Healthnews (HN) – Qual é a sua avaliação sobre a subutilização da polipílula na prevenção das doenças cerebrovasculares em Portugal, apesar das evidências científicas favoráveis?

Vitor Tedim Cruz (VTC) – Acontece muitas vezes na história da humanidade e da medicina. Desenvolvermos tecnologia muito útil, capaz de erradicar problemas relevantes, mas não desenvolvemos os métodos que a permitem implementar. E este desencontro faz com que a sociedade não consiga tirar proveito da tecnologia que produz. Penso que em grande parte é isto que se passa com a polipílula.

No âmbito da prevenção primária e secundária de doenças cerebrovasculares em Portugal, o padrão é identificarmos doentes com risco ou mesmo alto risco e com pelo menos quatro fatores de risco concomitantes e ativos. O doente com um primeiro AVC, entre os 50 e 70 anos, acumula hipertensão arterial, dislipidemia, obesidade, diabetes, tabagismo e doença arterial aterosclerótica em algum segmento.

Este mesmo perfil é identificado também frequentemente na população geral no âmbito dos cuidados primários de saúde.

A melhor abordagem de um doente deste tipo implica sermos bem-sucedidos na correção simultânea de três ou quatro fatores de risco. Isto deve ocorrer idealmente num período de 3 a 6 meses e manter-se ao longo de mais de 20 anos. A redução de eventos na população depende de conseguirmos isto em grande escala.

Se pensarmos na dimensão deste objetivo, percebemos que ele dependerá muito da implementação de tecnologia que facilite o cumprimento posológico no longo prazo.

Mesmo num ensaio clínico, com doentes motivados, a compliance dos melhores doentes situa-se entre os 90 e os 100% para um único fármaco, na duração do ensaio. Se refletirmos sobre os doentes com risco vascular elevado, em mundo real, percebemos que é mesmo muito difícil manter a compliance de tratamento para 3 ou 4 fatores em simultâneo. Para além do número de tratamentos em curso, existem muitos outros problemas concomitantes, nomeadamente familiares, pessoais, associados ao trabalho por turnos, associados a mudança de local de habitação que interferem com o cumprimento posológico diário.

E é este o contexto real onde a polipílula me parece essencial. Uma ajuda preciosa, que permita aumentar a probabilidade de um indivíduo entre os 50 e 70 anos conseguir manter controlados por mais de 10 anos consecutivos fatores de risco vascular simultâneos.

HN – De que forma a polipílula pode contribuir para melhorar a adesão terapêutica em doentes com risco elevado de AVC e quais são os principais desafios identificados na prática clínica?

VTC – Existem vários estudos sobre a persistência do cumprimento posológico de anti-hipertensores, estatinas e antiagregantes após 2 e 5 anos de um AVC.

E o que verificamos é que mesmo após um evento cerebrovascular dramático, metade dos doentes podem não estar a cumprir com um plano de controlo de fatores de risco vascular previamente identificados.

Este problema é dominante em Portugal, onde cerca de 30% dos AVC que ocorrem anualmente correspondem a recorrências.

O foco dos cuidados primários e hospitalares no cumprimento posológico a longo prazo deveria ser uma prioridade. Ou não vamos conseguir obter taxas elevadas de erradicação de fatores de risco para os quais existem tratamentos eficazes, como são a dislipidemia e a hipertensão.

Os ensaios clínicos sobre a polipílula sugerem que esta poderia permitir melhorar em pelo menos 30% a probabilidade de controlo eficaz a longo prazo de múltiplos factores de risco vascular.

HN – Considerando os dados epidemiológicos recentes, quais são as prioridades para o controlo dos principais fatores de risco vascular na população portuguesa?

VTC – Hipertensão arterial, dislipidemia, obesidade, tabagismo, diabetes, fibrilação auricular, sedentarismo

HN – Na sua opinião, que perfis de doentes mais beneficiam da utilização da polipílula na prevenção primária e secundária do AVC?

VTC – Todos aqueles que acumulem, pelo menos hipertensão arterial e dislipidemia. Na verdade os doentes com AVC correspondem na sua grande maioria (75%) a doentes de risco elevado com mais de 4 fatores de risco concomitantes. Frequentemente estão polimedicados, com mais de 10 linhas terapêuticas independentes.

Neste contexto é essencial conseguir simplificar os componentes essenciais do seu plano terapêutico, nomeadamente os relacionados com o controlo da hipertensão, dislipidemia e antiagregação.

HN – Que barreiras existem atualmente à prescrição mais alargada da polipílula em Portugal e que estratégias poderiam ser implementadas para as ultrapassar?

VTC – Neste âmbito, o meu pensamento pode diferir um pouco, mas resulta da minha experiência pessoal ao longo de mais de 25 anos como médico ligado às doentes cerebrovasculares.

Durante muitos anos, em Portugal, o problema principal da prevenção foi sendo atribuído à não identificação de fatores de risco vascular. Os cidadãos desconheciam ser hipertensos, ter excesso de peso, ter dislipidemia.

Hoje em dia percebemos que já não é assim. A grande parte da população sabe e reconhece em si e nos outros esses fatores. Mas temos um enorme problema de motivação para o controlo ativo dos principais fatores de risco vascular. São condições relativamente silenciosas, até que ocorram eventos vasculares.

Em simultâneo, os cuidados primários e hospitalares, não desenvolveram estruturas eficazes para lidar com doentes que acumulam múltiplos fatores de risco vascular. Os recursos estão mais direcionados para lidar com as consequências, em unidades de AVC e unidades coronárias. E não existem, por exemplo, unidades de intervenção pedagógica, que consigam profissionalizar os doentes com condições crónicas para o controlo e autogestão de fatores de risco vascular. Metade da incidência anual de novos casos de demência em Portugal está associada a estes fatores.

Fala-se de literacia em saúde, de um modo ainda muito passivo e quase contemplativo. Mais de metade dos nossos doentes entre os 50 e 70 anos, não consegue sozinho, organizar uma rotina semanal sólida, que permita fazer exercício, comprar, cozinhar e ingerir alimentos saudáveis a um custo sustentável, cumprir o plano terapêutico, socializar e constituir uma boa rede de apoio e reforço positivo.

Mesmo os médicos recebem pouco treino específico sobre estratégias de titulação simultânea de fármacos, conciliação terapêutica, abordagem de efeitos adversos, gestão prática de doses e transição para uma polipílula.

Uma das principais barreiras parece-me ser a excessiva simplificação da polipílula junto dos profissionais. A polipílula é uma mais-valia para os doentes, isso é verdade, e o seu principal valor.

Mas para o profissional, implica dedicação adicional ao processo inicial de titulação, ajuste e pedagogia junto do doente. Este passo considero que devia ser mais abordado e alvo de formação específica. Constitui a principal barreira neste momento.

HN – Como avalia o impacto potencial da polipílula na sustentabilidade do sistema nacional de saúde, nomeadamente em termos de custo-efetividade e redução da carga das doenças cerebrovasculares?

VTC – Se pretendermos reduzir o número de eventos vasculares em mais de 30%, sobretudo num segmento de alto risco, não precisamos, para isso, de mais fármacos.

Precisamos de saber e conseguir implementar com a máxima eficácia estratégias como esta, que aumentam a probabilidade de cumprimento posológico a longo prazo.

O sucesso da prevenção, nesta área (hipertensão, dislipidemia, antiagregação), depende atualmente mais, do cumprimento posológico e motivação dos cidadãos e profissionais, do que de novos fármacos.

É preciso implementar a tecnologia de que dispomos.

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