Aos 95 anos, era dona de uma lucidez surpreendente. E não deixava ninguém sem resposta. A 17 de abril deste ano, encontrou-se com um grupo de jornalistas para promover aquele que viria a ser o seu último concerto, a 11 de maio, no Teatro Tivoli BBVA, em Lisboa. "Uma reunião de amigos", como lhe chamou. "Eu não sei quanto tempo é que duro mais. Pelo menos, naquela noite, tenho-os todos junto de mim", admitiu.

"Apesar de não poderem estar todos porque eu tenho muitos. Todos os meus colegas são meus amigos", acrescentou de imediato Celeste Rodrigues. Visivelmente entusiasmada com o espetáculo, apesar de continuar a atuar em casas de fados pelo menos quatro vezes por semana até há pouco tempo, confessou que, ao contrário de outros tempos, nas últimas décadas o palco já não a assustava. "Não da mesma maneira", ressalvava.

"No fundo, a pessoa habitua-se. Foi mais nos primeiros anos. Nas primeiras vezes que eu subi ao palco, as pernas tremiam-me. Hoje, sinto mais a responsabilidade, o medo de me esquecer das letras, o medo que a coisa não corra bem, o medo de ficar com os dentes colados... A primeira vez que ouvi o meu nome, não queria ir. Tive de ser empurrada. Porque eu sou tímida! É engraçado, não parece, mas eu sou tímida", revelou.

"Tenho saudades daquilo que não vivi"

Maria Celeste Rebordão Rodrigues, irmã da fadista Amália Rodrigues, nasceu a 14 de março de 1923 em Alpedrinha, no Fundão. Apesar de ter feito vida do fado, nunca quis ser fadista. "Aconteceu por acaso. Eu e a minha irmã começámos a cantar folclore da Beira e não o cantávamos nada mal", orgulhava-se. "Nessa altura, ninguém queria ser fadista. Só os de agora é que querem ser. Antigamente, era muito diferente", recorda.

"Não se podia cantar sem ter contrato nem sem ter carteira profissional. Agora, entra-se numa casa de fado e toda a gente canta. Era mais difícil antigamente [fazer carreira] do que é hoje. No meu tempo, era o público que fazia os artistas", assegurava. Apesar das muitas mudanças a que assistiu durante os 73 anos de carreira, não encarava o passado com um olhar saudosista. "Tenho saudades daquilo que não vivi", dizia.

"Aquilo que eu vivi está cá. As histórias antigas já passaram. Agora, estou sempre à espera de outras histórias. Cada espetáculo que faço é mais uma história. É bom chegar a esta idade e ainda ter um bocadinho de voz para cantar. Ficava muito triste se já não tivesse", admitia há três meses e meio. "Eu estou sempre bem desde que esteja a cantar. Uma pessoa sente-se viva. Se deixasse de cantar, já cá não estava", admitia.

"Sou honesta naquilo que faço e não minto"

Viver rodeada da família e dos amigos era uma das paixões da fadista que, quando confrontada com a forma como gostaria de um dia ser lembrada após a morte, também respondeu sem rodeios. "Depois de eu partir? Não me interessa! Eu preciso é que se lembrem de mim enquanto estou cá. Depois de partir, vou pensar que estes malandros me deixaram ir. É isso que eu vou pensar", afiançava, perante a insistência dos jornalistas.

"Interessa-me é viver e conviver com as pessoas e com as [minhas] amizades porque a vida sem amizades não é a mesma coisa. Felizmente, tenho a sorte de ter muitos e bons amigos", assegurou, entre outros desabafos. "A vida é uma aventura todos os dias e eu sou uma lutadora. Uma vez, parti um braço e fui cantar nesse dia", revelou. A tenacidade estava, no entanto, longe de ser a única qualidade de Celeste Rodrigues.

"Sou honesta naquilo que faço e não minto. Quando canto mal, digo que canto mal", assumiu. Foi por ser assim que, apesar de ter feito uma opereta, uma revista e três filmes, nunca quis enveredar pela representação. "Tenho muito respeito por quem representa. É preciso representar [para se ser ator] e eu não sei. Ter jeitinho não chega. Eu consigo cantar o que sinto mas não sei representar", considerava a fadista.

"As minhas rugas são vivências"

Do teatro puro e duro, conseguiu sempre fugir. "Nunca quis ir", assumiu. "E também não queria o cinema", revelou ainda. "Como sou vaidosa, não queria que as pessoas me vissem mal [na altura]. Aos, 70, já fiz. Agora, já não me importo", admitia Celeste Rodrigues. Apesar da mudança de postura, a vaidade, que também já não era muita, manteve-se. "Sou vaidosa em várias coisas. Na roupa, não. Sou só um bocadinho", admitiu.

"Habitualmente, visto a que me aparece primeiro", contou. As marcas da passagem dos anos também nunca as tentou apagar. "Quero lá saber das rugas. Para mim, são vivências. São um sinal de que estou viva. Se não as tivesse, já tinha morrido", afirmou. A necessidade de se sentir permanentemente viva leva-a a passar pouco tempo em casa. "Eu quero é ir para a rua sentir-me viva", confessava.

"Quero ir para a rua ouvir falar e ouvir fado. Eu sinto-me bem nas casas de fado. É como se estivesse na minha casa. Nas casas de fado, vive-se", sentia Celeste Rodrigues. "O fado são emoções", elogiava a fadista. Ainda assim, nas últimas décadas, gravou poucos. "Sou muito mandriona para gravar. Estamos sozinhos em estúdio e não há a mesma entrega. Ainda para mais, agora afastaram os guitarristas de nós", criticou.

"Ainda sonho que vou andar cá sete a oito anos"

Até há pouco tempo, atuava no restaurante Mesa de Frades às quartas-feiras e no Café Luso às sextas-feiras e aos sábados. Há 14 anos que era uma presença assídua. Às quintas-feiras, era no restaurante Fado Menor que a podiam ouvir. "Ainda me faltam [preencher] dois dias", brincou. "Eu gosto é de cantar nas casas de fado. O público está ali. Vemos a expressão das pessoas e isso é que é agradável para o artista", defendia.

Fã dos The Beatles e de David Bowie, Celeste Rodrigues também gostava de jazz. "Mas não o sei cantar. Toda a gente canta melhor jazz do que eu", admitia, humildemente. Aos fadistas mais novos que lhe pediam conselhos, muitos deles com a cabeça repleta de sonhos, nunca os deu. "Só lhes peço que sejam autênticos e não imitem ninguém", revelou. Aos 95 anos, a fadista continuava a ter os dela.

"Eu não faço outra coisa que é sonhar acordada porque, quando estou a dormir, não gosto de sonhar. Sonho constantemente. Ainda sonho que vou andar cá sete a oito anos", desabafava em abril, numa altura em que aproveitou para fazer um balanço dos 73 anos carreira. "Todos os momentos foram importantes. Eu não sou vedeta. Eu canto e as pessoas batem palmas e esses momentos são todos importantes", assegurava.