HealthNews (HN) – Aqui há dias levantou-se grande celeuma por ter sido lançado um concurso para ocupação de vagas de MGF no qual o número de vagas era inferior ao de candidatos. Terminado o concurso, verificou-se que boa parte das vagas ficou por preencher. Como se explica esta incongruência?

Rui Nogueira (RN) – O problema dos concursos persiste há décadas. Não obstante, o Ministério da Saúde teima em continuar com as mesmas regras e a mesma metodologia. O resultado, como seria de esperar, é sempre o mesmo: desastroso. Fez com que, ao longo dos anos, tivéssemos perdido no SNS imensos médicos de família. Ou seja, estamos a formar médicos e não os sabemos integrar nas USF.

HN- Qual é a principal falha no concurso?

RN – Na minha opinião, abrem-se demasiadas vagas com a esperança de que os médicos, nomeadamente do Norte e do Centro, se disponham a ir exercer para a periferia de Lisboa e Vale do Tejo. Ora, isso é pura utopia. São poucos os que se dispõem a ir para a periferia de Lisboa nas condições oferecidas.

Ou seja, as vagas não são abertas de acordo com o concurso rápido para ingresso na carreira médica. Isto levanta um problema incrível porque as unidades de saúde com condições menos atrativas são sistematicamente preteridas, o que agiganta as grandes assimetrias que já existem.

Por outro lado, deveria existir um concurso anual para mobilidade dos médicos já colocados. Este é um problema que se arrasta há anos e cuja resolução requer coragem política.

HN- Mas essa possibilidade não pode criar o risco de tapar-se de um lado e destapar-se de outro?

RN – Sim, claro. Mas só com concursos dirigidos a estes médicos podemos garantir que as pessoas não ficam eternamente em esforço no mesmo local.

Seria necessário instituir um concurso interno anual, numa data específica e com um regulamento razoavelmente atrativo, para premiar os colegas que estão em lugares mais complexos, mais difíceis e de menor conforto para si.

Deveria ainda existir um concurso externo para os médicos que estão fora da carreira. Isso significa que deveríamos ter concursos em quatro meses do ano para diferentes candidatos.

HN – Uma ideia de senso comum é que as vagas devem ser abertas nos sítios em que há falta de médicos…

RN – É o senso comum, mas em termos de gestão de recursos humanos seria pouco razoável. Se tivermos 70 candidatos e abrimos 100 vagas, as melhores vagas, mais atrativas, serão preenchidas. Se no ano seguinte fizermos a mesma coisa, as melhores serão novamente preenchidas e assim sucessivamente, agravando sempre a situação da carência de médicos de família.

Já começa a haver muitas unidades onde sistematicamente não há novos médicos de família. E portanto, tendem a ter condições difíceis. Ninguém gosta de ir para uma unidade onde 30 ou 40% da população não tem médico de família atribuído.

O Ministério da Saúde continua a ser capaz de fazer a mesma confusão duas vezes por ano desde há vários anos.

HN – Qual seria a solução, para além dos quatro concursos anuais?

RN – O que me parece necessário fazer é melhorar as condições de exercício profissional e premiar em sede de carreia médica o esforço e desempenho profissional.

Os concursos anuais têm de ser feitos com vagas plenamente estruturadas em função do número de candidatos. Mas temos de garantir condições atrativas nas unidades de saúde. Este é um aspeto essencial.

HN – Que condições são essas?

RN – Equipas completas, instalações dignas, unidades organizadas. Temos de fazer um grande esforço grande para que as unidades tenham equipas suficientemente robustas para atrair os colegas que agora começam a carreira. Por outro lado, há que ver as condições de mobilidade, através de um concurso para os colegas que já estão em carreira, em lugares de maior penosidade.

A carreira médica deve ser suficientemente atrativa e plástica para premiar estes colegas. Por outro lado, a sua progressão na carreira deverá ser mais rápida, de modo a ter reflexo na remuneração.

A dimensão da lista de utentes deve também ser adaptada em função da localização e penosidade da USF.

HN – Isso não funciona já com os pontos?

RN – Não, não funciona de forma explícita. Nalgumas unidades, até a possibilidade de candidatura a USF modelo B é impossível. Nas condições atuais, nunca será possível evoluir para modelo B em unidades de saúde mais isoladas, em localidades de menor densidade populacional e maior taxa de cobertura.

Sem dúvida que é muito mais difícil trabalhar com taxas de cobertura mais elevadas, em locais onde existem menos recursos. E, ainda assim, são usadas as mesmas regras para fazer a lista de utentes.

As unidades que não têm condições para chegar a modelo B nunca serão atrativas. Significa que temos de criar condições realistas para atrair os colegas para unidades mais difíceis. Não querer ver este problema significa insistir em não encontrar soluções.

HN – Temos agora um diretor executivo do SNS. Mas a verdade é que não tem tutela sobre os recursos humanos, nem sobre o dinheiro…

RN – Na minha opinião há soluções tão lógicas que não carecem de novas tutelas. Não é possível continuar a adiar as soluções. Claro que estamos habituados a ouvir as afirmações políticas de admitir todos os médicos sabendo-se que, por outro lado, não se garantem condições de trabalho e se remunera mal.

O SNS está exaurido, em agonia. Já não são suficientes medidas de remendo, como as que têm sido utilizadas nos últimos anos. A partir de 2012, o SNS entrou na Idade das Trevas. Precisa agora de renascer. Mais do que remodelar, emendar, encontrar soluções pontuais e precárias, é necessário pensar muito a sério numa refundação do SNS.

O SNS que foi criado por António Arnaut há mais de 40, e que tão boa conta deu de si, não pode ser, naturalmente, 40 anos depois, a solução, embora se devam manter os seus princípios essenciais, universais e humanistas, contidos na Lei do SNS de Arnaut.

Para além da direção executiva do SNS – de facto uma solução operacional – é imperativa a intervenção política do primeiro-ministro para que o ministro das Finanças diga, alto e bom som, que o seu apoio ao novo SNS é inequívoco. O Ministro da Saúde carece de suporte político inequívoco para ser possível refundar o SNS.

Ou seja, para além da intervenção necessária de direção executiva, muito bem liderada pelo Professor Fernando Araújo e pela sua equipa, é imperativa a refundação do SNS e uma intervenção política inequívoca e muito rápida, para que seja possível de facto recuperar o SNS.

O limite temporal de influenciar o Plano e Orçamento Geral do Estado será antes do verão. Não se pense que poderemos ter soluções para os grandes problemas nos próximos meses. As soluções possíveis da refundação do SNS ver-se-ão, ou não, em 2024, em função daquilo que for o orçamento inequívoco de aposta no novo SNS. Se não acontecer uma mudança profunda na construção do orçamento até junho, tudo será igual em 2024.

HN – Acha que é possível?

RN – Tenho esperança que seja possível, mas com reservas. Se continuarmos a ver os mesmos erros, repetidos ano após ano nas últimas décadas, tudo ficará na mesma. Aumentar o orçamento para a saúde em 10%, quando a despesa do ano anterior já foi muito superior, estamos a confundir soluções e a enterrar o SNS.

HN – Defende a perspetiva dos orçamentos plurianuais?

RN – Claro. É a única solução. Mas agora temos de partir de uma base zero. Andamos sempre iludidos com o orçamento em relação ao ano anterior. Mas o aumento no orçamento é realizado em despesas de capital que depois já se sabe que não vão ser realizadas e são facilmente cativadas.

Repare: de acordo com o atual padrão, o orçamento de 2024 será feito, não com base na despesa de 2023 ou mesmo de 2022, mas com base no orçamento de 2023. Mas o orçamento de 2023 já era deficitário!!

HN – E temos um descalabro se os 500 médicos de família que se podem reformar este ano o fizerem.

RN – É verdadeiramente dramático. Mas, atenção, não é nada que não estivesse previsto há muitos anos. É natural que haja este aumento de aposentações em 2022, 2023 e 2024. São três anos top de aposentações porque ocorrem 40 anos depois do início da carreira médica.

Estamos à espera de quê? Os médicos disponíveis no final dos 70 e início de 80 eram muitos e isso foi uma enorme vantagem no início do SNS. Quarenta anos depois, continuamos a não saber atrair os médicos que formamos.

HN – Mas não há falta de médicos?

RN – Não há falta de médicos em Portugal. Há é falta de médicos no SNS, porque não se criam condições para os contratar. E, assim, voltamos ao primeiro tema da nossa conversa, os concursos.

Não é nada de estranhar que no próximo ano venhamos a ter uma situação dramática nos centros de saúde, com falta de médicos de família. De um milhão de utentes passamos rapidamente para dois milhões e se nada for feito podemos chegar aos três milhões de pessoas sem médico de família já no próximo ano. Estamos a afastar-nos muito dramaticamente do objetivo de cobertura universal do SNS.

HN – O ministro da Saúde tem força política para as reformas que é preciso fazer?

RN – Acredito que tenha força política. Mas a maior responsabilidade é do primeiro-ministro.

O ministro da Saúde, pela experiência anterior no Ministério e até por ser médico, conhece perfeitamente os problemas. O mesmo se passa com o diretor executivo do SNS. Ou seja, quem conhece os problemas está hoje nos mais altos cargos de política da saúde. Infelizmente não temos tido a visão útil do primeiro-ministro e do ministro das Finanças.

Há sempre a desculpa de que não é possível investir porque o ministro das Finanças não deixa. Para acabar com esta ideia, o ministro das Finanças tem de vir a público dizer, de uma forma muito clara, que há dinheiro disponível e que aprova os projetos credíveis e controla os “buracos” do Ministério da Saúde.

Se compararmos o montante necessário no SNS com o que já foi gasto com o novo aeroporto de Lisboa ou com o buraco dos bancos há uns anos, só podemos concluir que não se faz porque não se quer fazer.

HN – Paira uma nova ideia, vinda até da direção executiva do SNS, sobre a criação de novas ULS. Recordo que, no passado, havia grandes receios em relação a essa organização porque acabava por menorizar os cuidados de saúde primários. Havia o receio de os médicos serem utilizados para satisfazer as necessidades do hospital.

RN – E continua a haver razão para esse receio. A criação de ULS é uma evidência e a liderança dos centros de saúde é a mais lógica e óbvia. Mas não há condições na maior parte dos centros de saúde para construir a ULS necessária.

Claro que podemos dizer que as pessoas são bem intencionadas e que aquilo que queremos todos é o bem do país e da comunidade. Mas, numa altura em que os centros de saúde estão tão carenciados, tão definhados, tão exauridos, a criação de ULS tem de contar com esta situação de precariedade, ao nível de estruturas, instalações, equipamentos e de recursos humanos.

A falta de médicos de família nalguns centros de saúde é avassaladora. Por isso, eu diria que já tivemos melhores dias para fazer ULS. O risco é enorme.

HN – A organização em agrupamentos de centros de saúde trouxe ou não vantagens?

RN – Trouxe vantagens. Seria uma forma de dar maior apoio às pequenas unidades operacionais e uma questão de economia de escala. Por outro lado, permitiram a criação dos Conselhos Clínicos de Saúde, presididos por médicos de família. Mas creio que ficaram aquém das expetativas e rapidamente adotaram os “vícios” da administração pública.

HN – A saída dos médicos para a reforma não vai colocar um problema na formação?

RN – A nossa capacidade de formação já não é uma limitação como há 10 anos atrás. Comparado com os outros, é um problema que me parece menor, mas carece de apoio e aperfeiçoamento.

HN – O número de médicos que estão a ser formados devia manter-se ou ser alterado (aumentar ou diminuir)?

RN – Esta bolha [das aposentações] vai acabar em 2025. Daqui a uns cinco anos, estaremos a formar 500 médicos de família por ano quando se aposentarão uns 50 colegas por ano!! Aumentar agora as capacidades formativas já não vai resolver o problema.

HN- Uma nota final…

RN- Julgo que a nota mais importante é a necessidade de sermos muito rápidos a encontrar soluções. Esta será a última oportunidade e “O relógio está a contar e o tempo escasseia” como escreveu Fernando Araújo em maio de 2022.