
HealthNews (HN) – Como define o conceito de redução de danos nas dependências, incluindo o tabaco, e qual a sua importância atual?
Manuela Grazina (MG) – A redução de danos é uma abordagem pragmática que reconhece a complexidade das dependências. Não se limita a uma perspetiva binária de consumo versus abstinência. Foca-se em minimizar impactos negativos quando a cessação total é inatingível. No contexto do tabaco, isto implica confrontar uma realidade dura: o risco de cancro do pulmão aumenta 20 a 25 vezes em fumadores, segundo dados epidemiológicos consistentes. A estratégia primordial será sempre a abstinência. Contudo, para indivíduos que por razões fisiológicas, psicológicas ou sociais não conseguem deixar de fumar, negar alternativas é negligência de saúde pública. O tabaco aquecido, por exemplo, não é inócuo, mas representa uma redução de danos superior a 90% conforme demonstrado por estudos independentes. Esta não é uma opinião, mas uma conclusão baseada em análises toxicológicas comparativas: enquanto o cigarro tradicional liberta cerca de 6.000 compostos químicos (70 dos quais carcinogénicos confirmados), os sistemas de aquecimento reduzem esta carga drasticamente. A experiência sueca é paradigmática. Ao adotar políticas de substituição com produtos orais de nicotina, reduziram a prevalência de fumadores para menos de 5% – meta que a OMS considera como “livre de tabaco”. Isto não é promoção do vício, mas reconhecimento de que soluções realistas salvam vidas. Importa sublinhar: a redução de danos não substitui a prevenção primária. Programas educativos em escolas, como os que desenvolvo desde 2005, continuam a ser essenciais. Mas para adultos com dependência estabelecida, rejeitar alternativas menos nocivas é eticamente questionável.
HN – Que intervenções de redução de danos se mostram mais eficazes para substâncias como opiáceos, álcool e, especificamente, tabaco?
MG – A eficácia das intervenções varia conforme a substância e o contexto sociocultural, mas há princípios universais. Para opiáceos, o modelo português de troca de seringas foi revolucionário. Enfrentou resistências iniciais – mas a persistência demonstrou resultados: redução de 90% em infeções por VIH entre utilizadores de drogas injetáveis entre 2000-2015. A metadona, também controversa inicialmente, provou ser uma ponte para a reinserção social e não um fim em si mesma. No álcool, estratégias como a regulação de horários de venda e unidades de consumo padrão em bebidas mostraram impacto. Porém, o maior desafio é a componente hereditária, que pode ter um contributo até cerca de 50%: filhos de alcoólicos têm maior risco de dependência, como ilustraremos adiante. No tabaco, a prioridade é desacoplar a nicotina da combustão. O tabaco aquecido é a alternativa mais estudada, com ensaios clínicos a demonstrarem melhoria na função respiratória e redução de biomarcadores cancerígenos em 95-98% comparativamente ao cigarro tradicional. Mas tecnologia não basta. Desenvolvo projetos como “O Meu Cérebro e Eu na Era Digital”, onde explico, ao nível neurocientífico, o modo como os vícios sequestram circuitos cerebrais. A nicotina mimetiza a acetilcolina, ligando-se a recetores nicotínicos e libertando dopamina, noradrenalina e serotonina. O uso crónico reduz a densidade de recetores no córtex pré-frontal, enfraquecendo o controlo impulsivo. Nessas ações mostro evidências de imagiologia cerebral, comparando cérebros saudáveis e sob dependência – os apagões nas áreas de decisão são visíveis. Uma adolescente disse-me após uma palestra: “Isto salvou-me a vida. Se antes me oferecessem drogas, talvez experimentasse; agora que sei o que me pode acontecer, já não irei experimentar e recuso”. Isto é redução de danos preventiva.
HN – Quais são os principais obstáculos à implementação e aceitação social destas estratégias, nomeadamente para o tabaco?
MG – Os obstáculos são multifacetados, mas destacaria três. Primeiro, a narrativa quit or die ignora a realidade: 1.25 mil milhões de fumadores globais não desaparecerão por decreto. Há algum tempo atrás, publiquei um artigo no Público sobre redução de danos no tabaco, em que procurei trazer esclarecimento, com base científica credível e fidedigna de suporte. Note-se que não sou fumadora e não tenho quaisquer interesses relacionados com o tabaco.
Segundo, a falta de literacia científica. A maioria não compreende que a nicotina, isoladamente, não é a vilã. É um alcaloide similar à cafeína, que atua em recetores cerebrais existentes naturalmente. O verdadeiro perigo são os hidrocarbonetos aromáticos policíclicos e nitrosaminas geradas na combustão a 900°C. Os produtos de tabaco aquecido atingem um máximo de 350°C. Proibir alternativas, como os cigarros eletrónicos e tabaco aquecido, só empurra os fumadores de volta ao tabaco tradicional.
Terceiro, políticas mal formuladas. A tentativa legal drástica de evitar o consumo a todo o custo, recentemente implementada na Nova Zelândia, está a causar aumento do consumo ilegal, do surgimento de tabaco não controlado e da elevação da taxa de crime associada. O caso australiano é trágico. Ao banir alternativas sem transição, populações rurais pobres passaram a percorrer 300 km para comprar cigarros, gastando recursos essenciais em alimentação. Geralmente, esta população tem uma alimentação mais pobre em proteínas. Coloco aqui uma hipótese importante a considerar: as proteínas contêm os aminoácidos que são essenciais para a síntese de neurotransmissores, nomeadamente relacionados com o bem-estar e a tomada de decisão. É um ciclo perverso: pobreza → má nutrição → vulnerabilidade a vícios → gastos com tabaco → mais pobreza. A solução passa por regulamentação inteligente: restringir acesso a jovens, taxar produtos conforme o risco, e investir em campanhas que expliquem a ciência… Sem paternalismos. O conhecimento é a maior fonte de liberdade para as melhores escolhas, incluindo as que protegem a saúde.
HN – Como podem os conhecimentos de genética e neurociência contribuir para personalizar estratégias de redução de danos?
MG – A sinergia entre genética e neurociência é transformadora. Na genética, identificamos polimorfismos que modulam risco. Variantes no gene CYP2A6 retardam o metabolismo da nicotina, prolongando a exposição e aumentando a dependência. Mutações em genes mitocondriais como MT-ND5 exacerbam danos pulmonares em fumadores. No meu laboratório, desenvolvemos estudos que permitem identificar perfis de risco, nomeadamente associados a vulnerabilidade. Um portador de variantes na região de cluster genético CHRNA5-CHRNA3-CHRNB4, tem 3x mais risco de adição. Este conhecimento reforça a importância das intervenções precoces, que são cruciais. Nas neurociências, estudamos o modo como fatores moduláveis afetam a decisão. O sono é fundamental: a privação reduz o volume no córtex órbito-frontal, aumentando a impulsividade, afetando a cognição e a capacidade de decisão. Em ratos expostos a nicotina, 24h sem sono quadruplicam comportamentos aditivos. A nutrição também é crítica: dietas pobres em proteínas limitam a síntese de serotonina e dopamina. Nas ações que realizo nas escolas, mostro aos jovens que um cérebro faminto de triptofano é mais vulnerável a vícios. A plasticidade neural pode ser trabalhada: programas de mindfulness aumentam a espessura cortical em 8 semanas, reforçando o autocontrolo. A personalização opera em dois níveis. Na prevenção, é possível capacitar com neuroeducação, crianças e jovens com histórico familiar. O caso da filha de Ernest Hemingway é emblemático: após observar o alcoolismo devastador do pai (que o levou ao suicídio), ela recusou conscientemente qualquer consumo de álcool durante toda a vida. Este é um exemplo claro de como o conhecimento do risco hereditário (que pode atingir os 40% em filhos de dependentes) pode gerar ações preventivas poderosas. No tratamento, para um fumador com metabolismo lento de nicotina, sugerimos terapias de substituição com libertação prolongada; para metabolizadores rápidos, o foco pode passar pela modulação comportamental. O objetivo final não são decisões por procuração, mas é termos cidadãos informados que escolhem caminhos mais seguros – seja evitar a primeira experiência ou optar por alternativas menos danosas. Os dados de iniciação tabágica na União Europeia, de acordo com os dados do mais recente Eurobarómetro (2021), mostram que os cigarros surgem claramente como principal produto de iniciação, ao contrário do tabaco aquecido ou outras alternativas menos lesivas para a saúde, porque há desconhecimento quanto à sua segurança e menor risco. Esta proporção varia entre mais de nove em cada dez (Portugal 93%).
HN – Como articular eficazmente a redução de danos com o tratamento tradicional e a prevenção?
MG – A articulação eficaz exige uma rutura com modelos fragmentados. É imperativo criar equipas multidisciplinares permanentes – integrando também cientistas, clínicos e psicólogos – para desenhar estratégias baseadas em dados robustos, não em “modas ou populismos”. Estas equipas devem operar sob um “Pacto Social” similar ao da educação ou justiça, blindado a mudanças governamentais.
A prevenção começa em “hábitos básicos negligenciados”:
- Higiene dentária: “Previne proliferação bacteriana que altera o microbioma, ligado diretamente ao funcionamento cerebral”.
- Sono regulado: “Crucial para a neuroplasticidade e tomada de decisões”.
- Nutrição: “Primeira linha de intervenção terapêutica, não acessória”.
- Exercício físico: “Melhora o funcionamento do cérebro, a capacidade cognitiva e de memória”
No tratamento devem-se hierarquizar as intervenções:
- Abordagens comportamentais (ex.: psicoterapia para dependências).
- Substituição progressiva (ex.: alternativas ao tabaco com menor risco).
- Farmacologia só em estágios avançados, jamais como solução única, apoiada por avaliação de perfil genético, sempre que possível e/ou aplicável.
Redução de danos não é facilitismo. É reconhecer que a pessoa é multidimensional e exige respostas integradas – desde a higiene do sono até políticas públicas estáveis e duradouras.
HN – Que novas abordagens em redução de danos são prioritárias?
MG – Desde logo, o Mapeamento de vulnerabilidades individuais:
Identificar biomarcadores de risco (por exemplo, se a pessoa for portadora de certas variantes genéticas do genoma mitocondrial, a exposição ao tabaco e ao álcool aumentam o risco de cegueira)
Desenvolver protocolos municipais para rastrear fatores sociais: privação de sono, isolamento, défices alimentares.
Legislar exposição precoce a ecrãs e proteger as crianças de danos relacionados.
Temos também de garantir programas de literacia científica desde a infância:
Projetos como o “O meu Cérebro e eu na era digital” que levo a vários locais do País, provam que escolas e autarquias são “laboratórios vivos” para a mudança. O projeto do Rotary Club de Cantanhede “Tertuliar – Conhecer para saber”, em articulação com a Câmara Municipal, é outro bom exemplo.
Temas prioritários:
- Microbioma: Higiene oral inadequada e disbiose causam desequilíbrios na microbiota intestinal, podendo afetar a saúde cerebral através do eixo intestino-cérebro, com potencial impacto na saúde mental; pode desregular circuitos neuronais, nomeadamente levar a alterações no humor, cognição e comportamento.
- Tecnologia: Exposição prolongada a ecrãs (particularmente antes do desenvolvimento completo das estruturas cerebrais – cerca dos 21 anos de idade, prejudicam a qualidade do sono, a capacidade de atenção, causam ‘apagões cognitivos’ e alterações dos circuitos neuroquímicos de forma idêntica à das drogas de abuso.
- Neuroplasticidade: Somos todos ‘influencers’ – pais e professores modelam comportamentos através da neuroimitação e adaptação ao meio.
- A Direção-Geral da Saúde precisa de se apoiar em comissões científicas independentes para as decisões.
HN – Como avaliar o impacto das estratégias de redução de danos?
MG – A avaliação, deve focar-se em indicadores de longo prazo, não em metas imediatistas ou mediáticas:
Métricas propostas:
- Biomarcadores, de bem-estar (saliva) e de lesões celulares derivadas de comportamentos aditivos.
- Qualidade do sono e função cognitiva: Monitorizados com escalas de avaliação.
- Redução de comorbilidades: Ex.: menor incidência de depressão ou doenças cardiometabólicas em ex-fumadores.
Mecanismos de ação corretiva:
- Auditorias científicas a políticas: Confrontar dados oficiais com evidências – como o caso europeu do tabaco, onde decisões contrariam resultados de investigação.
- Modelos escaláveis.
A solução atual passa por identificar causas e não corrigir sintomas. Avaliar o impacto real para ir de encontro às soluções, exige coragem para avaliar as questões com profundidade e rejeitar definitivamente as propostas demagógicas e superficiais. Urge salvar vidas através do conhecimento!
Entrevista de MMM
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