Num bairro em Marvila, em Lisboa, havia um miúdo, na década de 90, que tinha um sonho e não descansou enquanto não o alcançou. Matay é hoje um nome conhecido em todo o país, mas conta com um percurso marcado por atritos de rua, episódios de racismo e dificuldades financeiras.

Numa conversa que partiu do termo "sobrevivência", contou-nos que continua a acreditar que há muito por fazer e que é possível chegar lá. Músico, marido, pai de dois filhos e negro, Matay é hoje o entrevistado do Fama Ao Minuto.

Que palavra define a sua infância?

Nunca me fizeram essa pergunta… Nunca pensei nisso, mas acho que é sobrevivência.

Toda a minha vida tive de me ir impondo para conseguir viver (...) Ainda hoje, costumo dizer que tudo tem de ser à lei do braço

É um termo forte.

Os meus pais são separados desde sempre, não tenho memórias deles juntos. Do lado da minha mãe somos 10 irmãos, a minha mãe não tinha muito para nos dar. Crescemos com coisas que nos davam, com apoios sociais. Especificamente na zona onde vivíamos [Marvila], ir para a rua era sempre um problema, era perigoso. Toda a minha vida tive de me ir impondo para conseguir viver. Até para fazer amigos e pertencer a grupos, foi sempre conquistado. Ainda hoje, costumo dizer que tudo tem de ser à lei do braço.

Era uma criança feliz?

Sim, acho que era. Pelo menos, a noção de felicidade era boa.

Temos a sensação de que é alguém doce. Como foi crescer num bairro social?

Toca em pontos delicados… Por exemplo, do lado do meu pai, vivíamos numa comunidade africana, mas do lado da minha mãe já não. Quando digo que era difícil brincar na rua era precisamente por isso, porque nós éramos os pretos e na nossa praceta éramos praticamente os únicos. Éramos os pretos e os miúdos que não tinham pai. Os meus irmãos nasceram de outros relacionamentos que a minha mãe teve e não havia uma referência masculina forte que nos garantisse ali alguma segurança. Era eu essa referência e era um miúdo. Tive muitos problemas na rua.

Não ganhei uma aversão ao termo preto, embora, nesta fase, esteja mais sensível ao ouvir essa palavra. Mas eu sou preto e tenho orgulho enorme. É isso, eu sou preto

O que viu ou ouviu e que não esquece?

‘Isto não é para pretos’, quando estávamos a brincar na rua, a jogar ao berlinde ou rodar o pião. Nos bairros existem muitas zonas que são como pequenos territórios que são marcados por pessoas que exercem ali algum poder. As famílias ditas poderosas, com alguma relevância na comunidade. Muitas vezes tive problemas por estar a brincar na zona onde não devia. Marvila é multicultural, é um dos bairros mais ‘mixed’ que temos em Lisboa, mas na aquela altura havia muita segregação. Quando estava numa zona onde havia mais negros, estava mais confortável.

Ganhou aversão ao termo preto?

Não é só o termo em si, é à conotação. Ainda hoje ouvi rádio e alguém disse que está um dia de sol maravilhoso, mas domingo a coisa vai estar negra porque vem aí o mau tempo. Há uma série de coisas que cresci a ouvir que me incomodam. Não ganhei uma aversão ao termo preto, embora, nesta fase, esteja mais sensível ao ouvir essa palavra. Mas eu sou preto e tenho orgulho enorme. É isso, eu sou preto.

No bairro é mesmo assim, olhas à volta e vês que as coisas estão mal, ou fazes alguma coisa ou segues caminho. Nunca fui de ficar parado sem ação

Licenciou-se em Animação Sociocultural e jogou rugby. Guarda bons amigos desses tempos?

Ainda há pouco tempo jantei com eles e vimos a bola em videochamada. Os amigos do rugby são para a vida toda, foram relações construídas de forma sólida, o amor está lá sempre. Quando fui para a universidade já era adulto. Comecei a trabalhar, depois percebi que financeiramente precisava de um ajuste, então precisava de um upgrade e fui para a universidade. O meu curso era de 2010, tinha 23 ou 24 anos. Não foi aquela coisa de ir aos 17 ou 18, eu já trabalhava na Santa Casa da Misericórdia.

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Matay foi atleta no Clube de Rugby do Técnico© Instagram

Conhecemo-lo como músico, mas já trabalhou na área da Animação Sociocultural.

Começa lá atrás esta parte da intervenção comunitária. No bairro tens de criar atividade para envolver a comunidade. Existem uma série de problemas sociais e existem organizações que fazem um trabalho incrível no sentido de promover competências nos jovens para que no futuro sejam mais capazes. Fiz parte de grupos de jovens em que essas competências também foram trabalhadas. Tenho uma formação dada pelo Instituto de Apoio à Criança como Jovem Ator de Mudança e outra como Jovem Mediador Comunitário. Entretanto, no secundário, fiz parte de um projeto de mediação de conflitos na escola e fui convidado para coordenar a equipa de mediadores.

No bairro é mesmo assim, olhas à volta e vês que as coisas estão mal, ou fazes alguma coisa ou segues caminho. Nunca fui de ficar parado sem ação. Aquela foi uma forma de eu poder ajudar a minha comunidade ou as comunidades onde trabalhei. Como venho de uma família numerosa é quase como trabalhar em comunidade o tempo inteiro.

Gosta de dar a outros miúdos a esperança de que o futuro lhes guarda coisas muito boas?

Sim, tenho um percurso que joga a meu favor. Já vivi isso ou então tenho amigos que já viveram. A verdade é que se eu consegui, tu também consegues. O meu caminho foi difícil. Embora, no fim de contas, o poder está sempre em quem pode decidir. Tudo o que tens - know how e experiência profissional - só é válido se do outro lado for aceite.

O racismo tem uma bandeira muito pesada de se erguer e, infelizmente, Portugal é um país racista. Adoro viver em Portugal, mas é estruturalmente racista

Sendo hoje pai, revê-se nas crianças que são os seus filhos?

Muito. Eles têm quatro e cinco anos, são muito parecidos comigo. Eu sou muito de partilha e vejo muito isso neles. Tenho muito isto de ‘é para ir? Então vou eu’, eles também. O sentido de família, o querer estar junto, os meus filhos vivem muito assim também. E às vezes os jeitos, as respostas, a parte mais rebelde. Costumo dizer que a minha maior dificuldade é educar estes miúdos sem lhes quebrar o espírito.

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Matay com os filhos© Instagram

Recentemente, relatou publicamente um episódio com um dos seus filhos, que lhe disse que “não queria ser preto”. Como é estar no papel de apaziguador e protetor?

Primeiro, é muito duro perceber que alguém fez mal àquilo que é mais precioso na tua vida. A partir do momento em que pões uma criança no mundo, tudo o resto perde a importância. Não existe outra coisa, a não ser outro filho, que possas pôr àquele nível.

Os meus filhos fazem asneira, brigam um com o outro, tiram-me do sério, basta que um se magoe ou não esteja bem para eu ficar reduzido a nada. Mas tens de demonstrar força, não podes fazer daquele momento o resto da vida. Tive de dizer que mais momentos destes vão acontecer e ele tem que estar preparado para responder, para ter uma solução, para não ficar triste com aquilo.

Que impacto teve no público ter testemunhado uma situação tão sensível. Sentiu que deu força a outras vítimas de racismo?

A quantidade de mensagens, telefonemas e publicações que recebi foi assustadora. Fui apanhado de surpresa. O racismo tem uma bandeira muito pesada de se erguer e, infelizmente, Portugal é um país racista. Adoro viver em Portugal, mas é estruturalmente racista.

Que mudanças anseia ver?

O princípio de tudo é o aproximar as comunidades. O que se vive nos bairros é que os pais trabalham de sol a sol, não têm tempo de educar as crianças, é a escola que as educa. Mas a escola não tem essa obrigação, porque a escola é para formar crianças. Quando tens uma comunidade em que o nível de vida é precário, mesmo quando alguém se destaca, nunca será uma coisa em grupo. Não condeno porque não tenho esse poder, mas o realojamento social em Portugal é uma derrota. Porque é que Chelas não está misturado com pessoas da Lapa e da Estrela? Porque é que as pessoas não estão misturadas? As pessoas estão segregadas. O conceito ‘só se estraga uma casa’ é o realojamento em Portugal.

É preciso que existam pessoas como a minha mãe que vai fazer limpezas, como o meu pai que vai trabalhar nas obras, para haver os donos de obras e de grandes casas. Se eu pudesse mudar, seria isto. Eu vi isso no rugby: 90% do pessoal era licenciado e eu questionei-me porque é que eu não era.

Não posso viver com o sangue azedo a achar que o branco é mau e o preto é bom. Temos de trabalhar situação a situação

Esse exemplo não o rebaixou, mas estimulou-o a querer mais.

Exatamente. Quando tens uma comunidade com uma grande percentagem que não estuda, estás a remar contra a maré. Mas quando estás numa comunidade em que toda a gente estuda, o que não estuda é que está a remar contra a maré. Quando os pais, com empregos precários, não podem fazer o acompanhamento dos filhos e tens uma comunidade com uma série de problemas, é muito mais fácil a comunidade estar condenada ao fracasso. Se houve inclusão, seria de outra forma.

Sente que se tornou numa voz ativa? Esta é uma das suas lutas?

Não tenho intenção de me tornar um ativista. Esse papel pode ser mal interpretado e, em vez de ajudar, pode prejudicar. Não patrocino ideias negativas, a minha forma de enfrentar isto é formar os meus filhos, é poder oferecer um livro, indicar um filme. A bandeira que eu levanto não traz essa onda de combate. Não tenho de culpar o vizinho do lado por problemas que não foi ele que criou.

A discriminação racial tem mais de 500 anos de história, estamos a par do que foi a escravatura. Não posso viver com o sangue azedo a achar que o branco é mau e o preto é bom. Temos de trabalhar situação a situação. Não se pode generalizar. Quando digo que Portugal é um país racista, é um problema estrutural, não estou a dizer que as pessoas são.

Ao tornar-se homem adulto, quem foram as pessoas que teve como exemplo a seguir?

O meu pai. Foi um homem muito duro e até severo. Não é um homem mau, mas era pouco tolerante. Foi a forma que ele encontrou para nos manter no caminho certo. Quando saí de casa, com 23 anos, saí chateado e hoje, se conseguir ser metade do que o meu pai foi, já estou a fazer um bom trabalho. Ele trabalhou a vida toda - e trabalha ainda hoje - para que não nos falte nada. Tenho também o meu professor, o Acúrcio, que é o meu padrinho de casamento. São pessoas a quem devo muito.

Queríamos muito ter uma menina, mas a vida precisa de desbloquear um bocado, a pandemia foi um problema para toda a gente

Há outra pessoa, a sua mulher, por quem é muito apaixonado. Como é a vida ao lado dela?

É para todas as horas e não fácil. Para eu poder fazer estrada, ter esta vida, não é possível sozinho, não dá. Ter alguém que entende, que apoia, alguém que me corrige sem querer o meu mal, acho que é impagável. Depois é quem enche as minhas medidas e o meu peito.

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Matay com a mulher e os filhos© Instagram

Está nos planos aumentar a família?

Está, queríamos muito ter uma menina, mas a vida precisa de desbloquear um bocado, a pandemia foi um problema para toda a gente.

Como imagina o futuro?

O meu futuro é maravilhoso. Já sou um homem feliz e isso só vai aumentar. Há muita coisa boa para vir, tenho muita coisa para fazer e viver. Vejo-me a viver da música, mas também a dar um apoio à ação social. Vejo os meus filhos grandes, formados, sólidos. Vejo uma casa grande, crianças a correr, cães… Acima de tudo vejo saúde e felicidade.

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