A médica ginecologista e obstetra Cristina Nogueira-Silva, do Hospital de Braga, alerta que morrem anualmente 260 mil mulheres por cancro cervical invasivo, com uma incidência superior em fumadoras, imunodeprimidas e transplantadas. Defende, por isso, que é preciso continuar a alertar para a infeção sexualmente transmissível mais frequente no mundo.

Janeiro é o mês de conscientização sobre o cancro cervical. "É uma oportunidade para alertar a população e recordar o caminho de investigação, de melhoria dos cuidados e sensibilização percorridos nos últimos 35 anos, mas também para chamar a atenção para o que ainda há a fazer”, refere a especialista, que é também professora da Escola de Medicina da Universidade do Minho.

A médica explica que existem mais de 200 tipos diferentes de HPV, alguns dos quais com potencial cancerígeno. Estima-se que cerca de 75 a 80% das pessoas sexualmente ativas terá um episódio de infeção por HPV durante a vida. “A infeção por HPV pode associar-se a doenças benignas, mas potencialmente recidivantes e indutoras de má qualidade de vida e ansiedade, tais como verrugas da orofaringe e condilomas anogenitais, bem como a patologia maligna”, acrescenta a ginecologista Cristina Nogueira-Silva.

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O HPV é um carcinogéneo humano, sendo reconhecido como estando na origem de cerca de 5% de todos os cancros (mais do que o tabaco): quase todos (99,7%) os casos de cancro do colo do útero, 70% dos cancros da vagina e 40% da vulva, 47% dos cancros do pénis, 90% dos cancros anais, até 72% dos cancros da orofaringe e 10% dos cancros da laringe.

De acordo com a especialista, “o desenvolvimento de vacinas profiláticas recombinantes contra o HPV revelou-se uma estratégia de prevenção primária eficaz, custo-efetiva e segura, com múltiplos estudos a demonstrarem taxas de seroconversão de 97 a 100% da população vacinada e um claro impacto na redução da carga de doença associada ao HPV”. Sublinha ainda que a vacina nonavalente “apresenta potencial para prevenir 89% dos cancros associados ao HPV e 82% das lesões pré-cancerosas” do colo do útero, vulva, vagina e ânus.

“Apesar destes resultados, as doenças associadas ao HPV mantêm-se um importante problema de saúde pública que não pode ser deixado para segundo plano. O HPV é, também, responsável por 284 mil a 540 mil novas lesões pré-cancerosas anogenitais por ano. Em Portugal, anualmente, estima-se que 865 mulheres sejam diagnosticadas com cancro do colo do útero e 379 morram, sendo o terceiro cancro mais frequente nas mulheres entre os 15 e os 44 anos”, frisa.

E o que torna o colo do útero tão suscetível à infeção por HPV?  

Cristina Nogueira-Silva explica que o colo do útero é composto por uma área recetiva à infeção, denominada zona de transformação, na qual as células se mantêm em diferenciação. “O papilomavírus humano infeta as células desta área do colo do útero, às quais acede através de microtraumatismos, nomeadamente durante o ato sexual. A infeção persistente por HPV de tipos denominados de alto risco desempenha um papel crucial na transformação maligna”, esclarece.

No entanto, salienta que “o processo de desenvolvimento de doença maligna é lento, o que proporciona oportunidade de intervenção”. Por esta razão “é que é tão importante que as mulheres procurem o seu médico e realizem o rastreio do cancro do colo do útero, que consiste na colheita de células do colo do útero, para pesquisa da presença de HPV e/ou detetar alterações dessas células (o vulgo Papanicolau).

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Esperar para ver como evolui ou intervir? 

Segundo a médica, diferentes sociedades científicas como a American Society of Colposcopy and Cervical Pathology e a Sociedade Portuguesa de Ginecologia, defendem que, perante alterações dos testes de rastreio, pode haver uma abordagem clínica expectante (vigilância) ou terapêutica, dependendo do grau de risco de a infeção se tornar maligna.

Na sua opinião, a abordagem expectante deve, de facto, ser recomendada em muitos dos casos clínicos. Contudo, reconhece pela sua experiência clínica que o diagnóstico de uma alteração de um teste de rastreio do cancro do colo do útero associa-se a elevados níveis de ansiedade por parte das mulheres, o que, por vezes, dificulta a aceitação da chamada estratégia “wait and see”, ou seja, esperar para ver como evolui. Por isso, admite que estratégias de intervenção terapêutica, como produtos de aplicação vaginal, podem ser utilizados como forma de estimular a natural regeneração dos tecidos e, ao mesmo tempo diminuir os níveis de ansiedade.

“Nos últimos anos, foram desenvolvidos produtos de aplicação vaginal, baseados em betaglucano, aprovados para o tratamento e prevenção de lesões cervicais de baixo grau causadas pelo HPV. Os estudos científicos demonstram que o betaglucano além de ativar o sistema imune, promove a epitelização e estimula a regeneração cervical”, sublinha.

Dá como exemplo um estudo que envolveu cerca de mil mulheres em que uma formulação em spray de gel vaginal de carboximetil-betaglucano e policarbófilo demonstrou a regressão de 95,7% de lesões de baixo grau aos 6 e 12 meses, ou seja uma regressão 1,3 vezes superior à abordagem expectante.

Em resumo, a especialista afirma que a decisão de uma abordagem de vigilância ou de intervenção deve ser analisada caso a caso, ou seja, em função do risco individual de malignização, da evolução da doença e dos níveis de ansiedade da mulher quando confrontada com uma alteração de um teste de rastreio de cancro do colo do útero.

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