suscita alguma divisão de opiniões e que tem a ver com o facto de os médicos das UCSP terem uma carga horária maior do que aquela que têm os médicos das USF modelo B. Qual a sua resposta a estas críticas?

AB – A carga horária depende das UC… Nas USF modelo B vai havendo aumentos… Chegando por vezes a mais de 1900 utentes por lista.

HN – Mas há um limite.

AB – Sim, mas nunca mandamos ninguém para trás. Na USF Marginal nunca aconteceu.

HN – Nesta pode não ter acontecido, mas o HealthNews sabe que existem utentes a serem expulsos das suas USF. Há uns dias ouvimos o relato de uma família que foi “posta na rua” após a aposentação do seu médico de família…

AB – Isso é outra questão. Trata-se da aposentação de um médico e a equipa nem sempre consegue continuar a absorver.

Um dos problemas que temos é o atual sistema de intersubstituição. A lei diz que nos casos de ausência por gravidez ou parentalidade temos que substituir os profissionais sem que venha ninguém de fora. São períodos de ausência que podem chegar até um ano e isso dá cabo de qualquer equipa. Trabalhamos com listas de utentes muito grandes. Eu tenho mais de 1.900 pessoas na minha lista. Este é o limite para as condições que me são dadas – um sistema informático que não é o melhor, ausência de psicólogos e dentistas. E se a isto se adicionar a intersubstituição fica tudo mais difícil senão mesmo impossível.

HN – Mas há constatações que suscitam alguma perplexidade. As unidades modelo B garantem consultas em quinze dias úteis quando este período deveria ser no máximo de cinco dias. Como se explica esta diferença?

AB – Há alturas do ano em que as capacidades de atendimento do médico são excedidas. No final do ano tivemos um pico de procura que impediu garantir o tempo estimado para a realização de consultas. De qualquer forma, as USF têm esquemas que funcionam como “tampão”. Temos quatro horas de intersubstituição todos os dias no final dia, em que dois médicos dão seguimento a tudo aquilo que ficou pendente e que deve ter uma resposta naquele dia. Funcionamos assim desde o início. Nunca mandamos ninguém para trás.

HN – Sobre o sistema informático, concorda que haja apenas um único sistema para todo o universo ou poderiam aceitar-se, desde que compatíveis, outros programas? A maioria dos médicos queixa-se que o SClínico é pouco funcional.

AB – É verdade. Em algumas USF chegou a haver mais de cinquenta falhas num ano. Embora atualmente esteja mais estabilizado, este problema torna a atividade clínica quase impossível. Achamos que o sistema tem que exigir um referencial de base. A nossa interface pode ser providenciada por outros desde que consiga fazer a sua ligação com tudo o resto e respeite os parâmetros. Portanto, não vemos como vantagem existir apenas um sistema.

O “Medicine One”, que era o que usávamos, tinha uma série de funcionalidades que não conseguimos ter neste (SClinico). Por exemplo, a questão das agendas, que é fundamental, no SClinico ainda está a um nível “pré-histórico”. Isto cria imensos problemas. No estudo “O Momento Atual da Reforma dos Cuidados de Saúde Primários em Portugal” abordamos esta questão da interoperabilidade. Os médicos são obrigados a trabalhar em dois, três ou quatro programas para poder fazer o seu trabalho. Apesar disso, o nosso sistema é muito melhor quando comparado com o de países como a Inglaterra.

A USF-AN tem mantido reuniões com os técnicos dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS) para ir resolvendo problemas com o sistema informático. Há algoritmos que estão desatualizados e que estamos a tentar atualizar. Por outro lado, temos trabalhado a parte da segurança, estando previsto alertas em caso de alergias e de interações medicamentosas.

HN – O ministro da Saúde assumiu a possibilidade de virem a ser criadas USF modelo C. Por que razão esta questão não levanta consenso?

AB – Deve-se à experiência dos outros países. Há estudos que relacionam a privatização a um aumento da mortalidade. Também sabemos que quando se abre a porta da privatização começa a haver desvio de recursos.

HN – Não considera que seria uma forma de captar médicos que estão a querer sair do SNS ou mesmo os que já estão fora?

AB – Consegue-se fazer isso com as USF modelo B. Quando tínhamos este modelo a funcionar em pleno no início da reforma e quando não havia quotas conseguíamos atrair o número necessário de médicos. Portanto, se olharmos para aquilo que realmente tem funcionado em Portugal verificamos que quando se aumenta o número de USF modelo B, ou quando se dá sinais nesse sentido, há maior capacidade de atração.

A criação de USF modelo C seria dar um tiro no escuro. Não há dados ou evidência que demonstrem os benefícios.

HN – Quando as primeiras USF foram criadas também não havia dados…

AB – Isso não é verdade. O processo de criação das USF foi conduzido com muito planeamento. Houve uma série de experiências preparatórias, como os modelos Alfa e os RRE e só depois é que se avançou com as USF.

HN – Portanto, a USF-AN não vê qualquer utilidade na implementação de unidades modelo C…

AB – Não vejo qualquer tipo de utilidade e o Parlamento foi claro na rejeição dessas propostas. Até porque a população não votou para que houvesse uma privatização dos cuidados essenciais. Estes devem estar disponíveis sem qualquer constrangimento para toda a população. Se olharmos para estudos da OCDE vemos que Portugal tem dos melhores índices de mortalidade evitável.

HN – E a entrada das USF modelo C poderia colocar estes índices em causa?

AB – Se temos um modelo que funciona por que razão haveríamos de dar um tiro no escuro? É um risco. Quando se decidiu a privatização dos hospitais o que é que houve? O marasmo dos hospitais públicos.

Quando se fala nesta crise nos serviços de urgência hospitalares é dito que os cuidados de saúde primários não estão a funcionar mas, eventualmente, aquilo que não está a funcionar são os serviços hospitalares. Há provas da OCDE que indicam que os cuidados de saúde primários estão a funcionar e muito bem. Portanto, tem que se começar a pensar de outra maneira. Os cuidados hospitalares têm que ser pensados. Como os hospitais não estão organizados para dar resposta a problemas agudos, os doentes crónicos divergem todos para os serviços de urgência.

HN – O presidente da APMGF disse que o alargamento dos horários dos centros de saúde não estava a ter impacto no alívio da pressão das urgências.

AB – Tampouco funcionou no passado. Basta olhar para o passado.

HN – Porquê?

AB – O problema das urgências é uma questão muito complexa. Por exemplo, os utentes não estão habituados a consultar sites como o Portal do SNS, para se informarem sobre acessibilidade. São questões culturais.

Por outro lado, se formos ver as pessoas que fazem as urgências hospitalares verificamos que são médicos indiferenciados. Isso faz a diferença. A maior parte dos doentes que são considerados “não urgentes” sai do hospital com um hemograma e análises feitas. Ou seja, se realmente era um doente “não urgente” porque fizeram os exames? Há muitas incongruências.

A única maneira de resolver isto é com uma cobertura da população por equipas de saúde familiar e listas que sejam compatíveis com os recursos que são disponibilizados a essas equipas. Portanto, a solução para as urgências passa por cobrir todo o país com USF modelo B com equipas a trabalhar em condições otimizadas – um bom sistema informático, equipas alargadas compostas por psicólogos, dentistas e fisioterapeutas. Por outro lado, é preciso que haja hospitais que funcionem; em que os doentes não estejam dois ou três anos à espera de uma consulta hospitalar e que tratem da agudização dos seus doentes crónicos. O que o sistema precisa é que os hospitais funcionem. Os cuidados de saúde primários funcionam bem e poderiam funcionar melhor se não fossem algumas escolhas políticas. A questão das quotas fez uma travagem àquilo que poderia ter sido uma cobertura total de utentes por USF.

HN – A Direção Executiva do Serviço Nacional de Saúde está a elaborar os planos de negócio para quatro novas Unidades Locais de Saúde (ULS), passando o SNS a dispor de 12 unidades. Qual a sua opinião?

AB – Trata-se de um outro problema. É uma decisão que não está baseada em evidência. Não há provas que demonstrem que as ULS funcionem. Não há nenhum estudo que indique que esta integração vertical da gestão permite atingir os objetivos programados. E se não se conseguiu provar nestes 22 anos, é porque possivelmente não conseguem.

A Entidade Reguladora da Saúde comparou o bloco de serviços de ULS com o bloco de serviços que estão fora das ULS e concluiu que não havia vantagens.

Há, sim, imensos estudos qualitativos de opinião que dizem que o modelo é bom, mas quando se chega à parte quantitativa não se verificaram benefícios. Sabemos que houve um estudo da ULS de Matosinhos, mas que ninguém conhece. A USF-AN quer ter acesso a esses estudos e ser convencida de que funcionam. Estamos abertos a isso. O sistema de comando e controlo não funciona. Temos 607 USF que funcionam de forma oposta ao sistema de comando e controlo.

Achamos muito perigoso que se avance sem haver uma justificação baseada na evidência.

Entrevista de Miguel Múrias Mauritti

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