A partir de amanhã, dia 6, volta à antena da SIC em "Lua de mel", a continuação da telenovela "Amor amor". A pouco mais de um mês de fazer 85 anos, em entrevista exclusiva ao Broader/SAPO Lifestyle, Rui Mendes, ator e encenador, fala da carreira, dos sonhos que ainda tem e da contracena que já não vai poder fazer com a amiga atriz que partiu recentemente. "Não gostamos de envelhecer mas faz parte da vida", desabafa o artista. Em criança, queria ser polícia sinaleiro. Mas, depois, estudou arquitetura e até chegou a projetar um teatro, entretanto demolido.

Está prestes a celebrar 85 anos. Fazendo um balanço da sua vida e da sua carreira, já fez tudo aquilo que queria fazer?

Quantas semanas é que temos para estar aqui a conversar? [risos] Nunca se faz tudo aquilo que se gostaria de fazer. Fiz muita coisa que valeu a pena. Sinto-me feliz com a minha carreira. Mas são sempre muitas as coisas que a gente, um dia, gostaria de ter feito. Já não fiz nem vou fazer o Hamlet [personagem principal da peça "Hamlet" do poeta, dramaturgo e ator inglês William Shakespeare] porque já não tenho idade para isso, nem o Romeu [personagem da peça "Romeu e Julieta" do mesmo autor]. Nem o Romeu nem a Julieta... [risos]

Ficam sempre por fazer coisas que gostaríamos de ter feito mas, ainda assim, fiz muitas. Fiz muito teatro. Eu gosto, sobretudo, de fazer teatro. Agora, tenho feito menos. A última peça que eu fiz foi em Almada, há sensivelmente um ano. Entretanto, tenho estado a fazer telenovelas. Fazer telenovelas é o refúgio dos atores em Portugal porque o teatro está um bocado complicado... [pausa] A revolução do 25 de abril também chegou ao teatro mas, um ano depois, já o tinham esquecido...

Esquecido?

O verdadeiro teatro que interessa é um fator cultural e educativo. Não é para impingir receitas nem cultura a martelo na cabeça das pessoas. É uma coisa natural. É como ler um livro, ouvir poesia, ver pintura ou ouvir boa música. O teatro precisa de ser ajudado porque é um negócio caro, é um empreendimento caro... A gente vê muitas peças anunciadas só com dois ou três atores. São pouquíssimos os que se atrevem a fazê-las com mais.

Eu, uma vez, encenei no Teatro Nacional [D. Maria II em Lisboa] "A louca de Chaillot" [peça do escritor e romancista francês Jean Giraudoux] com 39 atores. Quem é que nos dias de hoje contrata 39 atores para fazer um só espetáculo? Ninguém tem dinheiro para isso. A bilheteira, depois, não compensa. O que se fatura não chega para tudo. Em todo o lado, os governos e os estados protegem e apoiam o teatro enquanto fenómeno cultural.

Em Portugal isso não acontece?

Acontece muito pouco. Às vezes, há uns lampeiros... Fala-se muito nisso mas, depois, na prática, esses apoios não chegam...

A percentagem destinada à cultura no Orçamento Geral do Estado representa apenas 0,25% da despesa total consolidada...

Exatamente. Anda-se há que tempos a pedir, pelo menos, que chegue a 1%. Mas não há maneira...

Ao longo da sua já longa carreira, houve algum ator, nacional ou internacional, com quem gostaria de ter contracenado?

Sim. Ainda uns tempos antes de ela falecer tinha pensado nisso. A Eunice Muñoz. Éramos grandes amigos, já nos conhecíamos há muitos anos... Eu vi-a representar desde pequeno. Ela era uns 10 ou 11 anos mais velha do que eu mas nunca contracenei com ela, a não ser na rádio. Quando comecei a ser ator, a Emissora Nacional [de Radiodifusão], que é o antepassado da Rádio Televisão Portuguesa, a RTP, fazia muito teatro radiofónico.

Naquela altura, eram os substitutos das telenovelas de hoje. As pessoas, à noite, depois de jantar, juntavam-se e ouviam os folhetins radiofónicos. Havia os da Emissora Nacional e os particulares, no Rádio Clube Português e na Rádio Renascença. Nessa fase, fiz muitos trabalhos com a Eunice Muñoz. Mas, no teatro e na televisão, nunca representei com ela e tenho imensa pena.

Ainda assim, teve a oportunidade, ao longo de 65 anos de carreira que já soma, de contracenar com grandes nomes da representação nacional...

Sim, contracenei com a Carmen Dolores, com o Assis Pacheco, com o Ribeirinho... Contracenei com monstros sagrados do teatro português mas, olhe, com ela, nunca calhou. Eu adorava a Eunice. Tratávamo-nos por tu há muitos anos...

Em criança, ainda antes de descobrir a paixão pela representação, o que é que queria ser quando fosse grande?

Sinaleiro. Polícia sinaleiro. Porque eu achava que os polícias sinaleiros é que mandavam em tudo... [risos] Eu via-os a mandar parar, avançar ou recuar os outros e pensava que eles tinham um grande poder.

Então o que queria, na realidade, era ter poder?

Eu, nessa fase, tinha uns quatro ou cinco anos... [risos] Depois, quis ser arquiteto, porque tinha vários artistas na família. Tinha um tio meu que era pintor e decorador e outro meu tio, o irmão dele, também trabalhava nessa área, ainda que não fosse decorador nem pintor... Desde muito cedo que tive uma grande apetência por essa área. Tinha também colegas meus do liceu e também, depois, do teatro...

Há muitos casos de arquitetos que fizeram teatro. E realizadores de cinema também. O próprio [realizador, argumentista e encenadora italiano Luchino] Visconti foi arquiteto. Há muitos outros... Ainda hoje, gosto muito de arquitetura. E fiz um teatro, apesar de não ter concluído o curso. Tenho o quarto ano de arquitetura só. O curso, na altura, eram cinco anos e eu parei por causa do teatro...

Ainda existe esse teatro?

Não. Era o velho edifício do Teatro Aberto, ali ao pé da praça de Espanha. Já lá não está. Foi demolido há uma data de anos, aí há uns 15... O edifício original do teatro que lá existe atualmente foi um projeto meu. Fi-lo com a ajuda de alguns amigos meus arquitetos que concluíram o curso. Eles é que tiveram de assinar o projeto de arquitetura, porque eu não podia.

Alguma vez se arrependeu de não ter concluído o curso e de não ter feito carreira na arquitetura?

Não... Durante alguns anos, vários professores da escola encontravam-me na rua e mandavam-me ir acabar o curso, porque só me faltava um ano. Mas eu estava tão empenhado em ser ator... Nessa altura, já fazia teatro, cinema e televisão e achei que, nessa fase, já não valia a pena.

Acho que não conseguiria fazer as duas coisas bem ao mesmo tempo. Eu conheço vários casos de pessoas que tentaram ter duas profissões em áreas distintas e levá-las ambas a sério mas é muito complicado. Não dá. Não há essa possibilidade.

A representação é uma arte com uma instabilidade profissional muito grande. Alguma vez se arrependeu de ter tomado a decisão de ser ator?

Não, nunca. Isso nunca...

Lembra-se do momento exato em que, entre o sonho de ser polícia sinaleiro e depois arquiteto, percebeu que aquilo que queria mesmo ser era ator?

Foi desde cedo. Eu tive um avô que foi ator, o pai da minha mãe. Chamava-se Henrique de Albuquerque. Morreu em 1942. É muito pouco conhecido. Ainda fez algum cinema na reta final da sua vida. Teve um papel pequeno em "O pai tirano" [filme do cineasta António Lopes Ribeiro estrado em 1941, um dos maiores e mais representativos sucessos da época dourada do cinema português]...

E também fez cinema mudo, que hoje já não é visto em parte nenhuma. Ouvi dizer, há pouco tempo, que estava a acontecer uma mostra de cinema mudo português em Paris. Disseram-me que a Cinemateca [Portuguesa] mandou para lá uma série de filmes. Mas cá não os passam! Alguns deles devem ser muito curiosos...

Então, a culpa de ter sido ator foi, no fundo, do seu avô materno?

Na minha família, sempre houve um certo gosto pelo teatro. Eu nasci em Coimbra por razões profissionais do meu pai. Ele foi transferido para lá quando casou. Eu já nasci lá. Vivi em Coimbra até aos 10 anos. Nunca me arrependi disso. Mas, depois, vim para Lisboa e gostei muito da cidade que cá encontrei.

Em Coimbra, naquela altura, levavam-se muito mais a sério as praxes académicas do que nos dias de hoje. Coimbra era a capital das praxes académicas e eu cheguei a ver barbaridades na rua. Em Lisboa, naquela altura, as coisas eram mais suaves. Ainda hoje, assim é, creio eu.

A que tipo de barbaridades é que assistiu?

A castigos... Rapavam o cabelo às pessoas, esfregavam-lhes a cara no chão... Isto eram coisas que se faziam nas praxes aos caloiros, coisas terríveis... Esfregavam-lhes a cara no chão em sítios onde havia porcaria. Não era em sítios que estavam limpos...

No seu primeiro ano de ensino universitário, na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, também chegou a ser praxado?

Eu não, nunca fui praxado. Fui para belas-artes. Lá, não se faziam praxes. Eram artistas...

Nos últimos tempos, tem feito, sobretudo, telenovelas. A maioria destas produções televisivas tem, normalmente, um elenco mais jovem. Como é que vê a falta de papéis para atores mais velhos de que muitos colegas seus se queixam publicamente e como é que é a interação com os atores mais novos?

Têm aparecido muitos e bons atores na televisão, mesmo sem terem frequentado escolas de teatro. A maioria dos que começam acabam por se fazer atores e ainda bem. A televisão é um recurso porque, atualmente, não se pode viver do teatro. Ainda tenho alguns colegas, homens e mulheres, que vivem só do teatro, mas já são muito poucos. É muito difícil. Neste momento, é mesmo muito complicado, principalmente devido à falta de apoios de que falávamos há pouco. A televisão acaba por ser um mercado onde ainda existe trabalho.

Ainda assim, nas produções televisivas, há cada vez menos espaço para os atores mais idosos...

Às vezes, lá aparece um papel ou outro...

As histórias têm cada vez menos avós, menos tios-avós, menos vizinhos idosos...

Pois é... Isso tem a ver com a concorrência entre os canais. Nós temos a sensação, quando estamos a fazer uma telenovela, que estamos a fazer uma pedra para atirar uma pedrada ao canal do lado... Estamos a fazer pedras para atirar aos outros! [risos] Mas não é isso que interessa nem é isso que nos move.

É muito curioso fazer uma telenovela. Pegar num papel desde o princípio e vivê-lo até ao fim ou até uma determinada altura é um desafio engraçado. No teatro, a gente tem esse prazer mas é durante uma hora e meia a duas horas ou duas horas e meia, o tempo que dura uma peça. Agora, as novelas duram seis a oito meses, às vezes mais...

Em termos de projetos profissionais, o que é que tem atualmente em mãos, para além de "Lua de mel", a nova telenovela que a SIC estreia amanhã, dia 6?

Neste momento, não tenho nenhum projeto teatral em mãos e tenho pena. Na televisão, podem ver-me, a partir de agora, em "Lua de mel", que é a continuação de "Amor amor".

Ainda faz muitos planos ou, nesta fase da vida, já se deixou disso?

A longo prazo, já não posso. Já não tenho tempo... [risos] Ainda tenho sonhos. Ainda há coisas que gostaria de fazer. E pode ser que ainda as consiga fazer. Encenações, sobretudo... Uma das coisas que mais gostei de fazer nos últimos anos foi encenar. Já encenei [William] Shakespear, [Anton] Tchekhov, [August] Strindberg, Gil Vicente, Luís Francisco Rebelo... Já foram muitos.

E que peças de que autores é que ainda gostaria de encenar?

Agora, assim de repente, não me recordo de nenhuma. E, mesmo que me recordasse, também não o poderia dizer para não ir outro a correr pegar nela... [risos] Estou a brincar. Não tenho esse tipo de espírito competitivo. Mas, sim, ainda há muita coisa que eu gostaria de fazer...

Apesar de estar bem de saúde para a idade, assumiu publicamente, numa campanha publicitária da Minisom, que sofre de problemas auditivos... 

Não dei por eles muito cedo. Normalmente, as pessoas demoram algum tempo a aperceber-se da falta de audição. Pensam que é uma coisa normal do avanço da idade. Comigo, com vários amigos meus e até com outras pessoas que eu conheço, foi o que aconteceu. A pouco e pouco, fui começando a ouvir menos, mas não dei logo por isso.

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Não é como a vista, por exemplo. Vamos deixando de conseguir ler as letras mais pequeninas ou os rodapés da televisão e apercebemo-nos disso. Agora, só quando começamos a pedir aos outros para repetir o que dizem é que começamos a ter essa noção. Na realidade, os outros é que se apercebem disso primeiro e, depois, comentam-no connosco. Eu sou paciente, há muitos anos, da doutora Clara Capucho, que é otorrinolaringologista no [hospital] Egas Moniz e que trabalha com a voz de quase todos os atores que eu conheço. Ela, um dia, disse-me que eu tinha de mandar observar o meu ouvido porque sentiu que havia aqui qualquer coisa que não estava bem.

A minha mulher, em casa, começou, depois, a dizer-me a mesma coisa. Alertava-me, muitas vezes, que eu tinha a televisão muito alta e que poderia estar a incomodar os vizinhos... [risos] Então, fiz exames na Minisom e receitaram-me um aparelho. Há vários tipos de aparelhos... Não me custou nada nem me doeu nada e a diferença no ouvir é uma coisa extraordinária...

Na altura, quando a sua médica lhe sugeriu que fosse fazer exames porque poderia ter de usar um aparelho auditivo, como é que reagiu? 

Senti que estava a ficar velho. Mas é natural que nos sintamos assim, pronto... Sabemos que, com o passar dos anos, as coisas deixam de ser o que eram anteriormente. Eu, por exemplo, se estou muito tempo sentado num sítio, quando me levanto, é complicado... Mas eu já tenho uma idadezinha. Já passei a barreira dos 80. Já vou fazer 85. Toda a gente me diz que não pareço ter esta idade...

E não parece...

Não parece mas eles estão cá... [risos] A gente não gosta de envelhecer mas temos de envelhecer. É a lei natural da vida. E que todas as coisas más que nos apareçam sejam estas, porque estas têm remédio. Podemos ultrapassá-las e viver um bocadinho melhor.

Usar um aparelho auditivo é a mesma coisa que usar óculos. Não há que ter vergonha. Ninguém tem vergonha de usar óculos, acho eu. Eu tenho uma neta com seis anos que já os usa. Ainda não precisa é de aparelhos auditivos, até ver... [risos] E espero que não precise tão cedo!

E como é que é no seu quotidiano? Anda sempre com o aparelho auditivo?

Normalmente, em casa, não. Só quando vou para a rua é que o coloco... Eu sou ator e ouvir mal também não bom para a minha profissão. Porque, depois, não oiço as deixas. E um ator não ouvir as deixas dos colegas é mau.

Mas deixe-lhe que lhe diga, fica apenas aqui entre nós, que também há colegas que falam muito baixinho. [risos] Gente nova, com muito talento, mas com pouca preparação. Nota-se os atores que estiveram em escolas, no Conservatório Nacional, na Escola Superior de Teatro e Cinema, na Escola Profissional de Teatro de Cascais...

Também são muitos atores que nunca pisaram sequer o palco de um teatro...

Sim... Aí, as pessoas são obrigadas a projetar melhor a voz e há uma coisa muito importante, que é a dicção, a articulação. Foi aí que eu comecei a ter problemas. Às vezes, a ver televisão, não percebia as palavras. Ouvia o som mas não percebia exatamente o que era dito. Não entendia as consoantes. Por vezes, nos filmes estrangeiros também se nota isso.

Que idade é que tinha quando começou a usar o aparelho auditivo?

Foi há cerca de um ano. Foi só agora. Resisti durante muito tempo... Tentei aguentar-me sem ele porque ia fazendo a minha vida. E resisti, essencialmente, por comodismo. Mas depois percebi que, ouvindo melhor, tenho outra qualidade de vida. Às vezes, é mau, porque ouvimos tudo, inclusive o que não queremos... [risos]

A conduzir, apercebemo-nos melhor da presença dos outros carros. Ouvimos melhor as buzinadelas daqueles tipos que não têm paciência nenhuma e que começam logo a apitar se o sinal abre e nós não avançamos logo... É outra comodidade. É como usar óculos. Não há que ter vergonha nenhuma. A vida tornou-se diferente a partir do momento em que comecei a usar um pequeno aparelho auditivo que nem se vê.

Nos últimos anos, o país e o mundo têm estado a enfrentar uma pandemia, um surto viral que tem afetado a vida de milhões de pessoas. Chegou a ser infetado com o vírus que está na origem da COVID-19?

Sim, já tive COVID-19. Um dia, acordei um bocadinho maldisposto e fiz o exame das gotinhas. Deu positivo. Depois, fui fazer o teste PCR, que confirmou o diagnóstico. Estive uma semana doente, eu e a minha mulher. Estivemos os dois. Testámos os dois positivo. Não tínhamos sintomas. Não tivemos febre nem dores de cabeça. Ficámos fechados em casa e passou. Hoje, sou um recuperado. Tenho o certificado de recuperação.

Na altura em que nos foi exigido confinamento, foi cumpridor ou, pelo contrário, ia muitas vezes à rua?

Não, portei-me bem. Não tive outro remédio! [risos] Às vezes, ia a rua fazer compras mas portei-me bem. Ia sempre com a máscara e a minha família também. Mas a minha neta, com três anos, teve COVID-19. Foi assim que abriram as escolas. Três dias depois, ela estava com COVID-19. E a mãe também teve.

Aquele ramo da família ficou todo fechado em casa. Depois, passou e, agora, cá estamos. Vamos ver como é que isto evolui. Mas, a mim, neste momento, o que mais me preocupa é a guerra entre a Rússia e a Ucrânia. As coisas não estão nada bem. Vamos ver o que é que vai acontecer a esta Europa...