Muitas vezes ouço queixas que as crianças hoje não dão valor às coisas; pensam que tudo cai do céu e apenas sabem pedir mais e mais, desde o último modelo de telemóvel, as sapatilhas (ténis) que estão na moda, aquela mochila espetacular, e um sem número de produtos e serviços que pedem aos pais.

Os pais apercebem-se deste consumismo (que na literatura académica chamamos de materialismo) só mais tarde, quando os filhos chegam à adolescência ou à pré-adolescência. Mas as crianças cedo apreendem a noção de valor dos objetos ao longo de um processo designado de socialização do consumidor, ou seja, através do seu desenvolvimento como consumidores.

Os estudos mostram que para ser um consumidor completo a criança passa por várias fases. Em primeiro lugar, tem que compreender que existem necessidades e vontades e que estas podem ser satisfeitas com produtos e/ou serviços, ou seja, para além das necessidades imediatas como sejam as fisiológicas, compreende que existem outros estímulos como anúncios em revistas, na televisão, etc, que lhes mostram que existem produtos que têm a capacidade de satisfazer as suas necessidades; Segundo, tem que reconhecer que existem locais específicos para a aquisição desses produtos e serviços, ou seja, reconhecer as lojas e perceber que os produtos e serviços são disponibilizados nessas lojas; Terceiro, tem que entender que, para adquirir esses bens, é necessário dinheiro, ou seja, que existe uma unidade pecuniária com a qual são realizadas as compras; Por fim, tem que entender que, para ter acesso ao dinheiro tem que haver uma troca, ou seja, é necessário fazer algo para que consiga obter o dinheiro com o qual adquire os bens e serviços que necessita.

Uma criança que vai sempre de carro para a escola acha que andar de transportes é complicado e desconfortável

Como sociedade, claramente estamos a ensinar a primeira e segunda fase, já que todos os dias as crianças são expostas a estímulos e visitam lojas nas quais encontram produtos para satisfazer as suas necessidades. Onde estamos a falhar é nas outras fases, em particular na de reconhecer que é preciso trabalhar para ganhar dinheiro para adquirir os produtos e serviços.

Sempre que faço e consulto estudos onde se comparam crianças de meios sociais diferentes, claramente as crianças de meios menos favorecidos têm uma melhor noção do valor das coisas que as crianças de meios mais favorecidos. Simplesmente porque recebem muitas vezes respostas dos pais aos seus pedidos tais como “É muito caro”, “Não podemos comprar tudo”, “O dinheiro não chega”, etc.

Uma vez, num estudo, ao entrevistar uma criança, após ter feito um desenho no qual estavam ela e a mãe a fazer compras no supermercado, quando lhe perguntei se as pessoas do desenho estavam alegres ou tristes, ela respondeu que a mãe estava alegre pois “o dinheiro tinha dado para comprar tudo o que ela necessitava”. Este tipo de conversas entre pais e filhos é a primeira forma de eles entenderem que o dinheiro é finito e que temos que fazer escolhas todos os dias.

Ainda recentemente, durante a crise de 2008, muitas crianças ficaram em pânico pois só ouviam notícias sobre pessoas que perdiam os empregos e não conseguiam alimentar as suas famílias nem pagar as suas casas. Pelo que também não podemos entrar em exageros e deixar as crianças aflitas. Há que mostrar a realidade, mas de forma adequada ao seu desenvolvimento.

No entanto, hoje assistimos a pais, tios, avós, que, em virtude de terem vivido em períodos de menor disponibilidade financeira, querem dar tudo às crianças, não lhes negam nada e muitas vezes fazem sacrifícios para que as crianças/jovens tenham tudo aquilo que “necessitam”. Na literatura académica falamos das crianças como fazendo parte do extended self dos pais, ou seja, a imagem dos pais está condicionada à dos seus filhos e os pais querem que eles “pareçam bem”, para que os pais “fiquem bem na fotografia”. Muitas vezes estes processos são inconscientes por isso, se calhar, neste momento está a abanar a cabeça e a dizer que consigo isso não acontece.

No entanto, se a criança cresce no meio do conforto, dificilmente ela vai conseguir habituar-se ao desconforto. Uma criança que vai sempre de carro para a escola acha que andar de transportes é complicado e desconfortável. Uma criança que tem sempre sapatos novos quando estraga os velhos, não vai ter cuidado de estimar o calçado quando anda na rua, está a brincar, etc. Um jovem que tem um carro aos 16/18 anos e que os pais lhe pagam a gasolina e todas as despesas, não é confrontado com decisões de ir de carro vs. poder jantar fora.

Para além da noção de esforço, é necessário a noção de consequência. Se estraga um telemóvel não deve ter de imediato outro

É necessário haver esforço para alcançar as coisas. Cada vez é mais raro os jovens trabalharem desde cedo. Não estamos a falar de trabalho infantil, mas sim de haver um despertar da necessidade de ganhar dinheiro. Desde passear o cão do vizinho, fazer as compras da senhora de idade do 6º andar, dar explicações a crianças mais novas, fazer de baby sitter, há um número infindável de tarefas que as crianças podem fazer desde cedo (depende da maturidade de cada criança mas seguramente a partir dos 12 anos elas serão capazes de assumir uma responsabilidade e ganhar o seu próprio dinheiro). Não significa pagarem todas as suas despesas, mas ganharem dinheiro para poderem adquirir as coisas especiais que desejam. Mesmo que os pais possam oferecer esses bens, é saudável que sejam pagos com o próprio dinheiro que lhes custou a ganhar (pode ser fruto do trabalho e/ou de pouparem as prendas em dinheiro que recebem nos dias especiais – aniversário e Natal).

Muitas vezes, quando analiso currículos de alunos da faculdade, parece que só começaram a fazer estágios e a ter vida para além da escola quando entraram na faculdade (muito por causa dos departamentos de carreiras que lhes ensinam que isso é importante para arranjarem emprego).

Para além da noção de esforço, é necessário a noção de consequência. Se estraga um telemóvel não deve ter de imediato outro. Se não consegue acordar cedo para ir para a escola, também não vai poder ir à atividade de fim de semana que queria muito.

Em suma, dar valor às coisas é entender que elas custam a ganhar, de preferência sentindo isso na pele, e também entender que as coisas devem ser estimadas e não estarmos sempre no ciclo consumista do estraga velho, compra novo.

Luísa Agante é professora de marketing na Faculdade de Economia do Porto e especialista em comportamento do consumidor infantil e juvenil. Tem uma página no Facebook chamada "Agante & Kids" na qual publica e partilha regularmente conteúdos informativos sobre comportamento infantil para pais e educadores.