Fica em Lisboa, na Avenida Elias Garcia, e, nesta casa, tudo é feito no fogo. Porquê? Segundo o chef Alexandre Silva, quase nunca pensamos sobre isto, no entanto, este elemento "transfere o ingrediente que não existe" – o "fumo". Ao SAPO Lifestyle, o chef explica que a substância não é propriamente o fumo, "é aquilo que fica agarrado", por exemplo, "a um caldo verde que é feito num pote de ferro".

Conforme Alexandre, o fumo coloca na panela um "ingrediente" que não existe na receita e que não se pesa. "Por isso é que é tão diferente e as pessoas dizem: Ah, a minha mãe fazia aquela sopa e eu já fiz ou faço com as mesmas coisas, os mesmos produtos, da mesma maneira e nunca fica igual", complementa, explicando que o motivo é por se fazer "numa placa de fogão ou num fogão a gás e isso não vai transferir nada".

Faz-se luz. Quem nunca seguiu a receita de um dos pais ou avós à risca e sentiu que ficou a faltar algo que se acuse. Se calhar o que fica a faltar é o tal ingrediente invisível, mas essencial. Talvez  não seja suficiente saber quais são os ingredientes e a forma de preparação – é provável que o tipo de aparelho que se utiliza para cozinhar o preparado seja igualmente relevante. De acordo com este chef, também responsável pela cozinha do LOCO (que tem uma estrela Michelin), a placa de fogão ou o fogão a gás só vão transmitir energia, "que é o calor para aquecer o que está a ser feito". Assim, "o outro ingrediente nunca aparece, nunca lá está".

Resumindo, o fumo é "quase um emulsionante natural, emulsiona, faz com que todos os sabores que estão lá, que estão dentro dessa panela se consigam fundir num só". Alexandre Silva não tem dúvidas de que é o que faz a "diferença".

Fogo, um elemento fascinante

Ouvir Alexandre falar apaixonadamente da magia proporcionada pelo fogo nos cozinhados deixa-nos com água na boca e a recordar outros tempos em que famílias se reuniam à volta de uma fogueira enquanto preparavam um caldo para a refeição e se aqueciam. "Nós, portugueses, queremos sempre revisitar a cozinha de fogo, não é?", questiona de forma retórica. "Sentimo-nos confortáveis com isso e mais próximos. É quase como o canto da sereia, nós vamos atrás deste elemento, ficamos fascinados".

E Alexandre Silva deixou-se levar por este elemento de chamas e tornou-o na matéria central do espaço que abriu há meia década. "Foi por causa da necessidade que tinha de voltar ao passado", explica. "Assumo que durante uma parte da minha vida fiz muito mal à cozinha portuguesa", confessa. "Queria trabalhar com os melhores produtos, queria técnicas mundiais, queria foie gras, vieiras e caviar. Esse tipo de coisas. Na verdade, não estava a contribuir nada para a cozinha portuguesa, não estava a fazer uma cozinha portuguesa, não é?", conclui.

Ao Lifestyle, o chef explica que o restaurante Fogo conferiu-lhe a oportunidade de começar do zero e de estar mais próximo das suas raízes e de proporcionar o efeito ratatouille: "aquela coisa que nós comemos e, por momentos, sentimos que já tivemos naquele local, sem nunca saber se lá estivemos ou não", exemplifica. "É uma coisa que é mais forte do que nós, e há coisas que nós não conseguimos explicar (…) o pão cozido no forno a lenha, um simples frango assado na brasa, peixe grelhado… Mesmo quem nunca comeu ou ache que nunca comeu, vai provar e sentir-se próximo de alguma coisa, que deixou para trás em algum momento".

"Isso é o efeito ratatouille", explica-nos Alexandre Silva. "É aquilo que nos desperta as emoções e foi essa a necessidade que eu tinha e é capricho meu, uma necessidade de poder resgatar os tempos que tinha com o meu avô, os tempos na vinha, nos pomares, no campo, e saber transmitir isso de alguma maneira", partilha o proprietário do Fogo, mencionando ainda que o que oferece na ementa é o que estava habituado a comer com "uma dinâmica diferente no que toca à beleza".

Com raízes na zona oeste, mais precisamente na aldeia Abrigada, que fica no concelho de Alenquer, reconhece a importância que a vivência nesse lugar teve para a sua profissão, pois, graças a ela, provou os alimentos tal "como devem ser" – ou saber.

"As coisas tinham sabores diferentes conforme a estação que nós estávamos, porque uma coisa é tu comeres o produto fresco, outra coisa é comeres o produto que está preservado", contextualiza. "O figo fresco é diferente do fico seco", finaliza.

"Hoje em dia, quando compramos fruta, achamos mais estranho quando é boa do que quando é má. Isso é ridículo", comenta durante a conversa com o SAPO. "Para nós está tudo bem", lamenta ainda. "As coisas não têm sabor, não têm essência… Não sabes qual é a origem, não sabes nada sobre o que estás a comer e está tudo bem. Não pensamos sobre isso".

E como mudar? Será que a restauração nos pode ajudar a refletir sobre a origem dos alimentos e a valorizar a sazonalidade dos mesmos? Procuramos então perceber. "Alguma restauração vai conseguir e dá o contributo. Portanto, os restaurantes de fine dining, se formos comparar à alta-costura, ditam uma tendência e as pessoas normalmente vão atrás dessas tendências e as coisas vão mudando assim", responde Alexandre. "Mas há outros restaurantes que não estão nem aí, que não querem saber, querem é faturar, são negócios. No final do dia, querem é ter produtos ao preço mais baixo possível, não olham para o produtor, nada, ou seja, a cadeia só é importante deles para a frente", critica. "Isso é um problema: o egoísmo que existe nas pessoas", remata.

"Se estivéssemos todos no mesmo lado, as coisas seriam menos terríveis", constata.

Ainda que "desiludido" com o rumo que o mundo segue, onde "os grandes vão continuar sempre a vencer", apesar de, muitas das vezes, "não fazerem nada pelo futuro dos nossos filhos, do país e daquilo que nos define enquanto povo", Alexandre procura fazer a sua parte ao máximo.

"Trabalhamos com pequenos produtores, mesmo nos vinhos", conta-nos. "É o nosso trabalho, é a nossa posição e vai ser sempre assim", garante. "Eu tenho que trabalhar com pessoas que conheço, que sei a história. É importante que isso aconteça. Só conhecendo a história delas é que consigo também saber a origem das coisas, como é que elas trabalham, se me identifico ou não".

Os desafios para não apagar o Fogo

Para além da luta por um futuro mais saboroso e sustentável, os desafios de Alexandre Silva no Fogo continuam.

Logo após a abertura, em novembro de 2019, o espaço teve de fechar as portas devido à pandemia. "Fechamos as portas no dia 14 de março de 2020. Isso foi um pesadelo para o restaurante, porque viu todo o investimento – foi um investimento muito alto – a ir por água abaixo porque não conseguíamos entender bem o futuro e qual era a dimensão do problema", recorda.

"Só em 2022 é que começamos a ter uma retoma mais a sério", indica. "O ano passado já conseguimos estar na linha verde, mas só este ano é que conseguimos realmente estar numa retoma, que se consiga dizer promissora. O balanço [dos primeiros cinco anos] não é o mais risonho", afirma.

"Foi a pandemia, mas depois a Rússia invade a Ucrânia, depois a Euribor aumenta taxas que já não acontecia há muito tempo", nota. "Isso fez com que também este ano fosse um ano difícil, porque, ao contrário do LOCO, o Fogo trabalha com muitos portugueses, são a maioria dos clientes", diz, destacando ainda que foram os clientes nacionais que os ajudaram a equilibrar as contas durante a pandemia.

"A verdade é que os clientes portugueses, a maioria deles, infelizmente, têm de optar entre pagar o crédito de habitação ou ir jantar fora", contextualiza. "Isso nota-se bastante. Quando a Euribor mudou, nós sentimos que os clientes deixaram de nos visitar".

Apesar de terem tido mais procura estrangeira, Alexandre considera que o público principal do Fogo é o português. Para além da diminuição do poder de compra dos portugueses, outro desafio será o de alinhar a sustentabilidade ambiental, à financeira e à dos recursos humanos para que tudo "funcione bem".

Para tal, considera que é também importante os clientes terem consciência que o "custo do prato não é só a matéria-prima que está dentro desse prato". Contudo, tem consciência de que é um tema difícil de explicar especialmente num restaurante como o Fogo. "Como é que se explica a um cliente que aquele prato tem que custar X e não Y?", pergunta.

"Por um lado, nós temos que explicar, mas, por outro, temos que também saber explicar para não sermos muito mal interpretados", finaliza.