Será que desistimos de nos expressar através da moda? Florença responde através do trabalho de 10 designers

Durante 24 horas, arte e moda juntaram-se debaixo do mesmo teto para dar a conhecer o novo projeto do Istituto Europeo di Design (IED) que contou com a mentoria e curadoria do fotógrafo de moda Michel Comte. “Identity” é composto por 10 instalações artísticas onde diferentes designers se debruçaram sobre o tema da identidade. O SAPO Lifestyle viajou até Florença para a apresentação deste evento que decorreu no antigo Teatro Oriuolo.
Será que desistimos de nos expressar através da moda? Florença responde através do trabalho de 10 designers
Federica Fioravanti

“Identity” foi o nome escolhido para o novo projeto do Istituto Europeo di Design (IED). Para integrar esta apresentação, que coincidiu com o arranque da prestigiada feira de moda Pitti Uomo em Florença, o IED selecionou 10 estudantes dos diferentes campus que tem espalhados por Itália, Espanha e Brasil e desafiou-os a criar uma instalação artística que promovesse uma reflexão profunda sobre dois temas centrais nos dias que correm: moda e identidade.

“Desde a Antiguidade que a moda sempre foi algo muito importante para a espécie humana. Então, o que é que se passa? Será que estamos mesmo a desistir de mostrar a nossa identidade [individual] através da roupa e da moda? Ou estamos a mostrar quem somos através da nossa identidade digital [que existe apenas online]?”, explica Riccardo Balbo, diretor académico do grupo Istituto Europeu de Design, sobre estes conceitos.

Num mundo digitalizado e tecnológico, qual a importância da moda enquanto veículo de expressão individual e personalidade na sociedade moderna? Será que o vestuário mantém a sua relevância face ao apelo dos dispositivos tecnológicos e das redes sociais? Ou será que, nos tempos que correm, está a perder poder face a outros tipos de identidade, como é o caso da digital, na hora de nos apresentarmos ao mundo? foram algumas das questões abordadas.

“Para nós é muito importante refletir sobre as identidades individuais, porque se uma sociedade deve trabalhar sobre os valores coletivos e a comunhão coletiva, antes disso, esta deve ser capaz de refletir sobre a sua própria identidade.”

Para auxiliar os designers a transformar as suas ideias em instalações de arte, a instituição convidou Michel Comte para mentor deste projeto que, graças à sua vasta experiência e know-how, teve a missão de os guiar durante os meses que antecederam a segunda edição desta iniciativa. “No ano passado, tivemos a [artista visual] Lucy Orta, por isso a fórmula é muito semelhante. Todos os anos mudamos os alunos, o tema e os tutores, por isso nunca sabemos qual vai ser o resultado”, explicou Olivia Spinelli, Head of Fashion School do polo do IED em Milão.

Michel Comte: o mentor e curador deste projeto

IED Firenze
IED Firenze créditos: Federica Fioravanti

Dono de um percurso invejável na área da moda e do fotojornalismo, foi com bastante entusiasmo que Michel Comte assumiu as funções de curador e mentor desta mostra que juntou arte e moda. “Esta exposição foi muito interessante porque me permitiu falar com toda a gente, ouvir as suas vozes, o que os motiva e porque fazem este trabalho.”

Perante a crise identitária que atravessamos a nível mundial, o artista multidisciplinar salienta a importância deste projeto e de que forma é que este pode auxiliar cada um destes jovens, de forma individual, a embarcar numa viagem de autodescoberta, autoconhecimento e redefinição sobre a sua identidade individual.

“Há uma mudança de identidade muito grande porque estamos a vir de 10 anos de marcas: Balenciaga, Dior... Penso que as pessoas estavam realmente a perder a sua identidade. Era só dinheiro. Eu posso gastar 2.000 euros numa t-shirt para ter o nome de outra pessoa em mim e isso me dar o poder de dizer 'OK. Faço parte de um grupo’, mas acho que isso é muito mau”, referiu.

Sol Lewitt e o conceito do cubo

O trabalho desenvolvido pelo artista norte-americano Sol Lewitt – que usou o cubo como fonte de inspiração para muitas das suas obras e instalações artísticas – foi o ponto de partida para este projeto. Sem regras pré-definidas e total liberdade criativa, a cada aluno foi-lhes atribuído uma estrutura cúbica em metal de grandes dimensões onde tiveram de apresentar a sua visão e ponto de vista sobre o tema.

“É uma forma muito democrática de dar a toda a gente a mesma quantidade de espaço, e eles fazem o que querem dentro do cubo”, explica Michel Comte quando questionado sobre o que motivou a escolha deste suporte artístico e como é que foi recebido pelos alunos. “Acho que era quase a única maneira [de o fazer] e agora toda a gente adora o seu cubo. E depois tornámos o cubo em algo muito pessoal. É mesmo personalizado e é disso que eu gosto.”

Mas como é que as diferentes noções de identidade e os diferentes projetos ganharam forma dentro e fora dos limites de cada cubo? Para além da supervisão de Comte, os finalistas também contaram com o apoio de Umberto Sannino que, ao longo dos últimos meses, os ajudou a transformar as suas ideias em realidade.

“O objetivo principal foi tentar criar uma interação entre uma abordagem moderna de identidade através da moda. O nosso objetivo nunca foi utilizar manequins de forma direta ou oferecer uma experiência de moda, mas que esta apresentação fosse o mais parecido possível com uma exposição de arte”, elucida sobre este projeto e o porquê dos cubos. “A ideia de não mostrar um corpo propriamente dito, sobretudo em todas as instalações, é porque desta maneira o público-alvo pode identificar-se com o objeto representado.”

10 identidades e 10 pontos de vistas para conhecer

IED Firenze
IED Firenze créditos: Federica Fioravanti

Todos aqueles que passaram pelo Teatro Oriuolo no dia 12 de junho puderam conhecer, de perto e ao vivo, os trabalhos desenvolvidos por Eleonora Gentile (A Passo d'Uomo), Giovanni Toniolo (Etere), Sabrina Salem (IO), Leonardo Fizialetti (Venus of Things), Alessia Basilico (Piccole Cose), Gaizka Albizu (Olympia), Ana Montesa Lopez (Masculinity in Bloom), Daniel Barris Sanjaime (Doing evil isn’t that bad), Anastasia Pandelli (Metagnize) e Diana Arbex (Tramóia).

Todos os integrantes dos cursos de Design de Moda e de Styling tentaram, através de uma abordagem única e de uma linguagem muito própria, dar a conhecer a sua noção de identidade. Peças de vestuário, projeções em vídeo, esculturas contemporâneas e performances ao vivo foram alguns das instalações artísticas que estiveram exposição durante 24 horas.

Com o objetivo de explorar os limites do arquétipo de bom rapaz, Daniel Barris Sanjaime usou o vestuário para falar sobre este conceito. “Decidi fazê-lo através do vestuário porque, por vezes, o vestuário é um pouco subestimado por ser superficial. Mas acho que toda a gente, quando decide o que vai vestir no dia a dia, está a fazer um statement onde pretende dizer algo aos outros e a si próprio”, começou por explicar sobre o projeto intitulado “Doing evil isn’t that bad” e que fez parte da sua coleção de final de tese.

“Tentei explorar a imagem do arquétipo do bom rapaz, levando-o a explorar o seu lado mais extremo, aproximando-o da maldade, e fazendo-o descobrir que tem de admitir estas partes de si próprio que talvez tenha estado a esconder porque foi educado para ser disciplinado”, adiantou o estudante do IED Barcelona a propósito da sua instalação artística e na qual se revê.

Assim criou uma coleção cápsula que nos remete para os uniformes escolares. Esta é composta por um casaco de estilo colegial com ombreiras, que ganhou um aspeto enrugado ao ser coberto com cera, que foi conjugado com uma camisa de riscas feita a partir de duas peças com as mangas cruzadas à frente e uma saia feita com penas artificiais.

“Gosto de imaginar este casaco como uma gaiola que está a forçar este bom rapaz a limitar as suas possibilidades e agora ele está a tentar libertar-se disso, libertar-se desses limites. E estas rugas são o sinal disso.” Já sobre a saia de penas, o designer desvendou o seu simbolismo. “Também fiz um paralelo ao olhar para este bom rapaz como se fosse uma galinha, que acaba de sair do ovo, e que está muito entusiasmada com o que vai descobrir, mas que vai ter de se confrontar com muitas coisas com as quais talvez não se sinta confortável, mas vai conseguir ultrapassá-lo. E foi isto que quis explicar com este look: perceber a multiplicidade e a dualidade das coisas, e que nem tudo é assim tão claro.”

IED Firenze
IED Firenze créditos: Federica Fioravanti

Para Sabrina Salem o projeto “IO” foi um duplo desafio: não só por ter sido a única estilista selecionada, mas porque sempre se debateu sobre a sua própria identidade. “Os seres humanos tentam sempre encontrar algo ou uma forma de se descreverem. E penso que não temos de o fazer porque, na verdade, isso não é possível. Fazemos parte de muitas coisas e muitas coisas fazem parte de nós. Então, como é que podemos ser apenas uma coisa? A identidade existe mesmo? É uma coisa real ou [um conceito] de que precisamos?”

Partindo da noção de que a identidade é algo que está em constante mutação e que a todos os momentos se renova, desenvolveu uma curta-metragem que foi projetada numa parede branca. “Escrevi um discurso e tentei imaginar como é que o poderia explicar de uma forma visual, com imagens. Por isso, decidi fazer uma curta-metragem e foi muito bom fazê-lo porque filmei literalmente aquilo que imaginei”, diz a jovem do IED Milano que encontrou nas palavras de encorajamento de Michel Comte - “Sê tu mesma” - o incentivo que precisava para perceber que estava no caminho certo.

Para esta apresentação sentiu a necessidade de sair de dentro do seu cubo e recriar um cenário que remetesse os visitantes para uma pequena sala de cinema, com três poltronas e headphones. O objetivo? Que todos pudessem prestar atenção naquele que, para si, é o aspeto mais importante deste projeto: as palavras. “Espero que esta curta-metragem expresse que, na verdade, acho que não precisamos de encontrar algo para nos descrevermos. Que não precisamos de identidade e que talvez esteja tudo bem assim.”

Teatro Oriuolo: uma nova casa para a arte e o design

IED Firenze
IED Firenze créditos: Federica Fioravanti

A exposição “Identity” foi apresentada num espaço muito especial para o IED: o seu novo centro de formação digital e de artes visuais que abriu portas no início de maio. Localizado no centro histórico de Florença, este novo polo instalou-se onde, em tempos, funcionou o antigo Teatro Oriuolo.

Comparativamente com os 11 polos educativos espalhados pelo mundo, este novo hub assume-se como uma extensão do campus IED Firenze onde estão concentrados laboratórios digitais, salas de projeto e áreas pedagógicas. Através da sua programação, que irá incluir exposições de arte e workshops realizados por artistas emergentes, pretende ser um espaço de reflexão para todos os visitantes sobre o mundo das artes e da indústria do design. E esta exposição foi apenas a primeira de muitas iniciativas culturais que pretendem dar uma nova vida a este lugar que está de portas abertas à comunidade.

Questionado sobre aquilo que gostava que cada um dos visitantes retirasse desta mostra, Riccardo Balbo é direto: "Que tentasse perceber todas as diferentes posições dos nossos alunos, porque depois disso começaria a pensar: ‘Bem, qual é a minha posição?’ A ideia profunda é que cada um deve refletir sobre a sua própria identidade."

O SAPO Lifestyle esteve em Florença a convite do IED.

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