Anselmo Ralph estudava contabilidade quando decidiu deixar de lado as finanças para se dedicar a outros números... os das visualizações e discos vendidos. Das dívidas e de uma enorme prova de amor da mãe nasce o seu primeiro disco. Daí até ao sucesso a conta foi rápida, fácil e sempre a somar.

A equação torna-se ainda mais sólida quando saltou de Angola para o mundo com músicas como 'Não Me Toca' ou 'A Única Mulher'.

E nem a miastenia grave, doença rara e autoimune, de que nos fala sem rodeios, foi sinónimo de subtração. Aliás, os óculos de sol, que precisa de usar para se proteger da luz, tornaram-se a sua imagem de marca e, ao invés de dividirem o coração dos fãs, fizeram multiplicar o carinho e admiração.

Quinze anos depois do arranque sobram concertos esgotados, prémios alcançados e momentos únicos. Momentos que deram origem ao novo trabalho discográfico de Anselmo Ralph: 'Momentos Deluxe', o ponto de partida para esta entrevista ao Fama Ao Minuto.

Anselmo, não posso deixar de perguntar: Como é que se passa dos números da contabilidade para os números de visualizações e de discos vendidos?

Antes de começar a fazer contabilidade já tinha começado na música, mas quando entrei para a universidade coloquei a música de parte. Mas depois de dois anos de contabilidade, disse: Não, não, não [risos]. Não é isto que eu quero fazer. Na verdade, se calhar, até foi a contabilidade que me mostrou que realmente aquilo que queria era a música. Gostaria de ter terminado o curso de contabilidade, mas quando passei para o terceiro ano disse: ou é agora ou nunca. Vou para a música, esquece lá isso.

Então como é que, ainda antes da contabilidade, nasce o bichinho da música?

O bichinho da música nasce numa brincadeira, uma moda. Lá para 1992, o hip hop entra na moda em Angola e havia um grupo muito famoso, que ainda hoje é uma referência, os SSD. Eu comecei também por fazer parte de um grupo, comecei pelo hip hop. Depois passei a ouvir Black Company, fui muito, muito fã, em particular do Gutto. Gostava muito dos refrões dele e comecei a inclinar-me mais para o canto por causa do Gutto. A partir daí começo a conhecer mais o R&B, o soul e a coisa foi entranhando. Tinha 14 anos e quando dei conta já estava com o meu grupo a gravar o meu primeiro álbum, já era mais do que só um passatempo.

Um péssimo contabilista que teve sorte na música. Os meus primeiros trabalhos nascem de dívidas

Enquanto estudavas contabilidade estavas emigrado em Nova Iorque, sei que tiveste vários trabalhos, num car wash, numa cadeia de fast food... Apesar de esses trabalhos não estarem em nada relacionados com a música, ela foi estando sempre presente?

Foi e não foi. Havia vezes em que sonhava muito em ter lugar no mundo musical mas havia outros em que deixava estar. Estava mais preocupado em trabalhar, em criar um pano B. E na altura em que fazia esses trabalhos de emigrante não tinha mesmo tempo... sonhava, porque sou sonhador, mas era mais dar no duro do que outra coisa.

Dizes que os teus primeiros trabalhos nascem das tuas dívidas.

Exatamente, um péssimo contabilista que teve sorte na música [risos]. Deveria ter levado a contabilidade para a música, mas infelizmente deixei-a de parte. O meu primeiro álbum foi feito com empréstimos. Empresta-me e eu depois pago-te com juros, fui fazendo o meu trabalho assim. Na altura era impensável pedir dinheiro ao banco para gravar um CD, tive de pedir a outras pessoas, daí eu dizer que os meus primeiros trabalhos nascem de dívidas.

Sinto-me em dívida com a minha mãe para sempre

E a tua mãe teve um papel muito importante numa dessas 'dívidas'. A tua mãe emprestou-te o dinheiro que era para ela fazer uma cirurgia para conseguires lançar o teu primeiro disco. Foi, no fundo, uma grande prova de amor.

No fundo não, foi mesmo uma prova de amor. Isso foi crucial. Ela viu a minha luta e pensou: este rapaz já não tem mais por onde pedir [risos]. Foi também uma forma de me proteger.

Como é que te sentiste quando conseguiste pagar-lhe essa dívida?

Epa... acho que essa dívida ainda não a consegui pagar e nunca vou conseguir. Consegui dar de volta o dinheiro mas o gesto, o sacrifício, isso nunca vou conseguir. É algo pelo qual me sinto em dívida. Normalmente diz-se que aos pais e às mães nós nunca devemos, mas eu sinto-me em dívida com a minha mãe para sempre.

A minha esposa ajudou-me a andar sempre com os pés no chão. Foi diminuindo os efeitos de não estar preparado para o sucesso

A partir daí começa a rampa para o sucesso. Quando é que sentes que conseguiste, em que momento da tua carreira ou com que música?

Gravei o meu primeiro álbum a solo em 2005 e lancei-o em 2006, a 14 de janeiro. Comecei a lançar algumas músicas no final de 2003, começo de 2004. Quando mandei as minhas músicas para Angola ainda estava em Nova Iorque e era um amigo que me ajudava a metê-las na rádio. Na verdade aquilo ia tocando, ia tocando, e não esperava lá grande coisa. Mas quando preparei o meu álbum a solo e depois lancei as duas músicas promocionais as rádios fizeram daquilo uma febre. Faziam debates nas rádios sobre a música 'Não Vai Dar', aí pensei: agora parece que o avião vai descolar. Sempre deu certo, mais do aquilo que esperava.

Estavas preparado para o sucesso?

Não, não estava. Para estarmos preparados temos de ser mais maduros. Há coisas que só conseguimos estar preparados quando passamos por elas. Não sinto que estivesse preparado, mas a minha esposa e a minha família deram-me um reality check constante. A minha esposa ajudou-me a andar sempre com os pés no chão e isso foi bastante importante. Foi importante saber que já tinha a minha família e responsabilidades acrescidas. Sabia que não era só meter música e ir a concertos, sabia que tinha uma família para criar. Isto foi-me dando foco e foi diminuindo os efeitos de não estar preparado para o sucesso.

Havia um certo 'preconceito' em relação a ouvir kizomba e acho que o 'Não Me Toca' veio quebrar esse preconceito

Depois de fazeres muito sucesso em Angola dá-se a tua internacionalização para Portugal. Aí foi importante o 'fator Fanny' - neste caso o facto de ela ter falado em ti e nas tuas músicas num reality show?

Foi, claro que foi. É como um comboio feito por várias carruagens, o sucesso é a mesma coisa. Existem vários fatores que podem contribuir para o sucesso. Parecem coisas pequenas, mas aliadas a vários outros fatores acabam por dar certo. Acho que é uma coisa divina, Deus faz com que o teu sucesso tenha a ver com outras pessoas para que tu não penses que conseguiste sozinho.

Em entrevista ao Nelson Freitas, ele disse-me que achava que o 'Bo Tem Mel' mudou o panorama da música em Portugal e que o teu tema 'Não Me Toca' teve o mesmo efeito. Concordas?

A kizomba sempre se ouviu em Portugal. Lembro-me da 'Yolanda' que foi um grande sucesso em Portugal, tal como muitas outras kizombas. A verdade é que a juventude começou a ver a kizomba de outra forma. Era uma kizomba com outra sonoridade, mais pop. Havia um certo 'preconceito' em certas pessoas em relação a ouvir kizomba e acho que o 'Não Me Toca' veio quebrar esse preconceito. Já era cool, já estava na moda. Realmente o Nelson Freitas tem razão, o 'Bo Tem Mel', até pelo facto de ele cantar em crioulo, acabou por ser uma grande afirmação dos artistas cabo-verdianos.

E a verdade é que esse preconceito se sentia também nas rádios, onde não se ouviam esse género de músicas.

Exatamente. Esse preconceito foi quebrado e hoje em dia já passam. É como tudo, o funk brasileiro vem, invade e depois passa, o reggaeton vem, invade e depois passa... mas hoje em dia, sempre que vier a onda kizomba as rádios já estão mais preparadas para tocá-las do que estavam há 20 anos.

E achas que neste momento já passou a moda da kizomba?

Acho que não, nas pistas não. Nas rádios é como algo que liga e desliga. Agora está a entrar muito na moda o trap, há outras ondas que estão a entrar na moda. Já tivemos uma avalanche de onda latina, Maluma, J. Balvin, que agora está a passar. Já passámos pelo afro house e os artistas nigerianos. É normal, é um ciclo e acredito que depois regresse novamente. É como o hip hop que às vezes volta, com a kizomba acontece o mesmo e é algo normal. A kizomba não passou de moda, tem de ser mesmo assim, é algo que vai e volta.

Tentas acompanhar essas modas no estilo de música que fazes ou para ti é mais importante manter a tua identidade?

Para mim é mais importante manter a identidade, posso até tentar vaguear um bocadinho. Eu faço R&B e soul, mas vou vaguear um bocadinho pelo funk, mas não vou fazer funk puro, vou fazer uma mescla e manter a minha base. Acredito que os artistas devam ser versáteis, mas têm de ter um caminho, têm de ter algo que os identifique. Há quem não acredite que tem de ser assim e eu respeito. Há artistas que adoram fazer tudo e há artistas que são bons a fazer mais do que um só estilo. Eu gosto de saber que quando quero ouvir baladas é aquele artista, não gosto de ouvir muita salada russa.

Conseguiste internacionalizar a tua carreira, não só em Portugal como noutros países, mas Angola vai ser sempre a tua casa mãe?

Sim, é. Quando vivia em Nova Iorque, fiquei lá sete anos, dizia que ia ficar por lá e não voltava para Angola. Na verdade, quando vim para aqui foi numas férias de verão. Fiz um trato com os meus velhos e disse: olhem, vou lá tentar, se não der certo depois das férias de verão regresso e continuo a escola na boa. Mas aquilo deu certo, o meu primeiro álbum, e nunca mais voltei. Antes não me via a voltar para Angola, agora não me vejo a viver fora daqui. Mas hoje em dia tenho uma segunda casa que é Portugal, e não estou a dizer isto por estar a falar contigo, é mesmo verdade. Sinto falta de um e de outro. Mesmo a minha família, os meus filhos, sentem falta de Portugal.

Onde é que gostavas de conseguir chegar em termos de internacionalização?

Se eu te disser onde gostava de conseguir chegar já estou a falar demais [risos]. Fala-se e depois não acontece. Gostava de poder conquistar outro mercado, gostava de chegar mais longe. Mas digo-te, se ficar por aqui com o que me foi dado a conquistar já me sinto um homem bastante sortudo e abençoado. Sinto-me completo.

Numa entrevista há muitos anos, ainda no início da tua carreira, dizias que não reagias muito bem às críticas, Aprendeste com o tempo a lidar com elas?

Não reagia bem às críticas porque ficava logo para baixo. Hoje em dia tento colher algo de uma crítica, ver se ela realmente se aplica a mim, e tentar melhorar e crescer com isso.

Teria também que ver com falta de autoestima?

Sim, a minha autoestima era baixa e depois qualquer crítica me levava abaixo. Passaram 15 anos desde o meu primeiro álbum a solo, já aprendi muita coisa. Já recebi muita crítica e aprendi que temos de saber ouvir.

Tornar a doença pública foi mais para responder às perguntas dos fãs

Achas que essa falta de autoestima estava também relacionada com a miastenia grave [doença autoimune que atinge a junção neuromuscular e no caso do cantor o afeta a nível ocular, fazendo com que fique com as pálpebras descaídas e deixe, por exemplo, de conseguir virar os olhos para a esquerda ou direita]?

Claro que tinha que ver, mas não era só isso. Há pessoas que tem autoestima muito elevada desde sempre e outras que têm de aprender a não se verem tão em baixo. A doença tinha uns 30% que ver com essa falta de autoestima.

Conseguiste com o tempo perceber que a doença não seria um impedimento para a tua carreira?

Não achava que me poderia impedir, mas pensava: como é que vou ultrapassar... como é que eu vou chegar lá com este problema? Nunca achei mesmo que me fosse impedir, mas não sabia como ia lidar com isso quando lá chegasse. Era mais essa questão

E agora, passados todos estes anos, como é que aprendeste a lidar com isso?

Sei que há algumas pessoas que não acreditam, mas eu sou crente e acredito que foi Deus que me deu forças e ferramentas para conseguir lidar com isso. As pessoas são apaixonadas por pessoas e acho que quanto mais humano fores para elas, mais vais receber de volta. Às vezes temos alguém próximo que tem alguma particularidade ou deficiência, mas de tanto sermos próximos tu já nem notas ou esqueces essas particularidades. É por aí.

Há montes de gente que já me viu sem óculos escuros

Quando tornas pública a tua doença querias mostrar que era possível, tornando a tua história um exemplo de superação?

Vou ser sincero, não era algo que eu escondesse e também nunca imaginei a repercussão que poderia ter. Há coisas que tornei públicas e não foi fácil, mas a doença nem por isso. Tornar a doença pública foi mais para responder às perguntas dos fãs, que queriam saber o porquê de usar óculos escuros a toda a hora. Tive de explicar que tinha uma doença e que por causa dos holofotes comecei a usar óculos escuros.

Só passo a usar óculos escuros quando começo a fazer muitos concertos, nos primeiros concertos não usava, estava de boné e com a pala conseguia proteger-me das luzes. Depois descobri uma ferramenta melhor, que são os óculos escuros.

Hoje em dia é impensável vermos o Anselmo na rua sem óculos escuros?

Não [risos]. Há montes de gente que já me viu sem óculos escuros, já me viram a fazer compras ou quando estou no ginásio. Não é uma coisa impensável, basta cruzarem-se comigo fora de concertos. Se não estiver muito sol posso não usar óculos escuros, mas tudo depende porque a doença às vezes deixa-me os músculos das pálpebras cansados. Tudo depende de como vou estar naquele dia.

Assusta-te em relação ao futuro esta doença ou já estás tranquilo?

Não, já estou super tranquilo. É uma coisa que vive comigo há 35 anos, já não me assusta. Sou um homem abençoado porque há pessoas que têm este problema e vivem os efeitos desta doença a 100%, no seu todo, o que não é nada simpático. Às vezes perguntam-me: como é que tu consegues fazer isso, como é que consegues viver assim? Porque normalmente as pessoas que têm miastenia não conseguem ter uma vida normal, corrida, lutam contra a fadiga a toda a hora. Basta subirem uns 10 degraus já estão cansados. A questão é a fadiga muscular... esse é o problema desta doença. Felizmente, esse não é o meu caso.

Acabas de lançar, no dia do teu 40.º aniversário o teu novo trabalho discográfico, o EP 'Momentos Deluxe'. Como é que surge este nome?

Na verdade, quem deu o nome ao álbum foi a minha filha mais velha: a Alícia, de 13 anos. Estava a explicar-lhe o conceito do álbum, andava às voltas com títulos e mais títulos e ela deu-me esta ideia. Queria inspirar-me nos momento musicais que tive no passado. Se ouvires este álbum vais encontrar o Anselmo Ralph de 'A Dor do Cupido' e do álbum 'Histórias de Amor'.

Então, quem ouvir as seis musicas que fazem parte deste EP vai encontrar o Anselmo do passado, mais romântico?

Quem ouve este álbum diz: faz-me lembrar o Anselmo de 2006, 2007, isto para quem já consumia a minha musica nessa altura. Quem não consumia vai encontrar um Anselmo novo, mais R&B, mais soul, que foi o que comecei por fazer no início da minha carreira.

Estes seis temas são um acréscimo do álbum momentos, que foi lançado com 10 músicas. Achei que não deveria lançá-lo com 16 músicas, então lancei estas seis músicas depois, mas na verdade elas ainda fazem parte do álbum 'Momentos'.

Aproveitando o facto de falarmos no lado mais romântico das tuas músicas, pergunto-te como tem sido para ti, um homem tímido, lidar com o assédio do público feminino - grande consumidor deste género musical?

Estou casado há 15 anos e no princípio foi um pouco constrangedor, mas tu recebes aquilo que dás. É a forma como te vais posicionar que vai passar a mensagem, daqui desta linha tu não cruzas. E eu sempre fui muito bom a desenhar essa linha. Sei também os ambientes em que essas circunstâncias podem acontecer e sou um bom esquiva.

Há saudades do palco, sim, mas o que eu ganhei em troca é bem melhorVoltando ao teu novo disco. Qual tem sido o feedback do público às novas músicas?

Está a correr muito bem, o feedback tem sido positivo nas minhas redes. Se o feedback for medido pelas redes e visualizações, tem corrido muito bem. Em janeiro houve premiações da maior plataforma de streaming aqui em Angola e acabei por arrecadar três prémios, música do ano, artista do ano e artista mais tocado. Isso diz algo. Em Portugal, e não só, começo a sentir que duas músicas estão a crescer bastante, a 'Fim do Mundo' e a 'Vais-me perder'.

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Nesta altura em que o mundo está um pouco parado devido à pandemia de Covid-19, como tem sido lidar com o confinamento?

Na verdade tenho aproveitado ao máximo, recebi um novo anjinho cá em casa [o terceiro filho de Anselmo, Christian, que nasceu em setembro de 2019]. O que eu não pude fazer com os outros dois [Alícia, de 13 anos e Djeyson, de oito] estou a fazer com este. Estava sempre em digressões, os meus filhos reclamavam porque não estava no Dia do Pai, quando nasceram também não estive... e este eu estou a aproveitar ao máximo. Estou feito uma babá [risos].

Mas já há saudades do palco?

Há muitas saudades do palco, mas este novo anjinho e o tempo em casa trouxe-me muita coisa boa. Há saudades sim, mas o que eu ganhei em troca é bem melhor.

No que toca à família já percebemos que és um homem realizado, mas e enquanto artista: onde é que ainda te falta chegar?

Agora gostaria de fazer parte do sistema que dá oportunidades a outros artistas de singrarem no mundo da música, esse é o meu caminho.

Se pudesses dizer alguma coisa àquele rapaz que trabalhava a montar ventoinhas antes de tudo isto acontecer, o que é que lhe dirias?

O que é que eu diria... Podia até dizer tem calma que vai dar tudo certo, mas eu ali já acreditava que ia mesmo dar tudo certo. Então, se calhar, dizia: Aprende a tocar guitarra, algum instrumento, prepara-te que vai dar muito certo.

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