Não há, não
Duas folhas iguais em toda a criação
Ou nervura a menos, ou célula a mais
Não há, de certeza, duas folhas iguais

António Gedeão, Poesias completas 1956-1967

Na madrugada de ontem não conseguia adormecer. Nada de muito diferente de muitas outras noites. Já tive várias outras situações difíceis na vida e que me tiraram o sono. Ajuda se eu disser que tenho um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo e uma Perturbação da Ansiedade! Chamo-me Cláudia (nome fictício), tenho 18 anos e vou entrar em Tradução na Universidade Nova de Lisboa.

Este breve testemunho da Cláudia caracteriza a de muitos outros que na madrugada de domingo passado aguardavam, uns mais serenos do que outros, os resultados de colocação no Concurso Nacional de Acesso ao Ensino Superior para o ano lectivo de 2021-2022.

A Cláudia é daquelas que aguardou com bastante dificuldade e sofrimento. Não apenas para saber se entraria ou não. Mas se entraria no curso desejado. Isto porque na altura da candidatura viu-se forçada a colocar mais hipóteses para poder garantir a entrada, mesmo que não desejasse nenhuma delas. Não foi fácil mas acedeu ao pedido dos pais.

Além disso estava e ainda continua ansiosa em relação ao facto de ir para um lugar que lhe é estranho. Os últimos três anos esteve na mesma escola e isso foi-lhe devolvendo uma maior previsiblidade e sensação de segurança. Apesar de ser da área metrolopolitana de Lisboa, Cláudia vive em Tires e vai necessitar de usar os transportes públicos. Coisa que nunca antes se tinha equacionado.

Ainda mais neste período de pandemia, a situação torna-se mais difícil ainda. Mesmo que já tenha sido reafirmado à Cláudia de que a situação pandémica está bastante mais controlada.

Cláudia não conhece ninguém que vá entrar no seu curso e na mesma Universidade

Na verdade, Cláudia não tem muitos amigos e até mesmo conhecidos. Não que não o deseje ter. Mas a sua vontade em ter ou fazer relações é um pouco diferente e a Cláudia está no processo de compreender isso tudo melhor.

Cláudia foi diagnosticada aos nove anos com Perturbação do Espectro do Autismo. Não foi um processo fácil porque ninguém queria acreditar nisso, nem mesmo grande parte da sua família. Apenas a sua mãe insistia com todos e inclusive com os médicos de que algo se passava com a sua filha.

Não fosse o facto de Cláudia sentir as dificuldades no seu quotidiano e também acharia que a sua mãe estava a ver coisas onde elas não existem. Mas ao fim de algum tempo, sofrimento e persistência o diagnóstico acabou por sair. Mas depois verificaram outra luta. A escola que Cláudia frequentava não estava a aceitar a integração da Cláudia na Educação Especial. Na altura ainda era esta a designação ao abrigo do Decreto-Lei 3/2008.

Os pais da Cláudia pensaram que o 4º ano estava quase a acabar e na entrada do 5º ano mudariam de escola e talvez pudesse ser diferente. Mas não foi assim tão diferente e além disso o 4º ano foi bastante difícil para a Cláudia, até porque era vitima de bullying por parte de alguns colegas.

É verdade que estamos a falar do facto da Cláudia ter entrado no Ensino Superior. Mas não podemos dissociar todas estas suas experiências e da forma como as mesmas impactaram e ainda têm impacto no seu quotidiano e nas suas escolhas.

O facto de não saber como vai ser a integração na Educação Inclusiva, designação agora dada e com um enquadramento legal diferente, o Decreto-Lei 54/2018, a Cláudia e os seus pais estão com maior incerteza em relação ao futuro. Do que perceberam na Universidade não existe uma lei como a que houve até ao final do 12º ano. Mas perceberam que haviam Universidades que tinham algum tipo de apoio. Mas como seria? E seria diferente? E como os professores iriam reagir? E os colegas? Voltava novamente tudo a ecoar nos pensamentos da Cláudia e com isso a sua ansiedade voltara a estar mais desregulada.

A Cláudia não é a única candidata com necessidade de ser integrada na Universidade no âmbito da Educação Inclusiva

No entanto, a Cláudia não concorreu através do contingente especial porque nem sequer tinha conhecimento dessa possibilidade. E tal como ela também muitos outros não o sabem. Assim como também não sabem quais as Universidades que têm algum tipo de regulamento para integrar os alunos com deficiência e no caso especifico para a Perturbação do Espectro do Autismo.

Por exemplo, no ano letivo de 2017/2018 estavam integrados na Educação Especial no Ensino Secundário cerca de 15000 alunos. Contudo, no ano lectivo de 2020/2021 apenas concorreram através do contingente especial 312 alunos.E foi registado cerca de 2700 alunos registados no Ensino Superior como tendo solicitado o estatuto de aluno com necessidades educativas especiais.

Como podemos perceber, a Cláudia, independentemente das suas características, tem um número bastante significativo de questões que levam a que a sua preocupação e ansiedade possam estar aumentadas. É fundamental poder ajudar os alunos como a Cláudia, sejam autistas ou com outros diagnósticos a poder fazer uma transição mais suave para o Ensino Superior.

E poder ajudar a todos aqueles que trabalham lá, sejam docentes ou outros profissionais, a estar ainda mais adaptados para dar uma resposta que faça cumprir os princípios fundamentais e direitos de todos.