Numa colher de chá de solo podemos encontrar mais de um milhão de milhões de seres vivos, pertencentes a, até, dez mil espécies diferentes. Um número incrível, que nos revela toda a biodiversidade existente, por exemplo, numa simples horta doméstica, ocupando uma pequena área numa varanda.  Um número que, no caso vertente, serve aos autores do livro “A Minha Horta é Biológica” para nos dar conta de todo um mundo de aprendizagem, cuidado e projeto familiar contido num canteiro doméstico.

Uma conversa com Isabel de Maria Mourão e Miguel Maria Brito, respetivamente mãe e filho, engenheira agronómica e arquiteto paisagista, que nos traz a importância de educar para a natureza. Envolver as crianças no meio ambiente, compreender os ciclos de vida das plantas, a vida de outros seres que partilham o planeta, compreender a origem dos alimentos que lhes chegam à mesa.

Um convite a abandonar o facilitismo dos ecrãs e a encetar caminho na descoberta dos espaços livres, o que inclui as áreas verdes urbanas e a uma escala micro, a horta cuidada nos nossos lares. Neste caso “um ótimo estímulo para desconectar”, como nos referem os autores.

Isto num mundo que atinge um “ponto crítico”, face à crescente escassez de recursos naturais e perda de biodiversidade, o acréscimo da população e alterações climáticas.

Numa conversa onde percebemos que nem toda a horta doméstica é biológica, os autores aproveitam para nos deixar pistas sobre os melhores alimentos a cultivar nos pequenos espaços de que dispomos nos nossos lares.  A fórmula para o sucesso nestas culturas de dimensão familiar? Motivação, perseverança e aprender a ler a linguagem da natureza.

Na obra que publicaram em 2015, “Uma Horta em Casa”, já se percebia a preocupação em envolver pais, educadores e crianças em projetos domésticos de cultivo. Agora, com o presente livro, esta torna-se a mensagem central, certo?

Sim, partilhar a horta com os mais novos é benéfico para o seu crescimento, aprendizagem e saúde. Compreender o ciclo de vida das plantas torna-os mais pacientes e o contacto com a terra, com os insetos e com outros seres vivos, torna-os mais tolerantes e resilientes. Por outro lado, passam a entender de onde vêm as plantas que comem diariamente, aprendem a valorizar os alimentos e a diminuir os desperdícios.

Vivemos com o “distúrbio do défice de natureza”, um fator de sofrimento
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Trata-se de um livro que incita à (re)descoberta do meio natural. As crianças portuguesas estão afastadas da natureza?

Principalmente em meio urbano existe uma oferta limitada para o contacto com a natureza. Sentir diferentes cheiros, observar o comportamento dos insetos, acompanhar o crescimento de plantas, são experiências essenciais para o bem-estar e saúde das crianças e jovens, as quais, muitas vezes não são possíveis, nem mesmo nos espaços verdes que existem nas cidades. O “distúrbio do défice de natureza” nestas idades traduz-se em problemas comportamentais, de socialização e aprendizagem que atualmente se têm agravado em meio urbano.

Sentir diferentes cheiros, observar o comportamento dos insetos, acompanhar o crescimento de plantas, são experiências essenciais para o bem-estar e saúde das crianças e jovens.

Há, neste contexto, uma responsabilidade de pais e educadores. Falta-nos uma verdadeira educação para o sabermos cuidar e conviver com o meio ambiente?

Cada vez mais em casa ou mesmo nas escolas estão a ser introduzidas as hortas para fins pedagógicos ou recreativos, como forma de proporcionar aos mais novos o contacto com a terra, os seres vivos e as plantas que comem. A responsabilidade que temos como educadores é oferecer às crianças a oportunidade de uma experiência que os permita aproximar do meio ambiente onde vivem, seja através da horta ou de outro tipo de iniciativas. Sabendo que o exemplo é a melhor forma de educar, é importante motivar os pais e educadores para uma maior responsabilidade ambiental, tendo sido este, também, um dos objetivos deste livro: “para miúdos e graúdos”.

Num mundo hipnotizado por ecrãs, uma horta doméstica é um bom argumento para desintoxicar
Isabel de Maria Mourão e Miguel Maria Brito.

Como se explica que, num país de clima ameno como o nosso, nos refugiemos dentro de centros comerciais e tratemos de encerrar varandas com marquises?

O nosso clima é, de facto, propício para a vivência ao ar livre, mas infelizmente a nossa cultura urbana, hábitos de consumo e comodismo térmico, empurram-nos para os ambientes fechados e climatizados. No entanto, acreditamos que cada vez mais existe uma procura pelos espaços abertos, até pela crescente oferta dos mesmos. Veja-se, por exemplo, o aumento dos mercados de rua, jardins públicos e hortas urbanas em quase todas as cidades do País.

A atual persistência das crianças e jovens em se conectarem aos diferentes ecrãs, começa já a ser um problema que os pais e educadores enfrentam. As hortas em casa ou comunitárias podem ser um ótimo estímulo para “desconectar” esta tendência, que tem de começar pela vontade própria desses mesmos pais e educadores em se desconectarem dos seus hábitos de “ecrãs”, de consumo e de conforto individual.

A atual persistência das crianças e jovens em se conectarem aos diferentes ecrãs, começa já a ser um problema que os pais e educadores enfrentam.

Ao folhearmos este vosso novo livro percebemos, pela linguagem e ilustrações que têm um público-alvo, as crianças. Isto numa primeira análise. Posteriormente percebemos que a linguagem esquemática também se destina ao público mais maduro. É uma forma de seduzirem os adultos para esta causa?

Sim, este foi o grande desafio deste livro que nos demorou dois anos a concretizar. É um tema que achamos fundamental para crianças e jovens, mas em simultâneo tinha de ser atrativo e útil para os pais e educadores. A linguagem do texto e das ilustrações tem como objetivo comunicar de uma forma simples e pragmática como fazer uma horta e, ao mesmo tempo, ser também atrativa e interessante para os adultos. Na prática, o objetivo do livro foi servir qualquer pessoa, dos oito aos 80 anos, com toda a informação necessária para fazer a sua horta.

Isabel de Maria Mourão e Miguel Maria Brito

A vossa mensagem não passa, apenas, por olhar para a terra, cultivar, colher e comer. Há também uma abordagem mais profunda: o de olharmos para o planeta, cuidando-o. Chegámos a um ponto crítico?

Estamos em crer que sim, chegámos a um ponto crítico. Falando apenas dos atuais sistemas de produção de alimentos em todo o Mundo, estes, de um modo geral, comprometem a capacidade da Terra para produzir alimentos no futuro. A crescente escassez de recursos naturais e perda de biodiversidade, o acréscimo da população (particularmente urbana) e as alterações climáticas, representam enormes desafios, não só para a cadeia alimentar, mas também para a estabilidade global e prosperidade, pois podem agravar a pobreza e destabilizar a economia. Para tornar o sistema agroalimentar mais resistente em tempos de crescente instabilidade e incerteza, é inevitável uma mudança radical na produção e no consumo de alimentos.

Livro: “Vamos fazer o jantar?”. Basta ir à horta na varanda buscar os ingredientes

Por estes motivos, temos a convicção de que é necessário, por exemplo, eliminar a enorme quantidade de produtos químicos de síntese, nomeadamente, através da agricultura biológica. Principalmente para uma criança, é importante perceber que ter uma horta é muito mais do que cultivar o nosso alimento, é também compreender o ambiente que nos rodeia e de como dependemos dele. É necessário saber, por exemplo, que as plantas produzem o seu próprio alimento e alimentam todos os outros seres vivos, que as minhocas e os micróbios no solo são fundamentais, ou que existem insetos que chamamos de auxiliares, pois andam à caça de outros insetos que comem as culturas da nossa horta.

Às hortas domésticas tem-se atribuído não só benefícios económicos, sociais e ambientais, mas também terapêuticos.

Há uma dimensão terapêutica no ato de cultivarmos hortas domésticas?

Absolutamente. Às hortas domésticas tem-se atribuído não só benefícios económicos, sociais e ambientais, mas também terapêuticos. Os ambientes de hortas e jardins são atualmente reconhecidos como uma modalidade terapêutica eficaz e benéfica para o bem-estar e a melhoria da qualidade de vida das pessoas, nomeadamente, da sua saúde física, mental e emocional. Oferece oportunidades para a socialização e reabilitação, para uma participação ativa e exercício físico, para estimular os sentidos, a concentração, a criatividade e a destreza manual, existindo por parte da comunidade científica um crescente interesse nesta área.

Toda a horta doméstica não é, também, biológica?

Não, para ser biológica não podem ser utilizados produtos químicos de síntese, na forma de adubos para nutrir o solo ou pesticidas para combater as pragas, doenças ou as plantas infestantes (ervas daninhas). Como alternativa aos mesmos, utilizam-se técnicas como a fertilização orgânica através da aplicação ao solo de composto obtido por compostagem doméstica, por exemplo, ou fertilizantes orgânicos; as rotações e consociações de culturas e, para o controlo das pragas e doenças, estimula-se a existência de biodiversidade, como os insetos auxiliares, ou utilizam-se produtos naturais, como os preparados à base de sabão e extratos de plantas – os biopesticidas.

Um dos obstáculos a que muitas pessoas se lancem em projetos de hortas domésticas é a suposta dificuldade para as manterem. Presumo que tudo parta da forma como vemos essa manutenção. Se a abordarmos como um projeto educativo talvez mude a motivação, certo?

Claro que se abordarmos a horta como um projeto educativo ajuda a não desistirmos dela principalmente quando as dificuldades aparecem. Como em todos os projetos, o difícil é o início e depois de ultrapassadas as primeiras dificuldades, tudo se torna mais simples. Com alguma prática e conhecimento as tarefas da horta tornam se rotineiras e os obstáculos fáceis de resolver.

Têm dados que nos permitam perceber o contexto português face a outros países europeus onde o cultivo de bens alimentares em casa é uma realidade consolidada?

Não conhecemos a existência de dados estatísticos sobre o cultivo de alimentos em casa ou em hortas comunitárias urbanas, mas sabemos que é uma tendência generalizada na Europa como em todo o mundo. Em meados do séc. XX, 30% da população mundial vivia em áreas urbanas, passando para mais de metade em 2018 (55%) e estimando-se que aumente para 68% até 2050 (ONU, 2018).

A “Resiliência das Cidades” integra os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável definidos pela ONU em 2016, e as cidades devem caminhar para uma maior interação com a natureza, aproveitando todas as oportunidades para inserir a natureza e favorecer o contato das pessoas com os elementos naturais, através de uma infraestrutura ecológica de ligação da cidade ao território, que ofereça serviços ambientais e sociais. A agricultura urbana cumpre estes requisitos e a prática da produção biológica em hortas urbanas é altamente recomendável e essencial, devido à necessidade de respeitar e preservar os ecossistemas e de ser um sistema adequado de produção de alimentos, promovendo uma alimentação saudável.

É fascinante a vida que existe no solo Numa colher de chá de solo podemos encontrar mais de um bilião de seres vivos, pertencentes até dez mil espécies diferentes.

Um facto fascinante que retiramos do vosso livro é toda a biodiversidade que existe dentro de um simples vaso, numa varanda. Podem dar-nos exemplo disto mesmo?

Bom, é de facto fascinante a vida que existe no solo Numa colher de chá de solo podemos encontrar mais de um bilião de seres vivos, pertencentes até dez mil espécies diferentes. Estamos a falar de fungos, bactérias, algas microscópicas, protozoários, nemátodes, insetos, aranhas, moluscos e minhocas! Num vaso, que normalmente contém misturas de substratos e solo, esta quantidade e diversidade poderá ser ligeiramente menor, mas é sempre gigantesca. Frequentemente esquecemo-nos do mundo microscópico, do qual a vida depende, pois são os micróbios e outros seres vivos os protagonistas que decompõe a matéria orgânica em matéria mineral, que as plantas depois são capazes de transformar em alimento orgânico para elas e para todos nós.

No livro apresentam-nos um pormenorizado guia com os hortícolas passíveis de cultivo doméstico. Ficamos surpreendidos com a diversidade. Podem dar-nos alguns exemplos de bens que adquirimos nas superfícies comerciais e que, com algum investimento da nossa parte, podemos cultivar domesticamente?

Para as hortícolas como a batata, cebola ou cenoura, o espaço que normalmente dispomos para o cultivo em meio urbano nem sempre é compatível com a quantidade total necessária para o consumo da família. No entanto, para o espinafre, couve, alface, ervilhas, tomate, pepino ou pimento e todas as plantas aromáticas, já será possível uma verdadeira independência da sua aquisição no supermercado, caso exista espaço disponível.