Com uma visão muito ampla sobre os alimentos, desde o local aos métodos de produção até às formas mais criativas de os transformar, Diogo Noronha fala ainda com o SAPO Lifestyle sobre os desafios entre gerir um restaurante e procurar a sustentabilidade, do trabalho diário com os fornecedores e com as novas e antigas formas de produção.

Durante a pandemia, fechou o Pesca, restaurante em Lisboa onde se dedicou durante três anos a uma cozinha de autor baseada na sustentabilidade, na riqueza do Atlântico e no qual foi distinguido com um “Prato Michelin”.  Em março deste ano, abriu o Ameaça Vegetal, um novo conceito de restaurante que afinca ainda mais a sustentabilidade nos seus pratos.

Durante a pandemia, fechou o Pesca e abriu o Ameaça Vegetal. O primeiro já abordava as questões da sustentabilidade, mas este último aposta diretamente na dieta flexitariana e neste valor. De onde surge este interesse?  

Este interesse começa muito cedo. Aos 17 anos fiz uma mudança radical na minha dieta e tornei-me vegano macrobiótico. Segui esta dieta durante três anos e depois fui vegetariano durante mais dez anos.

Na altura, comecei a cozinhar porque os meus pais me disseram que para poderem aceitar esta mudança radical tinha de me explicar do ponto de vista nutricional, mas também tinha de começar a cozinhar. Nessa altura, era adolescente e estava ligado aos movimentos mais alternativos do punk e do hardcore. A mensagem que me fez mudar a minha dieta tinha por base os direitos dos animais e o impacto ecológico das indústrias.

Entretanto, formei-me em Comunicação Social, praticava yoga e meditação e fui viajar uns tempos para a Índia. Voltei para arranjar mais dinheiro para continuar a viajar e comecei a trabalhar em catering. A segunda vez que voltei da Índia percebi que gostava de investir mais na cozinha.

Curiosamente, fiz a transição numa escola de cozinha em Nova Iorque que era muito de base vegetal, o Natural Gourmet Culinary Institute, que apresenta uma posição muito holística com a medicina tradicional chinesa, ayurveda, cozinha vegana e vegetariana.

Quis crescer como cozinheiro e, apesar de ter a opção na escola de dieta vegana, optei pelo lado mais omnívoro e comecei a trabalhar com a cozinha macrobiótica, que considera o peixe e a carne na alimentação.

Foi uma decisão muito consciente. Um cozinheiro tem um contacto muito grande com a natureza e acabei por transformar a minha relação com os fornecedores, produtores e ecossistemas. E isto é uma tomada de consciência muito grande porque a coerência neste caminho da sustentabilidade é muito difícil.

Depois fui para outras escolas, mas o tema da sustentabilidade e de uma dieta plant-based esteve sempre presente.

É a alimentação que eu pratico até aos dias de hoje e considero estes temas muito urgentes – as escolhas que fazemos todos os dias na nossa alimentação e a nossa pegada ecológica têm consequências muito grandes.

O Ameaça Vegetal abriu em março deste ano. Não é um restaurante convencional nem uma dark kitchen alternativa. Em que consiste este conceito, a quem muitos já chamam de restaurante do futuro? 

Antes de mais, explicar que somos um coletivo, os Food Riders que convergimos numa plataforma em que misturamos vários conceitos. Tudo isto começou em resiliência durante a pandemia com o Damian Irizarry e a Marta Fea, os antigos donos do Pistóla y Corazon, e que criaram o Las Gringas. Tivemos umas conversas, e eu juntei-me com o Ameaça Vegetal. Mantivemos o conceito e introduzimos algumas coisas novas e umas gringas plant-based.

Para já, além da entrega em casa, temos uma cozinha totalmente aberta, onde as pessoas podem levantar os seus pedidos e o food truck, que vai abrangendo algumas áreas de Lisboa.

É um restaurante virtual, mas a experiência não fica posta de lado. Temos o nosso conceito e a nossa marca presentes no contexto digital e as pessoas também podem vir até aqui.

Temos programado um restaurante e a ideia é crescer no sentido de apresentar microconceitos, sempre com a base da sustentabilidade, saúde e comunidade. É tudo muito mais dinâmico, com várias etapas. Temos a nossa web app mas estamos a olhar ainda para outras plataformas mais progressistas.

Há uma vontade de promover uma dieta flexitariana, uma dieta que promove menos quantidade e mais qualidade. Promove uma roda de alimentos mais assente em produtos de origem vegetal e idealmente uma grande redução de proteína animal.

A Ameaça Vegetal é oitenta e tal por cento vegetariana, com algumas opções veganas, muito biológica e muito inteira nos produtos que usamos. Não tenho só a preocupação que seja vegana ou vegetariana, é importante que seja saudável e nutritiva.

A saúde e a sustentabilidade parecem andar de mãos dadas. São complementares... 

Na minha perspetiva, completamente, uma não se deve dissociar da outra, mas algumas pessoas têm dietas veganas mais focadas nos direitos dos animais e na ética alimentar e aí se calhar o facto de ser saudável não interessa tanto. Há muitos alimentos que têm corantes e conservantes para tornar alguns produtos veganos e para mim o mais importante é ser saudável e sustentável.

Neste conceito em que os clientes não estão à mesa, como têm sido as reações? 

O feedback tem sido ótimo. Nós temos esta plataforma digital e através dela vamos ao encontro dos nossos clientes. A reação não é imediata e muitas vezes tem mais que ver com reviews e outros mecanismos nas plataformas que usamos.

Ao princípio sentimos que poderia ser demasiado saudável e eu partilho da opinião que tem de haver um desmame – o mundo está viciado em açúcar.

As pessoas quando provam alguma coisa mais limpa, mais saudável e por vezes mais intensa de sabores, estranham um bocadinho. Depois há aquelas que ficam a pensar e repetem e sentem-se bem. É uma alimentação mais cuidada e atenta. 

Temos cereais, leguminosas, tubérculos, ervas frescas e especiarias. E temos também as crucíferas, como as acelgas, e outros alimentos que as pessoas vão comendo, mas que os isolamos e evidenciamos como ingredientes por si só interessantes e válidos.

Ao início levamos um bocado de tareia dos veganos. Nós não somos vegan, temos é opções vegans. Eu já fui vegano e tenho essa sensibilidade. Mas na proposta há outras coisas.

Que procura e trabalho é feito com os fornecedores para se garantir a sustentabilidade na origem dos produtos? 

O sistema está sempre a dar-nos a volta e tentamos trabalhar ao máximo nas relações que se constroem. A quantidade de plástico e esferovite que nos chega todos os dias... começa logo aí. Por exemplo, o fornecedor da praça mandava-me tudo enroladinho em plástico e eu ligava e perguntava se não haveria outra forma de fazermos isto. Também tinha um produtor de biológicos que me entregava tudo em plástico e isso já mudou.

Tenho essa preocupação com os descartáveis e com o lixo que geramos e o desperdício. Preocupo-me em consumir local e biológico – com ou sem certificação, porque não sou muito rigoroso nisso. O que me interessa é construir relações sólidas em que posso acompanhar processos e estou alinhado do ponto de vista até filosófico com os processos todos.

A sazonalidade é sempre uma abordagem interessante, até pela abundância e maturidade dos produtos. Tenho também vindo a tomar algumas decisões em relação às espécies de peixe.

Em relação ao peixe, que cuidados há na escolha das espécies? 

Nos últimos anos tenho-me vindo a afastar muito do atum e de outras espécies que são fustigadas. São pescadas em demasia e não têm tempo sequer para se reproduzirem e reenquadrarem no ecossistema.

Muitas vezes a indústria, a cultura – ou as duas em conjunto – estão a inclinar as pessoas para um tipo de consumo. Sabe muito bem e é espetacular comer robalos de mar e são peixes que estão fustigados há muitos anos. Por outro lado, há espécies que são abundantes no mar e que podem ser consumidas se as pessoas optarem por essa dieta no sentido de regenerar um bocado os ecossistemas.

Por quais espécies poderíamos optar para contribuir para essa sustentabilidade dos oceanos? 

Na pesca trabalha um grande número de pessoas e tem de haver uma mudança de paradigma. Não pode ser só tirar e não repor.

Mas podemos falar do peixe-azul ou do peixe-pequeno, de cavalas, peixe-porco, peixe-agulha, peixe mini-saia, pimpim...

Também devemos pensar que há aquacultura sustentável e muitas vezes as pessoas associam ao mau. O problema é que há muita aquacultura que produz o que o mercado quer. Depois temos piscinas cheias de peixes e com antibióticos.

A mesma coisa se passa com um porco que come vegetais e que anda no campo, não morre em stress. Certamente quem o quiser comer, comerá um alimento de qualidade, ao contrário de um porco de produção industrial que só come farinhas, com hormonas e antibióticos.

Voltando ao peixe, no outro dia contavam-me que o caranguejo de casca mole, que é pouco consumido em Portugal, aparece na zona de Peniche uma vez por ano e há milhões. Só os pescadores é que comem e é um produto muito interessante.

O cupim-do-mar está a tornar-se uma praga nos nossos mares é mais difícil de se comer, mas na Ásia come-se muito. A textura é culturalmente difícil de introduzir, mas é uma espécie abundante, comestível e está a destruir os ecossistemas. É uma espécie sobre a qual vale a pena inclinarmo-nos, nós chefes, para apresentar às pessoas e tentar introduzir na alimentação.

A alimentação é muito cultural e emocional. No passado, as pessoas consumiam de uma forma muito mais regrada a carne e os produtos de origem animal. Há muitos processos desses tempos, que são culturais, interessantes e que podemos valorizar: comia-se muito mais leguminosas e muitos mais produtos hortícolas.

Sinto que há muitos desequilíbrios e muita desinformação. Eu sinto a responsabilidade, e cada vez mais, de contribuir de uma forma descomplicada. O que me interessa é que as pessoas gostem do que estão a comer e que queiram repetir.

Já no Pesca tínhamos o cuidado de não pregar tanto. Temos um caminho para seguir, mas as pessoas querem ir jantar fora e descontrair e não querem estar sempre a levar com a lengalenga. Eu sou contido nas explicações. Estou disponível para aprofundar os temas, mas não quero estar a dar lições de moral nem tabelas de nutrição. Por aí também é demais, mas é importante que haja alguma disponibilidade para a mudança.

Um consumidor que esteja interessado em fazer essa mudança, que tipo de coisas pode ter em atenção quando escolhe um restaurante para ter uma alimentação sustentável? 

A coerência é difícil, mesmo com muito esforço feito pelos restaurantes nesse sentido, mas deve-se ter atenção à ementa e à escolha de alguns produtos – aqui temos um grande desafio com o tema do abacate, não é muito sustentável, mas entra muito no conceito mexicano e sabemos que é um ótimo produto e muito nutritivo, mas há uma discussão muito grande à volta disto.

Sabemos que no México, o maior produtor de abacate, muitos dos agricultores estão nas mãos dos carteis de droga. Depois, o abacateiro bebe muita água e está-se a plantar no sul do país, que é completamente desconexo quando sabemos que é uma zona com menos água.

Se as pessoas fizerem algumas perguntas, perceberem a origem dos produtos e olharem para a ementa para perceber se é muito pesada na proteína animal ou se tem mais cuidado para ser mais equilibrada.

No fundo, há um lado profissional, o nosso, que temos de criar oportunidades e apresentar alternativas descomplicadas, interessantes e que conquistem o palato.

Diogo Noronha

Fala-se muito na importância da sazonalidade. Mas as pessoas sabem a sazonalidade dos produtos, as colheitas, as zonas, etc.? 

As pessoas não sabem. A indústria encarregou-se de dar tudo a toda a hora e vindo de todas as partes do mundo. Quando não há aqui, há noutro hemisfério.

E depois também há outros desafios de transição profunda, que tem que ver com a temperatura do planeta estar a aumentar. Portanto, as estações estão-se a transformar e vejo isso nos últimos anos com os pequenos produtores. Um produtor que tinha agricultura biológica chegou a ter ervilhas a dar flor em dezembro quando normalmente é um produto de primavera. Depois, há também amplitudes térmicas grandes, que tanto queimam colheitas inteiras como inundam outras.

Nesta tomada de consciência acho que se deve aproveitar mais o local, para consumirem mais próximo com uma cadeia de fornecimento mais curta.

Acho importante desmistificar a questão do preço, acho que a maior parte das pessoas, quando toca a alimentação não pensam no que estão a consumir.

As dietas de transição e de base vegetal permitem ter acesso a produtos sazonais, biológicos, ou de agriculturas integradas ou de transição – que são muito importantes. Não podemos ir só ao produtor pequenino e que tem algo especial, os outros também são muito importantes e é um trabalho que eu gosto de desenvolver. Tem de se ir fazendo aos poucos, as pessoas também se têm de se ir habituando.

Qual o papel dos produtores de transição e da indústria nesta mudança de paradigma da alimentação? 

Há estudos que mostram que, com o crescimento da população e as alterações climáticas, não haverá alimentos para todos. O mundo é muito desigual e são temas complexos e sensíveis e não chega só decidir comprar aos produtores pequenos. Eu como profissional ando sempre nos mercados e à procura do melhor, mas também tenho de estar atento à indústria porque acho que daí é que vem também a mudança.

O desafio também tem que ver com quantidade e como habituar as pessoas a uma proposta. Por exemplo, posso ter ervilhas muito boas, mas se só tenho poucos quilos, levo-as para casa. Gosto de trabalhar com micro estações, coisas pontuais, mas é preciso que a cozinha esteja preparada... aqui, trabalhamos com conceitos e às vezes as produções são tão pequenas que não chegam para o restaurante.

Conheci há umas semanas o conceito de agroflorestal e achei muito interessante – uma floresta, com muitas espécies, alguns com animais e outros não. É alternativo e ambicioso, mas é mais uma floresta do que uma horta. Gosto de andar à procura...

A pandemia veio contribuir para algumas mudanças neste sector? 

Uma das coisas que a pandemia fez foi mostrar ao sistema da restauração o quão frágil é, isto a nível mundial: as margens são muito curtas e os custos muito altos...

Por outro lado, as pessoas têm em média dez receitas e com o confinamento procuraram alternativas e qualidade, umas mais do que outras, mas acreditamos que há uma tendência interessante no consumo de pequenos produtores e outras coisas mais especiais que só eram apresentadas pelos chefs e hoje em dia as pessoas conseguem chegar lá. Por exemplo, na última Páscoa, os pequenos produtores de cabrito não tiveram mãos a medir...

A responsabilidade pela mudança cabe a cada um de nós? 

Cabe a cada um, mas o Governo também tem de fazer algo, tanto na agricultura como nas pescas. É preciso uma mudança total e os organismos públicos e os grandes interesses económicos têm de fazer esta mudança porque as pessoas só por si não têm essa capacidade. Uma fatia muito grande da população não consegue ter os melhores cabazes em casa ou essas preocupações porque está dependente do preço.

No entanto, aos poucos, o paradigma da alimentação tem mudado? 

O paradigma está a mudar, mas há gerações complicadas de acordar. Pessoas à volta dos 60 anos ou têm um filho que lhes chame a atenção ou uma história muito específica ou é complicado. Outra abordagem prende-se com a saúde. Há muitas doenças associadas à alimentação, principalmente o cancro.

Há interesse em produtos locais e de produtores mais pequenos, mas se as grandes empresas não mudarem, estamos tramados. Há muito trabalho a fazer em todas as frentes. O consumidor a mudar está a obrigar as marcas a mudarem.

Há sinais de que há uma mudança de mentalidades e é geracional. Há a necessidade de garantir que o futuro vai ser melhor.