Introdução

Imagine que, após anos de dedicação, formação e resultados alcançados na sua área de trabalho, a sua progressão profissional fosse subitamente condicionada por notas obtidas há uma década, não necessariamente relacionadas com o trabalho que agora executa. Esta é a realidade que os médicos de Medicina Geral e Familiar (MGF) e Saúde Pública (SP) enfrentarão, caso a recente proposta do Ministério da Saúde (MS) seja implementada sem alterações. A seriação médica, processo que determina a ordem de escolha dos recém-especialistas quanto ao seu local de trabalho, sempre valorizou o desempenho durante o internato médico. Contudo, a nova proposta introduz uma ponderação de 40% para a média do curso de medicina, aplicável exclusivamente a MGF e SP, sem justificação clara para esta distinção para com as outras especialidades médicas.

Internato Médico

O internato médico é o período formativo no qual se desenvolvem as competências específicas para a execução das funções de um médico especialista e, deste modo, é a mais importante para o preparar enquanto tal: A qualidade da formação durante o internato tem um impacto direto na competência e na eficácia dos médicos especialistas. No fim deste período de formação específica, o médico interno é submetido a uma avaliação técnica, adequada às competências e funções da sua área de especialidade (SP, MGF, Cirurgia Geral, Medicina interna, Oncologia, Ginecologia, etc) e que determina se esse profissional está apto para desenvolver funções como um especialista.

Seriação

Seguindo este modelo, atualmente a seriação dos médicos especialistas baseia-se em três áreas de avaliação do internato médico: Competências Clínicas e Conhecimentos Teóricos; Atitudes Profissionais e Desenvolvimento Pessoal; Envolvimento Científico. Esta verdade aplica-se a todas as 50 especialidades médicas, mas o MS, sem se perceber porquê, pretende mudar esta realidade para duas especialidades. Não foi fornecida uma justificação clara sobre o motivo desta alteração nem sobre a razão pela qual apenas MGF e SP são afetadas por esta mudança nos critérios de seriação.

Implicações

As consequências não são só para os médicos que enfrentarão um processo injusto que não ordena no topo das escolhas aqueles que demonstraram ser mais capazes para trabalhar como especialistas de MGF e SP. Médicos com formação especializada adequada estão mais aptos a fornecer cuidados de alta qualidade, resultando em melhores desfechos para os pacientes. Desvalorizar o internato levará inevitavelmente a uma distorção dos critérios de priorização e da importância da formação médica e, por consequência, a um impacto negativo na preparação dos médicos destas especialidades. Quem sofrerá as verdadeiras consequências desta medida serão os beneficiários dos serviços públicos de saúde: os pacientes. Este é um passo na descredibilização do trabalho que estes médicos executam durante o internato médico e quem perde é o SNS. Aqueles que demonstrarem superiores habilidades na execução das suas funções verão o seu trabalho rapidamente reconhecido pelo privado ou pelo estrangeiro, agravando a falta de atratividade do SNS para estes profissionais: o SNS estará a afastar os melhores.

Conclusão

Reconhecemos os esforços que o MS tem levado a cabo nos últimos meses para tentar melhorar os serviços prestados pelo SNS. No entanto, esta solução em particular não contribui para esse caminho de melhoria. Chamamos à atenção do MS para a revisão deste processo de forma a garantir que os médicos de MGF e SP sejam valorizados pelas competências que realmente influenciam a qualidade do serviço que vão prestar, ou seja, mantendo os critérios de seriação dos concursos para recém-especialistas ao período formativo do internato médico, recorrendo à média do curso de medicina como um dos critérios de desempate, se tal for necessário. É necessário que os critérios de seriação sejam semelhantes entre as diferentes especialidades médicas e que seja implementado um processo de revisão que envolva os profissionais destas especialidades, nomeadamente através de todas as entidades que os representam, garantindo que quaisquer alterações que venham a ser implementadas sejam baseadas em evidências e beneficiem tanto os médicos quanto os pacientes.