O presidente da Associação Portuguesa de Enfermeiros em Dermatologia (APEDerma), Miguel Teixeira, defende que a criação de uma consulta de enfermagem beneficiaria os doentes com psoríase. Segundo o enfermeiro, os utentes deveriam ser acompanhados por equipas multidisciplinares, “com enfermeiros, médicos, nutricionistas e psicólogos”, sendo que “o mote não deve ser tratar uma psoríase, mas um doente que tem psoríase”. Miguel Teixeira considera que “o público pode oferecer este nível de cuidados, só tem de atuar ao nível do planeamento e dos indicadores em saúde”.

HealthNews (HN)- Que repercussões pode ter a psoríase no dia a dia dos doentes?

Miguel Teixeira (MT)- A psoríase é uma doença que se manifesta na pele, portanto as repercussões podem ser a vários níveis. Além dos sintomas, existe o estigma, porque como se trata de uma doença que é muito visível aos outros, muitas vezes as pessoas associam isto a infeções, a contágios, e então não se aproximam destes doentes, que muitas vezes vão ficando mais isolados. Além disso, também vai mexer com a autoestima, porque se temos algo em nós que causa repulsa nos outros e os leva a um afastamento, a forma como nos vemos e a própria relação com essas pessoas pode ficar afetada. Portanto, é uma doença inflamatória sistémica, vai-se manifestar na pele, há sintomas e preconceito social, e as relações sociais, bem como a autoestima, podem ser afetadas.

HN- Portanto, pode ter várias repercussões a nível de saúde mental?

MT- Isso mesmo. Por exemplo, vários estudos mostram-nos que os utentes com diagnóstico de psoríase moderada a grave têm mais ansiedade e depressão do que a população em geral. Mesmo nós, quando trabalhamos com estes utentes a nível hospitalar e a nível privado, utilizamos instrumentos de avaliação da qualidade de vida, para perceber como é que a doença afeta o doente, sendo que estes utentes têm muitas alterações a nível das suas sensações, tal como prurido e dor, na sua interação social com amigos e desconhecidos e até mesmo no desempenhar das suas tarefas do dia a dia. Há uma relação direta com a psoríase e acredito que com a forma como a pessoa vivencia a sua doença.

HN- Qual a melhor forma de evitar ou reduzir o sofrimento psicológico destes doentes?

MT- Se existe sofrimento, temos de perceber a sua causa. Ele pode ser causado, por exemplo, por baixa autoestima. O conceito que o doente tem dele próprio muitas vezes surge associado a um agravamento do estado da sua pele e a uma alteração do seu aspeto. Como o doente não se sente bem consigo, uma das estratégias adaptativas é não estar com os outros, pois está sempre a descamar, com a pele seca, com prurido e a ver os outros a afastarem-se ou a fazerem imensas perguntas acerca do seu problema. Portanto, primeiro temos de conhecer o nosso doente, perceber porque é que na situação dele aquela doença está a causar aquela repercussão emocional e, depois, temos de tratar o doente como caso único que ele é. Se nós fizermos esta avaliação em saúde mental, talvez cheguemos a alguns resultados interessantes. A dermatologia é a especialidade médica mais indicada para o seguimento destes casos, no entanto, na minha opinião, deve constituir-se uma equipa multidisciplinar para o seguimento destes doentes, onde se irá trabalhar mais do que a pele, porque há uma ligação com outros sistemas e com outros fatores.

HN- Quais os principais desafios que os profissionais de saúde que acompanham estes doentes enfrentam?

MT- A minha perceção é que os profissionais de saúde trabalham muito isoladamente. Falamos em equipas multidisciplinares, mas na prática torna-se difícil esta abordagem de forma estruturada e equitativa para todos os doentes. Sempre que vou a um congresso há uma mesa que vai ao encontro desta visão holística e das boas práticas e é composta por um médico, um enfermeiro, um psicólogo, um farmacêutico, um nutricionista… só que na prática é muito difícil ativar estes circuitos compostos por vários profissionais.

A dificuldade da enfermagem é que nós não temos a nossa consulta estruturada. Se um doente chega até mim para lhe administrar apenas um fármaco ou para o colocar dentro de uma câmara para realizar fototerapia, eu não estou a fazer o seu seguimento em consulta, logo não tenho autonomia, nem vou fazer um conjunto de avaliações que podem ser pertinentes. Acho que isso é uma lacuna. A solução pode passar pela criação de uma consulta de enfermagem, onde podemos ter várias intervenções, desde fazer uma avaliação sistematizada e adequar estratégias a nível da literacia em saúde, adesão ao processo terapêutico, identificação de comorbilidades, necessidades de referenciação para outros profissionais de saúde, entre outros. Íamos dar foco ao doente e não a um diagnóstico, ao avaliar e valorizar os níveis de ansiedade, a autoestima, o excesso de peso, a disfunção sexual. Poderíamos referenciar ao médico dermatologista e, se houvesse necessidade, logo nesta primeira fase, pedir colaboração de nutrição, psiquiatria, psicologia, para tratar o doente como um todo.

Existem medicamentos, terapias e abordagens que fazem parte das boas práticas. Temos de conseguir estruturá-las e disponibilizá-las aos nossos doentes. O desafio para os profissionais de saúde é trabalhar em conjunto, é criar equipas multidisciplinares com enfermeiros, médicos, nutricionistas e psicólogos de forma a haver essa referenciação precoce e a vermos o doente como um todo.

Se temos um utente deprimido, obeso e com baixa autoestima, ele tem de ser seguido em psicologia, em nutrição, em dermatologia, e dentro do hospital tem de haver uma linha de referenciação. Nós podemos ter, por exemplo, um nutricionista e um psicólogo que trabalham diretamente connosco. Enfermagem vai ter de entrar aqui talvez para poder fazer esta avaliação, porque na consulta médica é impossível fazer tudo isto em 20 minutos. É este conceito que defendo em todos os sítios. O público pode oferecer este nível de cuidados; só tem de atuar ao nível do planeamento e dos indicadores em saúde.

Defendo que o mote não deve ser tratar uma psoríase, mas um doente que tem psoríase.

HN- Esta abordagem perante o doente não leva a um grande consumo de recursos humanos?

MT- Do ponto de vista de gestão e do planeamento vão ser precisas algumas mudanças, mas sem grande necessidade de aumento de recursos humanos. Não podemos olhar para as coisas de uma forma linear. Imagine um doente que também passa a ser seguido por enfermagem e esteja estável: não vai consumir tantos recursos médicos, o que leva a um aumento no número de primeiras consultas e, consequentemente, mais doentes em seguimento. Outro exemplo, utente com psoríase que devido a características da sua doença recorre muito aos cuidados de saúde primários ou à urgência: com mais apoio programado, deixa de recorrer a esses serviços.

Penso que este modelo faz todo o sentido, porque até a nível do privado as coisas começam a funcionar assim. O utente que recorre ao serviço privado é livre na sua escolha, portanto compete ao privado promover o melhor processo, de forma a cativar e fidelizar os seus doentes e tornar-se rentável. Se este modelo é exequível no privado, o público também o pode adotar.

HN- Quer deixar uma nota final?

MT- A nota que quero deixar é aquela que deixo sempre que falo em nome de uma classe profissional: o utente é o centro da nossa ação, portanto, qualquer tipo de cuidado e de intervenção só faz sentido se for estruturado para o nosso doente. O enfermeiro cuida e é esta ideia de cuidado que quero deixar transparecer nas palavras que foram escritas. É importante que os nossos doentes sejam esclarecidos, conheçam a doença, que procurem o melhor tipo de ajuda, porque existem formas de estabilizar a psoríase. Além da muita informação disponível, têm uma associação de doentes (PSOPortugal) que os representa e apoia em várias questões de ordem prática. É importante que se sintam bem e devem sempre procurar ajuda especializada.

Quanto a nós, profissionais de saúde, temos de mobilizar energias, sinergias e caminhar no sentido de estruturar uma abordagem holística e em equipa disciplinar. Estudos que relacionam a qualidade de vida e estabilização da doença com o acompanhamento por equipas multidisciplinares mostram que os utentes sentem a sua doença mais controlada, não faltam tanto ao trabalho e não sofrem tanto. São esses indicadores que fazem sentido, pois são bons para o doente, para as instituições de saúde e para os profissionais. É a minha forma de ver a saúde.

Entrevista de Rita Antunes