Nadine Burke Harris, pediatra canadiana, já trabalhava há muito com crianças vulneráveis quando conheceu Diego, que aos sete anos era mais pequeno do que a maioria das crianças de quatro. As análises e exames mostravam que não tinha nenhum problema de saúde que justificasse a paragem de crescimento. Mas tinha sido abusado por um conhecido da família…
Diego, sem o saber, viria a transformar a vida da médica que o atendeu. Ao vê-lo, Nadine teve uma revelação: começou finalmente a juntar os pontos e a relacionar as experiências adversas na infância com problemas de saúde.
O seu trabalho demonstrou as terríveis consequências das experiências traumáticas na infância. Estas podem alterar a trajetória de desenvolvimento de uma criança e afetar a sua fisiologia; podem desencadear inflamações crónicas e alterações hormonais; aumentar drasticamente o risco de doenças cardíacas, acidentes vasculares cerebrais, cancro, diabetes e até Alzheimer.
É uma doença invisível, que se esconde quase sempre sob um manto de stress etóxico e pode ser desencadeada por fatores tão banais como um divórcio ou a negligência dos pais.
No seu livro O Poço Mais Fundo (edição Lua de Papel) a autora expõe o problema, explica-o, e apresenta as soluções que ao longo dos anos tem testado com sucesso, quer com crianças, quer com adultos só aparentemente funcionais.
Do livro, publicamos o excerto abaixo:
Às cinco horas de uma manhã normal de sábado, um homem de 43 anos – chamemos-lhe Evan – acorda. A sua mulher, Sarah, respira suavemente ao seu lado, enrolada na sua posição habitual, com o braço sobre a testa. Sem pensar muito, Evan tenta rebolar e deslizar para fora da cama para ir à casa de banho, mas algo não está bem.
Não consegue virar-se e parece que o seu braço direito ficou dormente.
Talvez tenha dormido muito tempo em cima do braço, pensa, preparando-se para aquele formigueiro quente e desagradável que se tem quando a circulação começa a voltar.
Tenta mexer os dedos para fazer o sangue circular, mas não consegue. A pressão dolorosa na bexiga não vai esperar, por isso tenta levantar -se novamente. Nada acontece.
Mas que raio…
A perna direita ainda está exatamente no mesmo sítio, apesar de a tentar mover da mesma forma que a moveu durante toda a sua vida – sem pensar.
Tenta novamente. Nada.
Parece que, esta manhã, a perna não quer cooperar. É estranho, esta coisa de o corpo não fazer o que queremos, mas a vontade de fazer chichi parece ser um problema muito maior neste momento.
“Ei, querida, podes ajudar -me? Tenho de fazer chichi. Empurra-me para fora da cama para eu não fazer aqui mesmo” – diz ele a Sarah, meio a brincar com a última parte.
“O que é que se passa, Evan?” – diz Sarah, levantando a cabeça e olhando para ele. “Evan?”
A voz dela eleva -se quando diz o seu nome pela segunda vez.
Ele repara que ela o olha com uma profunda preocupação nos olhos. A expressão no rosto dela é a mesma que costuma ter quando os rapazes têm febre ou acordam doentes a meio da noite. O que é ridículo, porque tudo o que ele precisa é de um pequeno empurrão. Afinal de contas, são cinco da manhã.
Não há necessidade de uma conversa a sério.
“Querida, tenho de ir fazer chichi” – diz ele.
“O que é que se passa? Evan? O que é que se passa?”
Num instante, Sarah levanta -se. Tem as luzes acesas e está a olhar para a cara de Evan como se estivesse a ler um título sensacionalista no jornal de domingo.
Está tudo bem, querida. Só preciso de fazer chichi. A minha perna está a dormir. Podes dar-me uma ajudinha?” – diz ele.
Evan pensa que se conseguir transferir o peso do corpo para o lado esquerdo, talvez possa mudar de posição e estimular a sua circulação. Só precisa de sair da cama.
É nesse momento que se apercebe que não é só o braço e a perna direita que estão dormentes – é a cara também.
De facto, é todo o seu lado direito.
O que é que me está a acontecer?
Então Evan sente algo quente e húmido na sua perna esquerda.
Ao olhar para baixo, vê que os boxers estão encharcados.
A urina está a espalhar -se pelos lençóis da cama.
“Oh meu Deus!” – grita Sarah. Naquele instante, ao ver o marido molhar a cama, Sarah apercebe -se da gravidade da situação e entra em ação. Salta da cama e Evan ouve-a correr para o quarto do filho adolescente. Seguem-se palavras abafadas que ele não consegue perceber através da parede, e a seguir ela regressa. Senta -se na cama ao lado dele, abraçando-o e acariciando-lhe o rosto.
“Está tudo bem”, diz Sarah. “Vai ficar tudo bem.” A voz dela é suave e tranquilizadora.
Querida, o que é que se passa?” – pergunta Evan, olhando para a sua mulher. Ao encará-la, apercebe -se de que ela não consegue entender nada do que ele está a dizer.
Ele mexe os lábios e as palavras saem-lhe da boca, mas ela parece não estar a perceber nada.
Nesse momento, um anúncio ridículo em desenho animado com um coração a dançar ao som de uma canção parva começa a passar na sua cabeça.
F é face descaída. Mexe-te. Mexe -te.
A é falta de força no braço. Mexe-te. Mexe-te.
S é problemas na fala.
T é hora de ligar para o 112. *
Aprenda a identificar os sinais de AVC. Aja RAPIDAMENTE*! Merda!
Apesar da hora matinal, Marcus, o filho de Evan, aparece rapidamente à porta e entrega o telefone à mãe. Quando pai e filho cruzam olhares, Evan deteta uma expressão de preocupação que lhe provoca um aperto no coração. Ele tenta dizer ao filho que tudo vai ficar bem, mas torna-se claro pela expressão do rapaz que a sua tentativa de o tranquilizar só está a piorar as coisas. O rosto de Marcus contorce -se de medo e as lágrimas começam a correr-lhe pelas bochechas.
Ao telefone com o operador do 112, Sarah é clara e enérgica.
“Preciso de uma ambulância, já, já! O meu marido está a ter um AVC. Sim, tenho a certeza! Ele não consegue mexer todo o lado direito. Metade da cara não se mexe. Não, ele não consegue falar. Está todo baralhado. O discurso dele não faz qualquer sentido. Despachem -se. Por favor, mandem uma ambulância imediatamente!”
Os primeiros socorristas, uma equipa de paramédicos, chegam ao local em cinco minutos. Batem à porta e tocam à campainha. Sarah desce as escadas a correr e deixa-os entrar. O filho mais novo está ainda no quarto a dormir e ela teme que o barulho o acorde, mas, felizmente, ele nem se mexe.
Evan fixa as sancas do teto e tenta acalmar-se. Sente que a sua mente começa a perder o rumo, afastando -se cada vez mais do momento atual. Isso não é bom.
Quando dá por si, está a ser transportado de maca pelas escadas. Ao chegarem ao patamar, os paramédicos fazem uma pausa para mudar de posições. Nesse espaço de um segundo, Evan olha para cima e vê um dos paramédicos a observá-lo com uma expressão que o faz arrepiar -se.
É um olhar de reconhecimento e pena, que diz: “Coitado. Já vi isto e não é bom.”
Quando estão a passar pela porta, Evan pergunta -se se alguma vez voltará a esta casa. Para junto de Sarah e dos seus rapazes. Pela forma como o paramédico olhou para ele, Evan pensa que a resposta talvez não seja afirmativa”.
Quando chegam à sala de emergência, Sarah é bombardeada com perguntas sobre o historial médico de Evan. Conta-lhes todos os pormenores da vida de Evan que julga serem relevantes. Trabalha como programador informático. Anda de bicicleta de montanha todos os fins de semana. Adora jogar basquetebol com os filhos. É um excelente pai. É feliz. No seu último exame, o médico disse que tudo parecia ótimo. A certa altura, ouve um dos médicos relatar ao telefone o caso de Evan a um colega: “Homem de 43 anos, não fumador, sem fatores de risco.”
Mas apesar de desconhecido de Sarah, Evan e até dos médicos de Evan, ele tinha um fator de risco. Um fator de risco muito elevado. De facto, Evan tinha mais do dobro da probabilidade de sofrer um AVC do que uma pessoa sem esse fator de risco. Naquele dia, o que ninguém sabia nas urgências era que, durante décadas, um processo biológico invisível tinha estado em ação, envolvendo os sistemas cardiovascular, imunitário e endócrino de Evan. Um processo que poderia muito bem ter levado à situação que viviam nesse momento.
O fator de risco e o seu potencial impacto nunca surgiram em nenhum dos exames regulares que Evan tinha feito ao longo dos anos.
O que colocou Evan em risco acrescido de acordar com metade do corpo paralisado (e também de contrair inúmeras outras doenças) não é raro. É algo a que estão expostos dois terços da população, algo tão comum que está escondido à vista de todos.
Então o que é? Chumbo? Amianto? Algum material tóxico de embalagem?
Nada disso.
Adversidade na infância.
A maioria das pessoas nunca suspeitaria que o que lhes acontece na infância tem alguma coisa a ver com um AVC, doenças cardíacas ou cancro. Mas muitos de nós reconhecem que, quando alguém sofre um trauma de infância, pode haver um impacto emocional e psicológico. Para os azarados (alguns dizem os “fracos”), as piores consequências são bem conhecidas de todos: abuso de drogas, comportamento violento recorrente, prisão e problemas de saúde mental. Mas para todos os outros, o trauma de infância é a má memória de que ninguém fala até, pelo menos, ao quinto ou sexto encontro numa relação. É apenas drama, bagagem.
As experiências de adversidade na infância são uma história que pensamos conhecer.
As crianças têm enfrentado traumas e stresse sob a forma de abuso, negligência, violência e medo desde que o mundo é mundo. Há quase tanto tempo quanto os pais têm sido alvo de maus-tratos, prisão e divórcio.
As pessoas que são suficientemente inteligentes e fortes conseguem ultrapassar o passado e triunfar pela força da sua própria vontade e resiliência.
Mas será mesmo assim?
Todos nós já ouvimos relatos que nos trazem à memória as histórias de Horatio Alger* sobre pessoas que passaram por dificuldades precoces e que as ultrapassaram ou, melhor ainda, que se tornaram mais fortes por causa delas. Estes contos estão incorporados no ADN cultural dos americanos.
Na melhor das hipóteses, dão uma imagem incompleta do que significa a adversidade na infância para as centenas de milhões de pessoas nos Estados Unidos (e para os milhares de milhões em todo o mundo) que sofreram stresse no início da vida. Mais frequentemente, assumem uma conotação moral, provocando sentimentos de vergonha e desespero naqueles que lutam contra os impactos da adversidade na infância ao longo da vida. Mas falta uma grande parte da
Vinte anos de investigação médica demonstraram que as adversidades na infância nos afetam profundamente, mudando as pessoas de formas que se podem manifestar nos seus corpos durante décadas. Podem alterar a trajetória de desenvolvimento de uma criança e afetar a fisiologia. Podem desencadear inflamações crónicas e alterações hormonais que podem durar toda a vida. Podem alterar a forma como o ADN é lido e como as células se replicam, e podem aumentar drasticamente o risco de doenças cardíacas, acidentes vasculares cerebrais, cancro, diabetes – e até Alzheimer.
Esta nova ciência dá uma reviravolta surpreendente à história de Horatio Alger que pensamos conhecer tão bem: como os estudos revelam, anos mais tarde, depois de terem “transcendido” a adversidade de forma admirável, até os heróis por conta própria acabam por ser prejudicados pela sua biologia. Apesar das infâncias difíceis, muitas pessoas tiveram boas notas, foram para a universidade e formaram famílias. Fizeram o que era suposto fazerem. Superaram as adversidades e construíram vidas de sucesso – e depois adoeceram.
Tiveram acidentes vasculares cerebrais. Ou tiveram cancro do pulmão, ou desenvolveram doenças cardíacas, ou entraram em depressão. Como não tinham tido comportamentos de alto risco, como beber, comer em excesso ou fumar, não faziam ideia da origem dos seus problemas de saúde. Certamente não os relacionavam com o passado, porque o tinham deixado para trás. Certo?
A verdade é que, apesar de todo o seu trabalho árduo, pessoas como Evan, que tiveram experiências adversas na infância, correm um risco ainda maior de desenvolver patologias crónicas, como doenças cardiovasculares e cancro.
Mas porquê? Como é que a exposição ao stresse na infância surge como um problema de saúde na meia-idade ou mesmo na idade da reforma? Existem tratamentos eficazes? O que podemos fazer para proteger a nossa saúde e a dos nossos filhos?
Em 2005, quando terminei o meu internato de pediatria em Stanford, não sabia sequer fazer estas perguntas. Como toda a gente, só conhecia uma parte da realidade. Mas depois, por acaso ou por destino, vislumbrei uma história que ainda não tinha sido contada. Começou exatamente no local onde se poderia esperar encontrar altos níveis de adversidade: uma comunidade negra de baixos rendimentos com poucos recursos, escondida numa cidade rica com todos os recursos do mundo. No bairro de Bayview Hunters, em São Francisco, criei uma clínica pediátrica comunitária. Todos os dias via os meus pequenos pacientes a lidarem com traumas e stresse avassaladores; como ser humano fiquei de rastos com isso. Como cientista e médica, consegui levantar-me e comecei a fazer perguntas.
* No original FAST (Face drooping, Arm weakness, Speech difficulty, Time to call 911). FAST pode ser traduzido por RÁPIDO. (N. da T.)
* Horatio Alger Jr. foi um autor americano de romances para adolescentes muito popular no século XIX. Os heróis das suas histórias eram quase sempre crianças desfavorecidas que conseguiam ultrapassar as suas origens humildes e ascender socialmente através do trabalho honesto e da perseverança. (N. da T.)
Imagem de abertura do artigo cedida por Freepik.
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