Confesso que me tinha obrigado a não escrever mais sobre o Serviço Nacional de Saúde (SNS). Pelo menos, nos tempos proximais. No entanto, uma sucessão de episódios, de frequência quase diária, levou-me a romper com este desiderato.

Desde o caos na Direção-Geral da Saúde, serviço de saúde pública de âmbito nacional, até à proposta de alteração do Estatuto da Ordem dos Médicos, os últimos tempos têm sido prolíficos em acontecimentos particularmente gravosos para o SNS.

Em escassos quinze dias, assistimos aos pedidos de demissão do Subdiretor-geral da Saúde e do Coordenador da Comissão para a Reforma da Saúde Pública. Por mais que o poder político o possa desvalorizar, trata-se de acontecimentos-sentinela no respeitante à realidade sistémica presente.

A Ordem dos Médicos Portugueses foi criada em novembro de 1938. Enquadrada, à data, na organização social e política do Estado Novo, ajustou-se aos novos ventos da história nacional, decorrentes da eclosão do regime democrático.

Em 85 anos de existência, o papel da Ordem dos Médicos não se tem limitado à regulação, nos termos legais, da atividade médica. O “Relatório das carreiras médicas” (1961), ou relatório Miller Guerra, é um eloquente exemplo de advocacia em saúde pública – tanto mais que reportado a um contexto político particularmente adverso à identificação de problemas societais.

Relativamente à proposta de alteração do Estatuto da Ordem dos Médicos, considero estarmos perante a maior ameaça de sempre à Medicina Portuguesa. Incluo, nesta apreciação, os conturbados anos revolucionários (“PREC”), propiciadores de condutas irrefletidas e primariamente irresponsáveis.

No dizer de António Arnaut, não teria sido possível o SNS sem as carreiras médicas. E sem carreiras médicas a sobrevivência do SNS não é possível.

A desregulação da prática médica, que emerge da referida proposta de diploma legal, traduz, por consequência, o mais grave ataque ao SNS desde a sua criação, em 1979, pela Assembleia da República e no contexto de um Governo independente. E limita, de forma absurda, os inscritos na Ordem dos Médicos nos seus direitos associativos de índole sindical.

Não se compreende que seja liminarmente vedado, a um dirigente sindical, o exercício de cargos em órgãos da Ordem dos Médicos. É o caso de órgãos meramente consultivos, constituídos por designação e não por eleição, de que é exemplo o conselho nacional a que presido.

A proposta em apreço abre, ainda, as portas à arbitrariedade por parte de um “conselho de supervisão”, em que 2/3 dos seus membros são externos à profissão médica.

Convirá recordar que a Medicina é, acima de tudo, uma arte. Ora, uma arte tem de ser praticada. Acresce que a arte médica tem mais de 2500 anos de organização interna.

No ano do seu falecimento (2018), António Arnaut dirigiu ao Primeiro-ministro um pungente apelo de salvaguarda do SNS. Desde então, assistimos ao esboroar, orgânico e funcional, da sua estrutura…

O ataque à carreira médica afigura-se como a machadada final e decisiva neste sinistro processo. A tutela política assume, desta forma, o papel do carrasco que decapita o supliciado.

Chegámos, em conclusão, ao ponto de não retorno do SNS. Tragicamente, não se trata de um não retorno funcional, mas, antes, vital…