Lutar ou fugir é uma das grandes questões da natureza. Ao enfrentar uma situação perigosa ou potencialmente fatal, uma pessoa (ou animal) pode ter duas respostas: lutar contra o perigo ou fugir para a segurança.

Quando a Maia foi diagnosticada com cancro, aos 3 anos, os meus instintos maternais vieram ao de cima. A minha reação imediata foi encarar aquela doença de frente e fazer com que a minha filha percebesse que eu a ia ajudar a lutar.

Sem que eu própria percebesse, assumi uma posição de luta, de não desistir. E em todas as situações que se seguiram (como o coágulo sanguíneo que a Maia teve, as visitas ao hospital a meio da noite, as infeções…), eu fui capaz de permanecer equilibrada e fazer, de forma calma e ponderada, tudo aquilo que a minha filha precisava para se sentir o mais segura, e feliz, possível.

Acredito que a maioria das pessoas tem esta reação quando confrontada com o cancro; quer se seja o paciente ou o cuidador, o primeiro instinto é lutar. Até porque é a única coisa que podemos fazer: lutar contra aquela doença, enfrentar todos os males que ela nos traz.

Mas o que acontece quando não há mais nada pelo que lutar?

Quando chegámos perto do fim do tratamento da Maia, que durou quase 2 anos e meio, o meu instinto de fuga ganhou vida.

Todo o meu mundo, naqueles últimos tempos, girava à volta da minha filha e da doença dela, uma doença que também tinha consumido grande parte de mim enquanto pessoa. Era esse o tipo de pessoa em que eu me tinha tornado.

A Maia não se lembra de como era a sua vida antes de ser diagnosticada. Mais de metade da sua existência foi passada a lutar.

Sempre pensei que o “fim do tratamento” seria o “ponto final” daquela luta. Que não teríamos que nos preocupar com mais nada. Que exclamaríamos em uníssono “nós vencemos o cancro”, pois a ameaça teria desaparecido.

E, se é verdade que a ameaça imediata desaparece, também é verdade que, nesta nova fase, aparecem outras ameaças, mais escondidas, como a recidiva.

Mas essa não é a principal razão pela qual eu quero fugir.

A principal razão é porque, na realidade, nada mais aconteceu para além do fim do tratamento. A Maia tem de continuar a fazer exames, tem de continuar a ser seguida pelos médicos, tem de continuar a entrar, ainda que menos vezes, naquele hospital.

A minha filha só será considerada curada se, a partir de agora, não tiver quaisquer sinais de cancro nos próximos 5 anos.

E, se por um lado, o cancro se foi embora, por outro, é agora a vez dos efeitos secundários decorrentes dos tratamentos. Para além da fisioterapia, que ajuda a minha filha a fortalecer as pernas e as fraturas nos tornozelos que ainda estão a cicatrizar, começamos a perceber alguns dos impactos cognitivos com que teremos de lidar.

E ainda estamos apenas no começo desta nova fase…

Os efeitos secundários tardios mais comuns do tratamento de cancro em crianças incluem (mas não se limitam a) problemas de aprendizagem, crescimento ósseo anormal, problemas de tiroide, problemas de visão, problemas dentários, problemas nos pulmões, fígado e rins, perda auditiva, atraso no desenvolvimento sexual e problemas de fertilidade e, claro, o aumento do risco de cancros futuros.

Às vezes questiono-me porque é que a minha filha não pode ter paz. Porque é que vai ter que ser posta à prova mais uma vez. Mas depois lembro-me que existem outras crianças que continuam a lutar, ou que tiveram uma recidiva, ou que perderam a sua vida.

E aí percebo que esta é a paz que a minha filha pode ter. E desta forma percebo que, no fundo, sou uma sortuda.

Mas continuo a querer fugir de todas estas coisas, de todos estes efeitos secundários, de toda esta dor e de todas estas incertezas. Mas não sei para onde ir.

Não sou a mesma pessoa que costumava ser. Às vezes não me reconheço. Hoje, depois destes 2 anos e meio, sinto-me mais forte, mais confiante, mais compreensiva e mais eficiente, mas também estou mais volátil, menos atenciosa, mais impaciente e muito, muito cansada. Eu mudei.

A Maia também mudou. O cancro faz isso às pessoas, sejam elas pacientes ou cuidadoras. A minha filha não consegue entender porque é que não consegue correr tão rápido quanto as outras crianças, se a leucemia já se foi embora.

A frustração dela deixa-me frustrada. Porque quero ajudar a minha filha, quero que ela tenha a infância que lhe foi roubada. Tenho medo que as incapacidades que ela hoje sente a venham a definir enquanto pessoa. E, embora esteja feliz por ela não se lembrar de grande parte do seu tratamento, tenho receio que ela também não se lembre da força que teve de ter para ultrapassar tudo isto.

Mas, a verdade é que estamos todos aqui. Quantas famílias podem dizer o mesmo?

Sim, ainda estamos a tentar descobrir como nos moldar a esta nova vida que estamos a começar a viver. O cancro pode ter ido embora, mas o seu impacto é duradouro.

Hoje, agarramo-nos ao nosso passado para nos lembrarmos o quão sortudos somos. Sim, sortudos. A minha filha teve cancro, mas conseguiu vencê-lo. Agarro-me a isso quando sinto que quero fugir, pois mesmo que o dia esteja a correr mal, ele corre mal com a minha filha ao meu lado. E muitas mães, infelizmente, não podem dizer o mesmo…

Eu não sei o que o resto desta jornada nos reserva, apenas sei que este é o fim de um capítulo e o início de um novo.

Não é o fim da nossa jornada, porque todos aqueles que foram afetados pelo cancro sabem que a sua jornada nunca termina.

A nossa vida já não será uma “vida sem cancro”, porque ele teve um papel muito grande na nossa jornada e continua a ter. O que existe é uma vida após o cancro, e este é o início da nossa.

Texto redigido por Sara Fernandez, professora e mãe de duas crianças.

Fonte: PIPOP