Não consigo ficar indiferente ao conteúdo da mensagem que foi transmitidas pelo Dr. Correia de Campos, na entrevista publicada no Jornal “ Publico” no dia 16 de agosto.
Qualquer Obstetra concorda com a integração e complementaridade de cuidados entre os Médicos Ginecologia e Obstetrícia (GO) e a/os Enfermeiros Especialistas de Saúde Materna e Obstétríca (EESMO).
Esta complementaridade de Cuidados deve ser feita desde os Cuidados de Saúde Primários, nos Cuidados Hospitalares e muito antes do Trabalho de Parto.
O papel dos EESMO no âmbito da Consulta Externa, no DPN, na gravidez de termo, na retriagem da urgência, pode e deve ser uma oportunidade de pôr em prática a dita complementaridade de cuidados e nalgumas instituições pode contribuir para a solução, aumentando o número de períodos de consulta e melhorando o acesso aos cuidados de Saúde.
Haja vontade de o fazer!
O que é que o Sr.Dr. Correia de Campos sabe de Obstetrícia?
Transferir competências que são dos Médicos de Obstetrícia para os EESMO é a sua solução!?
Está enganado!
A Obstetrícia é muito mais do que o Parto.
E sim, Sr. Dr. são necessários 3 médicos…o anestesista, o neonatologista, um obstetra e um Interno de Formação específica (quando existem). Não são unidades pomposas, são cuidados adequados com Qualidade e Segurança.
Quando somos chamados a um quarto do Bloco de parto é porque algo não está bem, pois a vigilância do bem-estar materno e fetal é da responsabilidade dos EESMO.
Pode ser preciso instrumentar, fazer uma cesariana!
Para instrumentar temos que saber muito mais do que o plano de Hodge, temos que saber a história daquela gravidez, a variedade da apresentação, como está o CTG, etc.
Qual é o instrumento mais adequado face á situação clínica? O feto ainda tem reservas ou tem que ser uma cesariana emergente!? Esta avaliação é necessária e tem que ser realizada pelo obstetra, tem que estar disponível em tempo útil para a tomada de decisão.
Quantos EESMO estão preparadas para nos dar informações adequadas e que são essenciais para a tomada da decisão!?
Pôr os Especialistas de GO fora da Sala de Partos não é a solução.
Vai prejudicar a qualidade da assistência à gravida e ao neonato e contribuir para a saída de mais Especialistas e diminuir a qualidades dos indicadores de morbi-mortalidade materno fetal, que tanto nos orgulhamos.
A grávida está com esforços expulsivos há quanto tempo? Esteve a descansar ou a puxar sob orientação adequada!
As vezes uma simples episiotomia, feita com indicação resolve o problema.
Manter o pavimento pélvico sob pressão é que vai resolver o assunto com ou sem laceração!
O Apgar do recém nascido, vai nos dizer o que faltou, o que podia e devia ter sido feito! Infelizmente, o tempo que se esperou para evitar a episiotomia pode deixar consequências no recém-nascido, algumas vezes irreversíveis,
A Obstetrícia ainda nos vai pregando algumas surpresas e depois de acontecer é fácil emitir opiniões.
É preciso nervos de aço para orientar uma Sala de Partos….
São cada vez menos os Médicos que o querem fazer.
Quanto menos experiência têm, mais difíceis ficam as decisões, que têm que ser tomadas em segundos, pela Equipa e por vezes, sem muito tempo para dar explicações, á futura mãe ou ao casal.
Muitos dos conflitos médico legais ou simplesmente comunicacionais têm a ver com esta situação e daí que, a informação que é prestada ao longo da gravidez, não possa ser romanceada.
Deve ser realista, maus desfechos vão sempre acontecer, numa pequena percentagem das situações. Prevenir estas situações é responsabilidade de todos, incluindo da grávida e respetivas Famílias, mas também dos Médicos de Medicina Geral e Familiar, das Enfermeiras dos CSP, dos EESMO e Médicos de GO.
O número de episiotomias realizadas pelos EESMO contar para o sistema de avaliação SIADAP, foi uma das últimas descobertas, com que fui confrontada. Nenhum Obstetra pode ser penalizado por ter feito uma cesariana. Rever procedimentos, discutir situações clínicas, fazem parte do nosso quotidiano. Estamos todos os dias a aprender, corrigir procedimentos, num processo de melhoria contínua!
Sou Especialista em Obstetra desde 1993 e nunca me arrependi de ter feito uma cesariana! Posso me ter arrependido de não a ter feito …..
A qualidade da avaliação e a informação que é transmitida ás grávidas deve ser a adequada, não pode ser “cor de rosa”. O vai correr tudo bem, gera expectativas e esconde o perigo!
O parto é um momento violento, dado o jogo de forças (físicas e psicológicas) que estão a ser aplicadas. A gestão das expectativas tem que ser feita ao longo da gravidez e a preparação do casal é essencial. A informação que está a ser disponibilizada nas redes sociais é muita, mas nem sempre a mais adequada.
Como chegamos á situação insustentável dos Serviços de Ginecologia e Obstetrícia, com falta de Recursos Médicos, com Bloco de Partos a fechar ou a ficar em contingência com 2-3 médicos em vez dos 5 médicos previstos, face ao número de partos e de admissões diários?
Em 2018, o Colégio da Especialidade de Ginecologia e Obstetrícia fez um levantamento a nível Nacional dos Características Profissionais e Demográficas dos Especialistas em Ginecologia e Obstetrícia . Esta análise foi publicada, em 2022 ,na Ata médica https://doi.org/10.20344/amp.16282
A análise inicial foi apresentada em plena Sala Braga da SRNOM, com todos os Diretores de Serviço de GO dos Hospitais do Norte do Pais, que foram alertados para o risco de falta de recursos humanos.
A necessidade de reter Médicos nas instituições públicas passou a ser um imperativo mas o que começou a acontecer, foi exatamente o contrário: desmotivação causada por diversos motivos: ausência de carreiras, concursos para consultores atrasados, falta de vagas para assistentes Sénior, falta de material técnico, sistemas informáticos obsoletos, agendas sobrecarregadas, falta de respostas dos Conselhos de Administração às solicitações, conflitos médico-legais, clima de suspeição dentro dos serviços.
Havendo alternativas no privado, a saída dos médicos foi evidente e os que ficaram alteraram o seu comportamento, diminuindo os horários e disponibilidades, deixando de fazer SU, etc. Tudo tem servido para manter alguma ligação á instituição pública, mas com evidente desequilíbrio, com redução evidente da atividade assistencial.
Num serviço quantas horas estão dedicadas a atividade assistencial? Quais são as necessidades da população?
Mais do que o número de especialistas é necessário uma análise rigorosa do horário disponível para atividade assistencial programada, face ás necessidades da população.
Tempos de espera de 9 meses para consulta hospitalar são inadmissíveis.
Sem atividade Assistencial não temos Cuidados de Saúde adequados.
Os tempos de espera para consulta aumentam, consultas diferenciadas são extintas, diminuindo a diferenciação das instituições e a diminuição da capacidade formativa levando a mais desmotivação, a mais saídas, com prejuízo irreversível na Formação Específica, dos nossos Internos.
O Serviço de Urgência é a porta aberta das instituições. Se não há Médicos para fazer Serviço de urgência também não existe horário disponível para fazer Consulta aberta. Só se deixarem de fazer as consultas que já fazem!
Mudam o nome da consulta, mas não acrescenta eficiência!
Como reverter a atual situação de falta de recursos médicos de GO?
Definitivamente, não será possível manter tantos Bloco de Partos abertos.
Haja coragem política para tomar decisões adequadas, acredito que difíceis, envolvendo os profissionais que estão no terreno.
Algumas sugestões:
- Valorizar carreiras Médicas: abrir concursos onde verdadeiramente fazem falta, face ao número de especialistas/ consultores e complexidade da atividade assistencial;
- Disponibilizar as vagas de Especialistas onde verdadeiramente fazem falta: abrir vagas em locais, sem Serviço de GO é uma afronta;
- Separação da atividade assistencial da atividade do Serviço de urgência com valorização da atividade na urgência, pela diferenciação do respetivo hospital;
- Produção adicional devidamente compensada para primeiras consultas e consultas subsequentes, sem sobrecarregar as agendas da atividade base;
- Terminar definitivamente com as diferentes interpretações da lei criando assimetrias e competitividade, entre as várias instituições públicas da mesma tipologia: pagamento de atividade adicional, valor hora dos prestadores de serviço, etc;
- Promoção da literacia em Saúde e não de notícias sensacionalistas e causadoras de receios e medos nas grávidas e respetivas famílias;
- Ouvir os Médicos e restantes profissionais de Saúde em cada ULS, resolvendo atempadamente as situações com maior impacto na Qualidade e Segurança assistencial num verdadeiro trabalho de complementaridade de Cuidados de Saúde;
- Acabar definitivamente com atividades administrativas que não são dos Médicos e que essas sim, podem ser desempenhadas por outros profissionais!
Sim, Dr. Correia de Campos concordo consigo numa coisa: Com a atual DE- SNS até parece que a Norte está tudo bem.
Quem cá está sabe que não é verdade!
Uma palavra de apreço a todos os Médicos que estão a fazer um esforço enorme para manter o SNS a funcionar. E não é só na área de Obstetrícia, pois outras especialidades também estão em rotura. Só não são Noticias de abertura dos telejornais, para já!
Vejo alguns Diretores de Serviço, Especialistas e IFE a fazer 3 e 4 turnos de 24 horas, por semana de Serviço de Urgência.
Se alguma situação clínica corre menos bem, será apontado o dedo aos profissionais que estão no terreno e que todos os dias, dão o seu melhor!
A quem está a trabalhar nas condições possíveis, por imposição da DE-SNS e dos Conselhos de Administração, a minha garantia que vou estar atenta a cada situação em concreto independentemente da Especialidade em causa, pois a responsabilidade institucional e política não pode ser desresponsabilizada nem esquecida!
Bem hajam, aos que dão o seu melhor pelo SNS e os Médicos estão na linha da frente, nesse esforço e nessa responsabilidade.
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