O recente surto de Sarampo em Londres evidenciou falhas graves na cobertura vacinal e nos mecanismos de vigilância epidemiológica, particularmente em populações urbanas vulneráveis. A predominância de casos em crianças não vacinadas, aliada a factores como a hesitação vacinal, desinformação e fragmentação do sistema de saúde, representa um alerta real e expectável para Portugal. Embora o país mantenha uma adesão elevada ao Programa Nacional de Vacinação, inicialmente surgem sinais de vulnerabilidade que bloqueiam o reforço da ação preventiva. Neste contexto, a Enfermagem de Saúde Familiar, Comunitária e de Saúde Pública, assumam um papel estratégico na promoção da vacinação, na vigilância epidemiológica e na resposta educativa junto às populações. Este artigo propõe uma análise crítica do caso de Londres, com ênfase na importância da proximidade, da literacia em saúde e do exercício profissional em Enfermagem, como pilares de confiança no Programa Nacional de Vacinação.
Palavras-chave: Sarampo; Vacinação; Enfermagem Comunitária; Vigilância Epidemiológica; Cuidados de Saúde Primários
O surto de sarampo no Reino Unido, com destaque para a cidade de Londres, onde se registraram 233 dos mais de 500 casos confirmados em território inglês no primeiro semestre do ano, representa o número mais elevado desde 2012 e revela um padrão de regressão na imunidade coletiva e mostra falhas estruturais nos sistemas de vacinação e vigilância epidemiológica, sobretudo em comunidades urbanas densamente povoadas. A maioria dos casos afetou crianças com menos de 10 anos, muitos dos quais não foram vacinados com a vacina tríplice viral (MMR), o que evidencia lacunas graves na adesão e cumprimento do calendário vacinal.
A análise deste episódio permite uma reflexão crítica sobre as condições que tornam possível o reaparecimento de doenças imunopreveníveis, num tempo em que os instrumentos técnicos e os recursos programáticos estão amplamente disponíveis. Os fatores determinantes do surto de Londres incluem a hesitação vacinal, reforçada por movimentos de desinformação e discursos pseudocientíficos nas redes sociais; o impacto persistente da pandemia de COVID-19, que interrompeu a regularidade das consultas e da administração das vacinas; e a existência de bolsas populacionais com baixa alfabetização em saúde, escassos recursos e pouca confiança nos serviços públicos. A resposta institucional tardia e a fragmentação da vigilância epidemiológica agravaram o cenário, permitindo que o sarampo se disseminasse rapidamente entre os não vacinados.
Portugal, embora se destaque por uma tradição consolidada de políticas públicas de vacinação e por índices elevados de cobertura vacinal no âmbito do Programa Nacional de Vacinação (PNV), não é imune aos riscos. Registam-se, nos últimos anos, pequenos focos de hesitação vacinal, atrasos em vacinas de reforço e uma influência crescente de discursos desinformativos, particularmente em contextos urbanos ou em populações com baixa literacia em saúde. A mobilidade internacional, o afluxo turístico e a integração de comunidades migrantes reforçam a necessidade de manter um sistema de vigilância ativo, inclusivo, territorialmente e culturalmente sensível.
A Enfermagem de Saúde Familiar, Comunitária e de Saúde Pública assumem um papel de importância estratégica. Os enfermeiros, integrados nas Unidades de Saúde Familiar (USF), Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados (UCSP), Unidades de Cuidados na Comunidade (UCC) e nas Unidades de Saúde Pública (USP), constituem o núcleo operativo e de exercício profissional na promoção vacinal, na vigilância epidemiológica em proximidade e na deteção precoce de falhas no cumprimento do PNV. São estes profissionais que, na prática clínica cotidiana, acompanham o ciclo vital das famílias, identificam atrasos vacinais, promovem ações educativas, explicam com base científica os benefícios da imunização e intervêm, com empatia e sensibilidade cultural, junto às populações mais vulneráveis.
Seu trabalho vai muito além da execução técnica de vacinação: envolve uma análise crítica de dados clínicos, a comunicação de risco, a progressão com as autoridades de saúde pública e a implementação de estratégias locais de melhoria contínua. Através de plataformas como o SClínico e o sistema VACINAS, os enfermeiros acompanham a adesão vacinal de seus usuários, planejam intervenções e articulam respostas em equipe multidisciplinar. Esta atuação só é realmente eficaz quando integrada com os dados populacionais analisados pela USP, permitindo alinhamento de vigilância clínica e vigilância epidemiológica e segurança de intervenções direcionadas, rápidas e com base territorial.
Importa também sublinhar o papel dos profissionais de saúde enquanto exemplos de responsabilidade vacinal. A Norma n.º 002/2021 da Direção-Geral da Saúde estabelece a obrigatoriedade de vacinação contra doenças imunopreveníveis, como o sarampo, para todos os profissionais de saúde. Esta responsabilidade estende-se também, em termos éticos, à vacinação dos filhos dos profissionais. A coerência entre o discurso técnico e o comportamento individual constitui uma ferramenta poderosa na construção de confiança junto às populações.
Portugal dispõe dos recursos humanos e institucionais necessários para prevenir surtos semelhantes ao de Londres. Contudo, para que tal aconteça, é essencial continuar a investir na literacia em saúde, reforçar a formação dos profissionais em comunicação e gestão da hesitação vacinal, garantir sistemas de informação robustos e valorizar o contributo insubstituível das equipas de enfermagem dos cuidados de saúde primários com doações seguras. A enfermagem portuguesa tem sido, historicamente, um pilar de promoção da saúde pública. Reconhecer esse papel é mais do que um gesto simbólico: é uma condição para mantermos a confiança, a coesão e a eficácia do nosso sistema de saúde.
O caso de Londres é um espelho do que pode ocorrer em qualquer país onde se relaxe a vigilância e se desvalorize o papel das estruturas e os cuidados de proximidade, de base comunitária. Em Portugal, a resposta deve continuar a ser preventiva, coordenada e ancorada nos cuidados de saúde primários. A Enfermagem de Saúde Familiar, Comunitária e de Saúde Pública é, neste processo, a linha da frente do SNS.
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