A saúde global tem um problema estrutural em mãos. A questão não se iniciou agora, pelo contrário, é antiga e tem estado sujeita a um agravamento contínuo e gradual. A escassez mundial de vacinas é um problema real, com graves implicações na saúde das populações. Para ser claro, não me refiro apenas às vacinas Covid-19, que pelo mediatismo e pressão de grupos de ativistas pela saúde global, neste momento até se encontram em melhores condições que as restantes.

Refiro-me às vacinas que nós bem conhecemos do programa nacional de saúde, bem como, aquelas que pela evolução das nossas condições materiais, já não são necessárias na Europa. Por não serem necessárias nos países com mais recursos, acabam por não estar disponíveis para quem delas precise para ter uma hipótese contra doenças infeciosas.

Este ano temos assistido a um reemergir de doenças transmissíveis. Na verdade, elas nunca desapareceram, simplesmente operavam debaixo do nosso radar, fazendo sentir os seus efeitos nas populações vulneráveis em África, Ásia ou Médio Oriente.

A cólera é uma destas doenças. Este ano, mais de 30 países reportaram surtos de cólera, um aumento considerável em relação à média verificada nos últimos 5 anos, que se situou nos 20 países por ano. Tem provocado cerca de 143 mil vítimas mortais por ano, pelo que o investimento em vacinas é mais que justificado, tanto para controlar surtos, como para alimentar ações preventivas.

A vacina oral, que tem um custo de 3 dólares por dose, é administrada num esquema de 2 doses, com 6 meses de intervalo. Desta forma, é conferida uma proteção que dura cerca de 2 anos. No entanto, a escassez inesperada desta vacina, obrigou a OMS a reduzir o esquema para apenas uma toma, conferindo apenas 6 meses de proteção. A esperança é que neste espaço de tempo, seja possível produzir e distribuir a segunda dose a quem fez a primeira, sem deixar de parte os restantes indivíduos que também necessitam desta proteção.

A razão desta escassez encontra-se relacionada tanto com o aumento do número de novos casos, como com a pouca quantidade de fabricantes e investimento efetuado na vacina e sua logística. Foi em parte por este problema, que países como o Vietname criaram e produzem a sua própria vacina contra a cólera.

Apesar o aumento do número de casos, um dos maiores fabricantes mundiais desta vacina, a francesa Sanofi, anunciou que irá deixar de produzir este produto no final do presente ano. Se a tendência crescente verificada em 2022 continuar em 2023, teremos muitas reinfeções e um aumento intolerável do número de vítimas mortais, graças a uma doença para a qual a vacina é eficaz e de baixo custo.

A cólera é uma doença que afeta desproporcionalmente os países de baixo rendimento e populações mais vulneráveis. Provoca anualmente, surtos de dimensões consideráveis em Moçambique ou Paquistão. Mas este ano regressou a países onde já há vários anos não surgia, como Haiti ou Líbano. Em ambos os países, um mês de surto foi suficiente para espalhar a bactéria por todo o país. No caso do Haiti, causou 3.429 casos com 89 óbitos, sendo que metade dos casos ocorrem na idade pediátrica. No Líbano, ocorreram 1.900 casos com 17 óbitos.

É certo que a estratégia para vencer para cólera não passa apenas pela vacinação, pois requer igualmente o acesso a água potável e saneamento básico. Neste sentido, a cólera surge como um bom indicador, avisando que estas condições têm vindo a ser degradadas nos últimos anos. Não estamos a proporcionar melhores condições de vida às pessoas, pelo contrário, a guerra, as alterações climáticas e as opções políticas, criaram as condições necessárias para o regresso da bactéria e o aumento das suas vítimas.

O problema não reside apenas nas vacinas da cólera. Enquanto todas as vacinas não forem tratadas como um bem público, teremos sempre fabricantes que durante uma inédita subida de casos, optam por abandonar a produção de forma a reorientar recursos para outras atividades mais lucrativas.

Precisamos de mudar de paradigma. É moralmente inaceitável a morte de crianças com doenças para as quais existem vacinas. É urgente descentralizar a produção deste bem essencial, com fábricas perto dos locais onde são mais necessárias. O investimento em saúde cria riqueza. A União Europeia deve apoiar a consecução de projetos neste âmbito. Produz efeitos positivos na saúde e no desenvolvimento económico dos países, além de melhorar a imagem que a Europa tem no mundo. Defender o acesso universal às vacinas é um imperativo moral e ético!