Em 2017, a ONU determinou que todos os 18 de junho seriam celebrados como o Dia da Gastronomia Sustentável, associando-a à responsabilidade ambiental como promotora do desenvolvimento agrícola e produção consciente de alimentos. Do papel para a realidade, estamos a caminhar para esse mundo?

Estamos. Não estou com isto a dizer que já lá chegámos. Mas, estamos num bom caminho. Um caminho que junta vários profissionais e consumidores na tentativa de produzir novas formas de proteína, mais sustentáveis e diferentes daquelas com que crescemos.

Há 15 anos quando se falava em proteína, a mesma era associada, imediatamente, a carne, peixe, leite ou ovos.

Hoje, quando falamos em proteína podemos estar a falar de proteína de insetos [barras energéticas, batidos, snacks, por exemplo], proteína de lentilha d'água, proteína derivada de agricultura celular ou de um dos mais recentes sucessos, hambúrgueres que não sendo de carne, sabem a carne e também “sangram”. São os plant-based meat, a carne vegana.

Veja, por exemplo, o sucesso mundial da Beyond Meat [produtora norte-americana de substitutos de carne à base de plantas], com o seu Beyond Burguer, cujas ações em bolsa estão quase ao preço das do Mcdonalds.

O óleo de palma, tão polémico, devido à desflorestação que provoca, também já viu melhores dias comerciais. Pois, são muitos os cientistas que têm vindo a descobrir e desenvolver alternativas bem mais sustentáveis, como é o caso do óleo de algas, que precisam de menos terra, menos água e menos carbono para produzir mais óleo, quando comparado com outros óleos vegetais.

Também a hotelaria de luxo tem vindo a fazer esforços para reduzir o desperdício alimentar, ao servir doses mais pequenas (o hóspede pode sempre pedir para repetir) e ao cozinhar no momento frente ao hóspede. Estas são duas das muitas estratégias que ajudam a reduzir as sobras alimentares.

De cada vez que mandamos para o lixo uma simples maçã, estamos a deitar fora 70 litros de água e todos os recursos usados para que este fruto nos chegasse às mãos.

Um mundo de desperdício. Entregamos ao lixo mais de mil milhões de toneladas de alimentos por ano

É comum olharmos para estes dias proclamadas a uma escala supranacional e pensarmos que a ação para a concretização dos objetivos está do lado dos governos, das autoridades alimentares, das indústrias, etc. Mas, será que nós, consumidores, não temos um papel equiparável?

Temos e falo disso abertamente no meu livro, [“Sabe o que anda a comer?”, uma edição Arena]. O consumidor não se pode divorciar da sua responsabilidade. É uma responsabilidade diária e partilhada com todos os outros intervenientes do sistema alimentar: governos, escolas, indústrias, distribuidores e hotelaria.

Podemos fazer a nossa parte de forma muito simples. Basta pensar que votamos com o dinheiro das nossas compras. Se eu comprar um produto que não é sustentável, estou a incentivar essa indústria.

Por isso, se quiser apoiar o crescimento de sistemas alimentares sustentáveis, terei de os colocar no carrinho de compras. Muito rótulos já dizem se o produto é ou não proveniente de agricultura sustentável.

De cada vez que mandamos para o lixo uma maçã, estamos a deitar fora 70 litros de água.

E se não tivermos esse rótulo?

Se não existir rótulo ou alegação à sustentabilidade do produto, tenho de passar em revista alguns pontos. O alimento que vou agora comprar é um produto da estação ou foram precisos muitos quilowatt de energia para o fazer crescer em estufa?

É um produto local ou já viajou meio mundo para chegar até mim? Foi produzido por uma pequena empresa familiar ou por uma grande multinacional? Eu prefiro ajudar empresas familiares, o que não significa que não me vendam gato por lebre, mas a probabilidade de fraude é normalmente menor quando estamos mais próximos da produção. Quanto mais longe, mais intermediários, mais oportunidades para praticar a fraude alimentar.

“Não há planeta B, mas consumimos como se o amanhã não existisse” - ambientalista Carmen Lima
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Em casa, e para evitar que a comida se estrague rapidamente, basta aprender um pouco mais sobre segurança alimentar e iremos conseguir prolongar o tempo de vida dos alimentos de forma segura. O desrespeito pela temperatura do frigorífico é uma das principais razões pela qual ainda mandamos tanta comida para o lixo.

Ter mais olhos que barriga, também não ajuda. Nem na carteira nem na gastronomia sustentável.

Por vezes, colocamos mais no prato do que aquilo que conseguimos comer e isto acontece tanto em casa como num restaurante com buffet.

susete estrela

Falta educação alimentar à população em geral?

Tenho de ser honesta. Falta, e muita. Foi por isso que aceitei escrever o meu livro. Queria deixar o meu contributo para melhorar a literacia alimentar do consumidor, de uma forma simples e acessível.

De um modo geral, sabemos mais de futebol e da vida privada de algumas figuras públicas do que dos alimentos que se irão juntar ao nosso sangue.

Mas esta falta de educação alimentar que, felizmente, tem vindo a apresentar uma redução, deve-se a alguma preguiça e também as várias contradições alimentares, que quando não são bem explicadas deixam o consumidor confuso e desmotivado para procurar mais informação.

A educação, honesta, do consumidor, a que não é fornecida pelo marketing alimentar das grandes empresas com interesses financeiras na manipulação de opinião, é uma tarefa que precisa ser feita com alguma urgência. Precisam-se facilitadores da educação alimentar que sejam honestos, sem conflito de interesses e bons comunicadores.

 Se quiser apoiar o crescimento de sistemas alimentares sustentáveis, terei de os colocar no carrinho de compras.

Falar do Dia da Gastronomia Sustentável num mundo que “empacota” e processa a comida não é um contrassenso?

Acho que não, apesar de compreender seu o ponto de vista. Contrassenso é querer continuar a viver num mundo saudável sem a tomada de consciência dos resultados negativos que a tão desejada conveniência acarreta.

Não podemos ignorar que as maiores cidades do mundo recebem diariamente novos habitantes. Estes citadinos vivem numa roda viva sem tempo para nada. Dormem à pressa para acordar num instante. Este tipo de rotina incentiva ao consumo dos alimentos empacotados. Ao reconhecermos esta realidade temos de assumir que alguém terá de fazer alguma coisa para que os alimentos continuam a ser convenientes e simultaneamente mais amigáveis para o nosso planeta.

Este dia assinala uma tomada de consciência que incentiva à implementação de ideias inovadoras. Falamos mais sobre o assunto e é um excelente dia para implementar pelo menos uma nova prática.

“Consumimos de mais. Descartamos de mais. Não se trata já de crescer, mas de sobreviver”. Eunice Maia, o rosto do “Desafio Zero”
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Vivendo numa das maiores cidades do mundo, quando encomendo fruta e vegetais online, peço para que, sempre que possível, não venham embalados e dou sempre preferência aos alimentos de produção local.

Também começamos a ver a recuperação da venda a granel. Como consumidora adoro esta opção,

como engenheira alimentar sei que a rastreabilidade fica mais difícil na venda a granel.

Susete Estrela, ainda no seguimento da pergunta anterior. Continuamos a afastar-nos da origem dos alimentos, da “comida de mãe”, como gosta de mencionar. Considera plausível que no quadro da sociedade moderna possamos voltar a esse mundo de aconchego?

Uma vida feliz e saudável é aquela que consegue encontrar o equilíbrio. Acho que podemos usufruir dos dois mundos. Eu, por exemplo, gosto de me passear entre a novidade e clássico.

Podemos dizer que a indústria alimentar tornou a nossa relação com a comida num impulso ao sabor do marketing e da conveniência?

O consumidor tem a sua quota de responsabilidade no que é hoje oferecido pela indústria alimentar.

Nos anos de 1980 começámos a pedir conveniência para termos mais tempo disponível. Como o consumidor sabia pouco sobre como os seus alimentos eram produzidos, deu espaço a que o marketing alimentar tivesse influência com o objetivo de aumentar as vendas.

Conhecimento é poder. Um consumidor que sabe mais sobre alimentos é um consumidor muito difícil de ser influenciado pelo marketing.

Se dissermos que foi a indústria que modelou a nossa relação com a comida, estamos a assumir que ela tem mais poder sobre o nosso corpo do que nós próprios. Acho que nos esquecemos com frequência do poder que temos enquanto consumidores. E, nos últimos 30 a 40 anos, ensinaram-nos que não nos sabemos alimentar e que para tal precisamos da “mãe indústria”.

Nós somos muito mais autossuficientes do que aquilo que nos fazem pensar. Basta parar um pouco e refletir sobre as alternativas. Elas existem mesmo.

Votamos com o dinheiro das nossas compras. Se eu comprar um produto que não é sustentável, estou a incentivar essa indústria.

Podemos, já hoje, alimentar mais de sete mil milhões de seres humanos sem uma indústria, agricultura e pesca massificadas?

Essa é a questão do momento e o tema de reunião de muitos líderes mundiais. Seria preciso ter toda a informação do mundo, que não tenho, para lhe poder responder acertadamente. No entanto, acho que antes de pensarmos em produzir mais, devemos criar dietas alimentares que exijam menos do planeta Terra. Ter “certeza alimentar” para sete mil milhões de pessoas, depende também de um pilar muito importante, a Segurança Alimentar. Tema muito esquecido pelo consumidor em geral.

É honesto assumirmos que aumentamos em 70% a produção agrícola mundial nos próximos 30 anos, apontando simultaneamente à sustentabilidade ambiental?

Se temos mais pessoas iremos certamente encontrar mais soluções. Veja por exemplo a quantidade de pessoas que está a reduzir o consumo de proteína animal, para reduzir assim o impacto negativo no planeta. Não precisamos, todos, de deixar de comer carne, pois a carne faz parte da cultura e dieta de muitas pessoas. Mas, não precisamos de comer em quantidade tão grandes como se via nos anos de 1980 e de 1990 e ainda se vê em algumas dietas.

Em 1931, Winston Churchill previu que em 50 anos a carne seria produzida em laboratório. Já naquela altura ele achava que não fazia sentido gastar tantos recursos naturais para criar um frango e dele aproveitar apenas o peito e as asas. E, note só onde estamos hoje. Oitenta e oito anos depois já produzimos carne, sem matar animais. Um processo mais barato, mais rápido e mais amigo do ambiente.

A busca por fontes alternativas de proteína continua a decorrer e trará resultados positivos. São cada vez mais as fontes alternativas de proteína vegetal.

“Antes de pensarmos em produzir mais, devemos criar dietas alimentares que exijam menos do planeta Terra”

Pondo a questão de outra forma, podemos fazer chegar a comida a tantos seres humanos respeitando a segurança alimentar?

Se não houver segurança alimentar não haverá certeza alimentar. A segurança alimentar tem de vir sempre em primeiro lugar. De que serve ter alimentos em quantidade suficiente e com bons valores nutricionais se depois estiver contaminado de forma física, química e microbiológica? A segurança alimentar não é negociável e vem sempre em primeiro.

Sabemos mais de futebol e da vida privada de algumas figuras públicas do que dos alimentos que se irão juntar ao nosso sangue.

Ainda neste âmbito, há que louvar o papel da moderna indústria nos avanços da segurança alimentar?

Sim. A indústria alimentar, num trabalho integrado com cientistas de várias especialidades, tem vindo a reduzir, em muito, os casos de contaminação alimentar. No entanto, como as bactérias, e os outros tipos de contaminantes, não respeitam fronteiras, um problema local pode tornar-se global em apenas 24 horas. Os avanços foram muitos. Mas, agora temos novos contaminantes emergentes. É um trabalho contínuo e intenso.

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Hoje queremos disponibilidade alimentar todo o ano. Estamos a perder a sazonalidade do produto. Há quem veja neste aspeto uma expressão positiva da globalização e crescimento de economias. Há quem olhe para a enorme pegada ambiental deixada e para o domínio de algumas economias face às demais. Onde situa a Susete Estrela a sua opinião?

Eu sou fã do “pense global, mas consuma local”. O consumo local implica ingerir alimentos da época que são sempre mais nutritivos, mais baratos, mais saborosos e mais amigos do ambiente.

Estamos reféns de interesses maiores, internacionais, nomeadamente financeiros, políticos, sectoriais, quando tocamos na questão da segurança alimentar?

Deixei algumas ideias sobre este tema no meu livro. Pessoalmente, não me sinto refém, porque faço escolhas informadas e bem conscientes. Relembro que conhecimento é poder. Um consumidor informado é um consumidor difícil de fazer de refém. Já um leigo, é sempre mais fácil de manipular.

susete estrela

Falar de sustentabilidade alimentar e gastronómica é também referir questões críticas, a da perda e do desperdício alimentar. Há razões objetivas, por exemplo no que toca à segurança alimentar, para deixarmos nos campos tantos alimentos?

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O facto da “fruta feia” não estar fortemente presente nos mercados não se deve a questões de segurança alimentar. É uma questão de perceção de qualidade. Existem cadernos de encargos com diretrizes bem específicas sobre a classificação da fruta e dos legumes. Uma maçã, por exemplo, pode ser de categoria Extra, categoria I ou categoria II.

Para lhe dar um exemplo concreto, é aceitável que uma maçã de categoria II tenha alguns defeitos de forma, de desenvolvimento e de coloração, mas tem de manter as suas características. Uma maçã de categoria I, pode ter o pedúnculo danificado, mas tem de o ter, enquanto a de categoria II pode abdicar de um pedúnculo, desde que não haja deterioração de epiderme. São pequenos detalhes deste género que definem a classificação dos hortofrutícolas e se decide o que segue ou não para comercialização. Quanto mais bonito o fruto, mais apelativo, logo mais vendável.

Se houver cada vez mais consumidores a pedir “fruta feia”, acredito que se podem criar cadernos de encargos para tal e disponibilizar para venda, como já se observa em algumas cadeias de supermercados.

Um consumidor que sabe mais sobre alimentos é um consumidor muito difícil de ser influenciado pelo marketing.

Finalmente, gostaria de deixar uma mensagem de esperança, ou assume o seu pessimismo face ao nosso futuro global?

Felizmente sou uma pessoa positiva e acho que as soluções nos chegam sempre na hora exata. O caminho faz-se caminhando e é a andar que aprendemos a correr. Acredito que temos cada vez mais pessoas interessadas em aprender sobre o que comemos e isso ajuda a que surjam cada vez mais e melhores soluções.

O consumidor pede e a indústria ajusta-se. O que falta, por vezes, é comunicação entre ambos. É importante salientar que, no final, quem tem o poder é quem compra, ou seja, todos nós, os consumidores. Por isso, tal como na segurança alimentar a sustentabilidade do planeta é um assunto que diz respeito a todos. É sempre possível fazer melhor e contribuir mais e de forma positiva.