Em entrevista ao nosso jornal, a Diretora da Unidade de Mama do Centro Clínico Champalimaud abordou alguma das razões que explicam o facto de Portugal ser um dos países da Europa menos atrativo para a realização de ensaios clínicos. Depois de afirmar que estamos “reféns” dos interesses da indústria farmacêutica, a médica oncológica defendeu a necessidade de maior investimento, de forma a garantir “uma investigação clínica independente”, algo que “infelizmente não temos”. “Se não houver uma abertura das administrações para incorporar a investigação na prática clínica, não vamos conseguir ultrapassar as nossas dificuldades”, apontou.

HealthNews (HN)- O número de ensaios clínicos realizados fica aquém do desejado. Quais as condições que tornam a sua realização tão complexa?

Fátima Cardoso (FC)- Há várias razões pelas quais temos menos ensaios clínicos do que seria desejável. O facto de sermos um país pequeno faz com que existam poucos doentes para incluir em ensaios clínicos. No entanto, este tipo de dificuldades poderiam ser combatidos com uma melhor organização, mas não temos uma rede bem estruturada de centros para ensaios clínicos e os tempos de aprovação são demasiado longos. Em Portugal, demoramos à volta de 6 a 9 meses, sendo que o tempo ideal para a aprovação de um ensaio clínico é de, mais ou menos, três meses. Portanto, tudo isto faz com que sejamos considerados “pouco atrativos” para aquelas entidades que são promotores de ensaios.

HN- Por que razão demoramos tanto tempo?

FC- As razões são multifatoriais. O problema principal tem variado ao longo do tempo. Já houve momentos em que maior atraso era na CEIC ou no Infarmed. Há também importantes atrasos na aprovação dos ensaios clínicos a nível de cada centro.

HN- Atendendo a todas as dificuldades que mencionou, o que é preciso ser feito para termos um ecossistema que promova a investigação clínica? Quais as melhores estratégias?

FC- A nova lei europeia dos ensaios clínicos vai tentar diminuir alguns destes problemas, levando a uma submissão simultânea em todos os países. Isto vai obrigar a que a resposta do Infarmed tenha que ser mais célere, caso contrário perdemos de forma imediata a oportunidade de entrar no ensaio clínico.

Por outro lado, é preciso resolver o problema da falta de recursos humanos. Os ensaios clínicos deveriam fazer parte da nossa prática clínica. Os ensaios implicam mais tempo com o doente e, como é sabido, há muita pressão para que as consultas sejam cada vez mais rápidas e curtas. Se não se resolver estes problemas estruturais e se não houver uma abertura das administrações para incorporar a investigação na prática clínica, não vamos conseguir ultrapassar as nossas dificuldades.

HN- A melhoria da literacia em saúde por parte dos doentes também poderia ser um fator importante?

FC- Claro que sim. A melhoria da literacia em saúde é sempre um fator importante. Apesar de ainda existirem pessoas com receio de participar em ensaios clínicos, a maior parte, particularmente aqueles com doença grave, sabe que o seu envolvimento representa uma janela de oportunidades para ter acesso a novos tratamentos.

HN- Voltando à dificuldade verificada na investigação. Uma publicação científica recente da Acta Médica Portuguesa revela que os ensaios clínicos da iniciativa do investigador representam apenas 7% do total de estudos realizados a nível nacional. Como olha para estes dados?

FC- É um problema que não é só português. A realização de ensaios clínicos tornou-se complexa, demasiado burocrática e cara. Em Portugal, não temos fundos de financiamento para aquilo que chamamos “investigação académica”. Estamos muito “reféns” do tipo de ensaios clínicos que a indústria farmacêutica queira realizar. Deveríamos ter fontes de financiamento que nos permitissem ter uma investigação clínica independente. Infelizmente não temos.

HN- Qual a importância da diversidade e inclusão para uma maior eficácia dos ensaios clínicos? Sabemos que há poucos estudos a incluírem idosos, crianças, mulheres grávidas e pessoas LGBTQ+.

FC- A maior parte das pessoas que são incluídas são de raça branca, existindo poucos dados sobre outros tipos de raça. Por outro lado, os doentes com alguns tipos de doença crónica (ex.: diabetes) também são frequentemente excluídos dos ensaios. E qual é o impacto que isto tem? Quando um novo medicamento só é avaliado num determinado tipo de doentes, após a sua introdução no mercado e utilização numa população mais alargada, podem surgir alguns problemas. Verificamos, por exemplo, casos de toxicidade e casos de menor eficácia. Portanto, é muito importante que haja mais diversidade e inclusão nos ensaios clínicos.

HN- E sobre as mulheres grávidas e as crianças?

FC- As crianças não podem entrar nos mesmos ensaios que os adultos, porque as doses usadas são diferentes. Mas existem muitos ensaios clínicos pediátricos bem organizados. Relativamente às grávidas, são um grupo com algumas particularidades, uma vez que há determinados medicamentos que não podem ser utilizados porque podem ser maléficos para o bebé.

HN- O futuro dos ensaios clínicos passa por que tipo de modalidades?

FC- Os ensaios clínicos consistem num modelo de validação de um tratamento, seja para medicamento, para radioterapia ou cirurgia. Portanto, os ensaios clínicos são necessários para tudo aquilo que pretendermos ver implementado na prática clínica. É claro que quanto mais complexo for o tratamento, mais complexo se torna o ensaio. Uma das razões pelas quais Portugal tem poucos ensaios de fase 1 é porque até há pouco tempo não dispúnhamos de nenhuma unidade para este fim. Felizmente, temos uma no IPO-Porto e em breve teremos uma no Hospital de Santa Maria.

HN- Uma nota final

FC- A participação no ensaio clínico para alguém que tem uma doença grave e incurável é uma esperança de acesso a novos medicamentos. É a única forma que a Ciência tem de evoluir e de vermos aprovadas novas formas de tratamentos.

Entrevista de Vaishaly Camões