Em 2010 e recém-chegados a Manteigas, Isabel Costa e João Tomás depararam-se com um cenário preocupante ao nível do desemprego e da captação de investimento que afetava a região. De forma a ajudarem a comunidade, identificaram projetos e produtos que, com o investimento certo, pudessem impulsionar a economia local. Um dos que viria a vingar foi o Burel Factory que pretendia explorar o potencial do burel e as suas diferentes utilizações. Desde 2010 que a marca tem crescido a olhos vistos: depois da arquitetura e projetos de interior (utilizado para produção de painéis, revestimentos e como solução acústica) e da área decorativa (utilizado na confeção de mantas, almofadas e artigos para casa), segue-se agora a indústria da moda.

Quando, em 2010, decidiu iniciar a Burel Factory, ainda na antiga fábrica de Lanifícios Império, e recuperar um dos seus produtos estrela, o burel, Isabel Costa revela que uma coleção de moda nunca fez parte dos seus planos para este projeto. Tal como explica ao SAPO Lifestyle, isto foi algo que aconteceu de forma gradual à medida que a Burel Factory foi crescendo e expandindo horizontes. “Quando começamos o projeto fomos a muitas escolas e designers de várias áreas, de moda e industrial, onde lhes dizíamos ‘Peguem em peças e desenhem vocês’ e foram desenhadas muitas coisas no âmbito dos acessórios”, refere a head of brand e fundadora sobre os primeiros anos de vida da marca. “No ano passado, com a necessidade de clarificar os conceitos e de recuperar a outra fábrica que faliu [A Transformadora - Fábrica do Pisão Novo, Lda], que faz a ultimação e tinturaria [de tecidos de lã cardada], precisávamos de ter mais volume, nomeadamente na finalização de tecidos, e de irmos a feiras.”

E foi com base nesta necessidade que a marca decidiu arriscar num novo projeto e dar os primeiros passos no mundo da moda recorrendo ao burel: um tecido característico da Serra da Estrela feito com lã de ovelha bordaleira, uma das 19 raças existentes em território português pela indústria têxtil. Com isto, a Burel Factory quer assim assumir-se como uma marca capaz de valorizar, preservar e modernizar aquilo que o seu território tem de melhor e mostrá-lo ao mundo. “Nós, enquanto industriais, temos a obrigação e responsabilidade de as utilizar e de as promover.”

Wooclopedia: um tributo à serra e à fábrica

Burel Factory
© Maria Rita

No primeiro dia que entraram na Burel Factory, os olhos de Filipa Homem e Mafalda Fialho brilharam ao vislumbrarem as mais de 80 tonalidades de fios de burel expostos ao longo da antiga fábrica da Lanifícios Império. “Deparámo-nos com o arquivo da fábrica que é uma enciclopédia de lã”, afirma Filipa que sobre a coleção que ganhou o nome de Woolclopedia como forma de homenagear a própria fábrica e sua relação com a lã.

A partir desse momento ficou claro para esta a diretora criativa e a desinger de moda que a primeira linha de moda da Burel Factory tinha de prestar tributo à multiplicidade de tons que existiam neste espaço industrial, elegendo o xadrez como um dos padrões centrais desta coleção. “Quando fomos à fábrica, começámos a pôr de parte alguns padrões. Aí percebemos que era o clássico xadrez 1:1, que já era usado na capa pastor, mas eram uns quadradinhos muito pequeninos. Eu e a Filipa chegamos ao computador e começámos a brincar com escalas”, adianta Mafalda sobre o processo de design que também foi buscar outros padrões de lã ao arquivo da marca.

Burel Factory
créditos: © Luís Pinheiro

No espaço de seis meses tinham a coleção Woolclopedia  - composta por 25 peças de vestuário cuja numeração vai desde o XXS ao XXL e uma vasta gama de acessórios - praticamente pronta e que decidiram dividir em duas partes: o primeiro lançamento centrou-se em peças inspiradas na paleta de cores da Serra da Estrela, onde se destacam o laranja, o cru e o verde, enquanto o segundo presta uma homenagem aos tons vibrantes existentes na fábrica, como é o caso do rosa-choque, do amarelo e do azul petróleo.

Para a dupla criativa, um dos grandes desafios desta coleção foi perceber de que forma é que podiam trabalhar e baixar a gramagem do Burel 800, conhecido pela sua densidade e propriedades isolantes e impermeabilizantes, de forma a criarem peças mais finas, confortáveis e fáceis de usar no dia a dia e que agora podem ser comprados no número 17 da Rua Serpa Pinto, em pleno coração de Lisboa.

© Maria Rita

Blusão com capuz, vestidos, calças culotte, minissaias e sobretudos são alguns dos itens de vestuário que compõem esta coleção sem género que, desde o primeiro dia, se tentou afirmar pela sua frescura e modernidade. “Nós não queriamos fazer mais uma coleção do que era esperado do burel”, elucida a diretora criativa que se quis afastar das tradicionais capas de pastores, um dos ícones do burel, criando algo que pudesse apelar às diferentes gerações que visitam a loja, independentemente do estilo pessoal. “Fizemos uma coisa que as pessoas conseguem usar e conseguimos mostrar que o produto é fácil de usar por toda a gente, por todos os sexos e por todas as idades.”

Apesar de a Woolclopedia ter sido lançada este mês, a verdade é que a dupla de designers já tem novidades. As duas próximas coleções da marca vão ser lançadas ao longo deste ano e com o objetivo de serem usadas em complemento com aquilo que já está disponível.

Uma coleção de moda sustentável, limitada e com produção consciente

Consciente do impacto que a indústria têxtil tem no ambiente, a Burel Factory quis lançar uma linha de roupa que fosse feita de forma consciente e ecológica. Ao contrário das grandes marcas, a Woolclopedia enquadra-se no conceito de slow-fashion uma vez que é uma coleção limitada, composta por unidades muito reduzidas, feita com fibras naturais, com um processo de tinturaria menos poluente e que concentra toda a sua produção em Portugal.

“No Burel nós tentamos que seja só a raça bordaleira, mas, às vezes, alguns pastores e agricultores juntam no rebanho outra raça, mas, no processo de feltragem, vê-se logo se é bordaleira ou merino. Dá para feltrar na mesma, mas fica mais mole, fica mais suave. Para algumas peças de 800 gramas é importante que [o tecido] seja áspero e mais denso”, como é o caso dos sapatos e dos sacos que compõem a linha de acessórios uma vez que confere forma e uma maior resistência aos produtos.

© Maria Rita

A intemporalidade dos seus designs e a qualidade da matéria-prima utilizada – 100% lã de ovelha bordaleira juntamente com outros tecidos – permite que estas peças de vestuário e acessórios resistam ao passar dos anos e passem de geração em geração. Ou esse é o desejo da marca que revela que, graças à sua filosofia zero waste, encontrou uma forma de reduzir o seu desperdício têxtil: todas as peças que não se venderem voltam à fábrica de forma a ganharem uma segunda vida. “Nós temos todo o processo de reciclagem: temos farrapadeiras, que torna outra vez a lã em fibra, que volta outra vez à carda e volta a ser fio. Nós temos burel e outros tecidos 100% reciclados internamente e este processo também nos garante que conseguimos aqui ter um equilíbrio”, explicou Isabel Costa durante a apresentação.

Um facto curioso prende-se com a popularidade do burel que, à exceção de dois momentos históricos, nem sempre foi considerado pelos fabricantes como um tecido premium e de prestígio. O primeiro foi com a rainha Santa Isabel, responsável pela popularização das capas fúnebres pretas, e outro foi durante o período da guerra, época em que as fardas militares e capotes eram confecionadas em burel.  “De resto era um tecido feito para os trajes de trabalho dos agricultores, dos pastores, dos ranchos folclores. Era algo que os antigos valorizavam, mas que as fábricas não valorizavam como produto para moda”, refere a fundadora da marca sobre o burel em comparação com os apelidados tecidos finos.

Burel Factory
créditos: © Luís Pinheiro

Mas com o passar dos anos o seu estatuto modificou-se. E se há 12 anos era considerado um tecido em vias de extinção, hoje em dia há cada vez mais empresas a valorizar o burel e a saber trabalhá-lo de forma inovadora. Algo que se tem tornado possível devido à transferência de saberes dos artesões da Burel Factory, que dedicaram grande parte da sua vida a esta arte, para as gerações mais jovens. Atualmente, a fábrica é composta uma equipa de 40 pessoas, abarcando funcionários reformados que têm a responsabilidade de formar grande parte dos jovens aprendizes que ali entram, um processo que, consoante a função a desempenhar, pode durante alguns anos.

“Neste momento já há muito atelier e muita gente a utilizá-lo por isso acho que na próxima década não corre qualquer risco de extinção, bem pelo contrário,” remata.