No último trimestre de 2019, a então ministra da saúde (Marta Temido) e o então secretário de estado adjunto e da saúde (António Sales) desencadearam um conjunto alargado de contactos com profissionais de saúde na área da saúde pública para constituir uma comissão para a reforma desta área.
Em 18/2/2020, foi publicado em Diário da República o despacho de criação dessa comissão (nº2288/2020).
O responsável ministerial direto por este processo da reforma da saúde pública foi o então secretário de estado António Sales.
Esta comissão só teve duas reuniões presenciais, porque logo a seguir surgiu a pandemia Covid 19 e os primeiros confinamentos.
Durante 1 ano, esta comissão, constituída por médicos de saúde pública, enfermeiros de saúde pública e técnicos de saúde ambiental desenvolveu o seu trabalho no rigoroso cumprimento de todos os prazos para a apresentação dos diversos documentos.
Os membros da comissão não dispuseram de qualquer parte do seu horário diário para desenvolverem o trabalho relativo à reforma.
Estiveram envolvidos plenamente no extenuante combate à pandemia e tiveram de utilizar os períodos de descanso, incluindo os fins-de-semana, para assegurar a elaboração dos diversos documentos.
Foram realizadas mais de 40 reuniões da comissão por videoconferência e mais de 10 com juristas da Secretaria-geral do Ministério da Saúde para que as propostas de reestruturação dos serviços de saúde pública estivessem em conformidade com o enquadramento legal, geral, da Administração Pública.
Ao fim de 1 ano, a comissão entregou o relatório final, global, com o título “ Uma Saúde Pública para os cidadãos, para o Estado Social e com o horizonte de mais anos de vida com saúde”.
Neste relatório está incluído um diagnóstico da situação dos serviços de saúde pública a partir de um inquérito a todos eles que permitiu confirmar velhos problemas, detetar as insuficiências e referenciar outros problemas mais agudizados, fruto já do período do combate sem tréguas à pandemia.
Nesse sentido, considerou-se que importava estabelecer, com urgência, um novo modelo de funcionamento, organização e gestão dos seus serviços.
Num momento em que se verificavam alterações tão bruscas das condições de saúde e das ameaças à sua manutenção, era imprescindível dispor de novos e mais ágeis instrumentos para responder a processos desta enorme dimensão.
A comissão considerou que uma reforma que valorize a Saúde Pública e a consagre como instrumento central na intervenção de defesa coletiva da saúde dos cidadãos, deveria girar em torno dos seguintes aspetos fundamentais:
– Adequar as suas disposições à atual Lei de Bases da Saúde (Lei nº 95/2019).
– Conferir maior capacidade de intervenção de equipas específicas da saúde pública na vigilância e defesa sanitária das fronteiras, nomeadamente nos portos e aeroportos internacionais.
– Aprofundar a contínua diferenciação técnico-científica dos vários sectores profissionais.
– O número de profissionais dos centros de saúde pública deveria ser ajustado à dimensão, estrutura populacional e características epidemiológicas da sua área de intervenção, numa base de rácios.
– Flexibilidade organizacional e existência de equipas móveis para rápida intervenção no terreno em situações especiais que impliquem grave perigo para a saúde pública.
– Existência de mecanismos para, no cumprimento da Lei de Bases da Saúde, efetuar as adequadas avaliações dos impactos de programas, planos ou projetos, públicos ou privados, que possam afetar a Saúde Pública.
-Fortalecimento das funções de observatório de saúde para os serviços de saúde pública.
– Finalmente, da experiência acumulada e da evidência amargamente provada, existiria uma medida nuclear sem a qual nenhum processo de reforma se traduzirá em resultados concretos para a efetiva dinamização da Saúde Pública, ou seja, os seus serviços não podem estar dependentes simultaneamente da DGS e das direções das agora Unidades locais de Saúde (ULS) e naquela altura eram os Agrupamentos de Centros de Saúde.
Esta dupla tutela tem sido o fator responsável pela limitação do desenvolvimento das equipas de saúde pública, por deliberações contraditórias a nível local, que se traduzem em situações paralisantes, e numa espécie de “garrote “ à agilidade de resposta exigível a essas equipas que se encontram permanentemente no terreno e a enfrentar “cara a cara” as ameaças à saúde das populações.
As equipas de saúde pública necessitam de autonomia na sua atividade e de laços mais reforçados com a DGS, tornando-se também claro que a própria DGS necessita de uma reformulação da sua estrutura orgânica e dos seus meios de resposta global.
Desde logo, a pandemia mostrou em toda a sua crueldade social e humana que uma reforma dos serviços de saúde pública era um imperativo incontornável e inadiável.
Apesar de diversas insuficiências e lacunas existentes nos nossos serviços de saúde pública, eles conseguiram dar uma resposta global à pandemia que foi muito superior aos restantes países da União Europeia, tendo em conta que o seu trabalho está muito ligado ao terreno das comunidades e não é um exercício de gabinetes de epidemiologistas, como acontece nos outros.
Aliás, nessa altura, a comunicação social foi um terreno fértil para o aparecimento de epidemiologistas que todos os dias proliferavam como cogumelos, prestando, em muitos casos, um péssimo serviço informativo e fazendo afirmações deploráveis que só contribuíam para aumentar o pânico e a insegurança a nível da opinião público.
A comissão desenvolveu sempre o seu trabalho de forma autónoma e sem qualquer interferência do referido secretário de estado que, aliás, teve sempre uma atitude de completa transparência no relacionamento político e institucional com a referida comissão.
No entanto, os membros da comissão foram verificando a existência de diversos bloqueios ao desenvolvimento prático das propostas a nível da máquina governamental.
Logo com a apresentação o primeiro documento setorial relativo às juntas médicas de Incapacidade, foi muito claro que se levantavam bloqueios políticos.
Ora, se a nível do Ministério da Saúde tinha havido uma consensualização técnica com a comissão sobre o conteúdo dessa proposta, como explicar, então, a paralisação dessa matéria?
E como interpretar de outra forma os vários pedidos de esclarecimentos adicionais que foram solicitados à comissão?
Como sabemos, essas juntas médicas são constituídas por médicos de saúde pública quando não é esta especialidade médica a mais vocacionada para assegurar estas juntas.
Existindo uma marcada insuficiência destes médicos, tornava-se indispensável corrigir essa situação, possibilitando um substancial aumento da capacidade de resposta dessas juntas e uma célere recuperação da enorme lista de espera de cidadãos para a elas terem acesso.
A proposta apresentada considerou que as juntas médicas de avaliação de incapacidade da pessoa com deficiência deveriam ser constituídas por três médicos, dos quais um presidente e um vogal (relator/instrutor do processo) do quadro do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, e um médico que, se necessário, poderia ser do quadro do Ministério da Saúde.
O modelo proposto, largamente utilizado no espaço europeu, seria tutelado pelo Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, com o contributo do Ministério da Saúde, na medida em que também é beneficiário.
Os elementos das juntas médicas deveriam, preferencialmente, ter competência em peritagem médica da Segurança Social, ou competência em avaliação do dano corporal, ou experiência anterior comprovada em juntas médicas.
Com o documento sobre a reorganização dos serviços de saúde pública, as Finanças estavam mais preocupadas com as contas de mercearia do “deve” e do “ haver” face à necessidade de adequação do número de profissionais nas equipas de saúde pública do que com a rápida implementação de um modelo organizacional mais eficaz num momento em que não se sabia quanto tempo mais iria durar a pandemia.
A Saúde Pública é hoje considerada uma atividade central de um sistema de saúde, mediante a realização de estudos epidemiológicos necessários para orientar com mais eficácia a prevenção dos riscos para a saúde, bem como o planeamento e avaliação da saúde que deve ter por base um sistema organizado de informação de saúde, de vigilância e de ação epidemiológica.
Promover a saúde, prevenir as doenças, organizar os serviços e dinamizar o envolvimento comunitário são os esteios da Saúde Pública.
Em 1988, a OMS definiu a Saúde Pública “ como um conceito social e político que visa a melhoria da saúde, uma maior longevidade e um crescimento da qualidade vida de todas as populações através da promoção da saúde, da prevenção das doenças, assim como por outras intervenções relativas à saúde”.
Com a pandemia e o incansável trabalho das equipas multiprofissionais da Saúde Pública no combate diário contra as cadeias de contágio, verificou-se uma forte tomada de consciência de que esta importante área dos serviços de saúde desempenhava um papel insubstituível na preservação dos níveis de saúde das populações.
A pandemia teve um elevadíssimo custo humano, social e económico.
Apesar disso, o governo presidido por António Costa demonstrou uma completa indiferença com a necessidade da reforma da Saúde Pública.
E o atual governo presidido por Luís Montenegro está a copiar essa atitude política, demonstrando uma completa irresponsabilidade perante os nossos cidadãos.
Se vier a acontecer nova pandemia, os governantes que bloquearam a reforma da Saúde Pública vão ser responsabilizados política e criminalmente por não terem tomado as medidas de melhor adequação dos serviços de Saúde Pública?
Este assunto constitui um escândalo que não pode ser tolerado e calado.
A opinião pública tem de exercer a sua cidadania, repudiando as práticas políticas de quem anda a brinca com a nossa saúde coletiva.
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