
Para além da sua dimensão material, os objetos encerram também uma componente intangível. Neles residem memórias, gestos, práticas quotidianas e, se os quisermos considerar no seu conjunto, oferecem-nos uma leitura de época. Olhemo-los, pois, como mediadores entre o passado e o presente.
Como bem sintetiza a contracapa do livro O Estado Novo em 101 Objetos, uma edição da Lua de Papel, “se lhes limparmos o pó dos dias e os observarmos com atenção, seremos capazes de ouvir as histórias que têm para contar”.
Foi precisamente sobre esta qualidade intrínseca aos objetos que a jornalista Fernanda Cachão — setubalense de nascimento, lisboeta por adoção e editora da revista Domingo do jornal Correio da Manhã — se debruçou durante cinco anos.
A capa do presente título não desmente os seus propósitos, tanto pelo grafismo como pelas palavras que o legendam: “uma montra da ditadura portuguesa”. Uma montra que, longe de qualquer saudosismo patriótico ou visão sectária, cumpre antes um objetivo repetidamente sublinhado pela autora: “mostrar porque não se deve repetir”.
Quanto à qualidade dos objetos que “convida” a desfilar no seu livro, Fernanda Cachão oferece-nos dois exemplos logo na contracapa: “as refeições servidas na primeira classe da TAP em baixelas de porcelana Vista Alegre e Secla representam uma época e a sua classe dominante – mas servem também de pretexto para evocar a criação da companhia aérea nacional ou recordar o facto de o ditador só ter andado de avião uma vez”. Por sua vez, “o telegrama com que Adolf Hitler felicitou o presidente do Conselho pelo 10.º ano de governo remete-nos para as relações de Portugal com a Alemanha nazi, a Itália de Mussolini e a Espanha de Franco”.
O conjunto de objetos que passa pela escrita e análise de Fernanda Cachão constitui, nas suas palavras, uma síntese “das diversas esferas da sociedade portuguesa naquelas décadas”. E é, de facto, um elenco amplo, à altura de um regime que se prolongou por mais de 40 anos. Aqui se apresentam textos breves e diretos ao tema, como o inventário da casa de Salazar, o manual da PIDE, o anúncio de um contracetivo, o teclado HCESAR, o livro de Maria Lamas, a revista Menina e Moça, o croqui da Casa do Portugal dos Pequeninos, o mapa “Portugal não é um País Pequeno” ou a estátua das mulheres gratas a Salazar.
Um verdadeiro itinerário pelo Estado Novo — “corporativista, autoritário e autocrático —, a partir da seleção de objetos paradigmáticos de um regime civil de matriz católica, que se perpetuou não apenas pela repressão, mas também através de uma pesada máquina burocrática e de um complexo artifício legislativo que tocava todas as esferas da vida dos portugueses”. Assim escreve a autora na já referida introdução [a qual justamente intitula “A não repetir”].

Entregou cinco anos de trabalho à pesquisa e escrita deste livro. Como nasceu a proposta para este projeto editorial? Como sabemos, Roger Morhouse escreveu O Terceiro Reich em 100 Objetos.Houve a intenção de escrever uma obra semelhante?
O livro Terceiro Reich em 100 Objetos foi, de facto, publicado em Portugal. O projeto para o livro O Estado Novo em 101 Objetos surgiu de uma conversa com o meu editor, o José Prata, em torno daquele outro livro. Houve o comprometimento do editor de avançar com a ideia de fazer uma edição portuguesa. Para mim foi, de imediato, um grande desafio. Desde o início, percebi que não poderia ser um livro igual ao Terceiro Reich em 100 Objetos. O regime nazi impactou a nível global. A ditadura portuguesa foi um fenómeno interno, nosso, confinado às fronteiras do país, sem o peso global do Terceiro Reich. Não se pode comparar.
Acresce que, embora a ditadura portuguesa comece e acabe com os militares e pelos militares, não é uma ditadura militar.
E dura muitos anos, quase cinco décadas, num país pequeno, com uma população pobre e uma elite pequena. A minha decisão de procurar e selecionar objetos capazes de contar essa história revelou‑se, desde logo, um verdadeiro desafio. Foi a minha escolha. Poderia ter incluído mais peças ou suscitado outras interpretações, mas mantive o critério original, fiel ao contexto e às especificidades do Estado Novo. Por exemplo, descobri que era uma ditadura de papel, muito burocrática.
Há uma miríade de objetos que associamos ao período tratado no livro. Que critérios imperaram na seleção dos objetos que leva para a obra?
Procurei objetos que fossem símbolos inequívocos da natureza e da ação do regime, não pretendia uma caderneta de cromos. Roger Moorhouse, autor de o Terceiro Reich em 100 Objetos, é mais sucinto nas descrições. Quis que cada objeto contasse uma história, mais do que aquilo que ele significou naquele tempo ou a sua mera descrição, desde as peças de propaganda, como o cartaz dos “Dez Mandamentos” do Estado Novo, até aos artefactos do quotidiano, como a braçadeira das eleições presidenciais do General Norton de Matos. Quis que cada objeto falasse por si e apontasse para algo que o transcendesse.

Não obstante entregar este livro a todos os que o queiram ler, dedica a escrita do mesmo a algumas pessoas em concreto. Uma escolha que traz uma mensagem. A quem o dedica?
Dedico-o aos meus pais e, por conseguinte, à geração dos meus avós e, por extensão, a todos os portugueses que cresceram naquele país anterior ao 25 de Abril, mas também aqueles que nasceram após a Revolução.
Porque aconselho todos aqueles que olham para aquele passado e dizem que “naquele tempo é que era bom”, que visualizem os filmes captados no período logo após o 25 de Abril, para que vejam as condições em que as pessoas viviam. Aquela população era pobre. Não poderia ser de outra maneira. A modernidade chegou mais cedo a toda a Europa do que ao nosso país. Isto, para percebermos que alguém travou o nosso desenvolvimento durante quase 50 anos.
Na introdução ao livro escreve que não quer fazer deste “engraçado e sectário”. O que quer dizer exatamente com isto?
Esta não é, de facto, uma obra partidária, nem tal foi a minha intenção. É o trabalho de uma jornalista sobre um período histórico. Essa jornalista procurou abordar esse período com os preceitos que acompanham a sua profissão, ou seja, a isenção. Evidentemente, qualquer jornalista, olha para a realidade de uma determinada maneira; não há isenção absoluta, mas esta obra procura não ser sectária.
Não há também qualquer julgamento de valor: eu demonstro e não interpreto aquilo que conto. O regime tem inspiração fascista. Aliás, há documentos consultáveis que revelam que o Estado Novo se inspira em regimes fascistas, nomeadamente no italiano, de Benito Mussolini. Na época, há portugueses que vão a Itália para observar como funcionava o regime italiano. Após a Segunda Guerra Mundial, o mundo alterou-se e há, de facto, uma maior atenção do regime aos tempos modernos, de acordo com, evidentemente, toda a arquitetura ideológica de Salazar e, depois, de Marcello Caetano.
A escrita deste livro obrigou-a a um confronto direto com fontes do regime. Que tipo de documentação consultou?
Consultei todos os materiais a que consegui aceder: livros e documentos publicados na época e jornais, apenas para citar alguns. Visitei a Torre do Tombo, a Fundação Mário Soares, cujo espólio é excecional. Estive em museus, bibliotecas universitárias e privadas, e conversei com algumas pessoas que estão na área.

Em entrevista anterior referiu que cresceu com uma “sensação de desconforto” face ao regime, alimentada por histórias familiares. Como é que esse legado pessoal influenciou a escrita e a seleção dos objetos?
Cresci numa família onde não havia a luta política. No fundo, os meus familiares diretos representam os portugueses daquela época. Há que dizer que a luta política contra o regime se fez com os comunistas. Mas, em casa, ouvia histórias dos meus avós sobre as dificuldades que enfrentavam no dia a dia. Na realidade, esta é também a história dos avós das pessoas da minha geração, nascidas na década de 1970. Neste sentido, o livro trata de uma história comum e que é muito identificável pela minha geração e anteriores. Provavelmente, as pessoas mais jovens, agora na vida ativa, não têm essa perceção. Há uma memória esquecida.
Escreve na introdução ao livro que não quis “procurar objetos pessoais das figuras do regime”. Abriu, contudo, uma exceção com o chapéu de Oliveira Salazar...
Procurei objetos que fossem paradigmáticos do regime. Não quis incluir objetos que personificassem figuras do Estado Novo, para não dar a impressão de um livro com um objetivo contrário àquele já aqui explicado. Abri, de facto, uma exceção, a do chapéu de Salazar, porque este objeto é ilustrativo do controlo da imagem que se fazia daquele homem. Salazar encomendou o chapéu de feltro preto a uma das principais lojas de Londres [a Lock & C.o. Lda. Hatters] para a inauguração da Exposição do Mundo Português, em 1940. Em si, a aquisição de uma peça de roupa, para um momento especial, não tem em si nada de marcante. O que acontece é que o Presidente do Conselho, o fundador do regime, era apresentado de uma outra forma, que contrariava esta ostentação. Acresce que Portugal tinha uma forte indústria chapeleira.

Também não quis incluir objetos das colónias. Não queria abrir uma nova frente de investigação?
No livro, as colónias vão sendo referidas, mas aquilo que ali se passou foi algo à parte. As colónias viviam dinâmicas próprias. Hoje, são Estados independentes. Na época, o quotidiano destes territórios foi muito diferente daquele vivido em Lisboa ou no Porto. Percebi que incluir artefactos coloniais exigiria um outro livro.
A investigação para o livro terá aberto portas a objetos que muitos desconheceríamos. De entre aqueles objetos que se revelaram há alguns que queira destacar?
Deu-me particular satisfação levar alguns objetos para o livro, como a braçadeira dos apoiantes do General Norton de Matos, quando este se candidatou à presidência da República. Um outro objeto que incluí no livro é a máquina de costura, porque a maioria das pessoas tinha uma casa.
A máquina de costura Oliva era paradigmática da forma como o regime via a condição feminina. Um regime que subtraía aos cidadãos a oportunidade de se realizarem em quase tudo. Por exemplo, num discurso da década de 1930, Salazar referia que o trabalho da mulher fora de casa “desagrega o lar, separa os membros da família e torna-os estranhos”. Contudo, a máquina de costura permitia à mulher ter um modo de vida, mesmo que fosse dentro de casa. Muitas raparigas, a partir dos 10 ou 12 anos iam aprender a costurar. De repente, a máquina “fala” sobre a forma como a profissão de costureira era encarada, também se assume como uma forma de subsistência económica, assim como nos conta o percurso de um empresário fantástico, António Pinto de Oliveira.

O livro também nos conta a história de objetos que revelam a feição mais obscura do regime. Algum em particular a tocou negativamente?
Sim. Deparei-me com algo inesperado, uma carta de um pide para o chefe de gabinete de Salazar, que fala de Maria Ângela [Maria Ângela Vidal Campos], a segunda mulher que esteve mais tempo presa por motivos políticos. Senti um arrepio profundo ao ler aquela carta. O pai de Maria Ângela dirigira uma carta à PIDE a descrever a sua preocupação face à tortura e às condições desumanas em que a filha vivia. Temia não voltar a vê-la livre e revelava a intenção de fazer queixa junto de outras entidades. Por sua vez, o PIDE, antecipando possíveis problemas, defendia a sua situação ao chefe de gabinete de Salazar. Por exemplo, refere que gastaram muito dinheiro em médicos, porque “a reclusa em referência é uma das mais indisciplinadas e incorretas”. Percebe-se que aquela mulher foi torturada inúmeras vezes. Essa correspondência foi das descobertas mais dolorosas. Esta carta era paradigmática do espírito do regime. Até o pide tinha medo e, no fundo, sabia que o pai da presa tinha razão.
Falar daquele regime é também referir alguns dos símbolos do poder. De entre aqueles que leva para o livro qual lhe parece mais marcante?
Por exemplo, o cartaz dos “Dez Mandamentos” do regime [o Decálogo do Estado Novo], a cartilha do salazarismo, publicado em 1934 pelo Secretariado da Propaganda Nacional e criado pelo historiador João Ameal. Também destacaria o projeto da Constituição de 1933 e o cartaz de Almada Negreiros, também de 1933, que apela ao voto no plebiscito constitucional [ali se lê, “Nós queremos um Estado forte! Votai a Nova Constituição”].
Gostaria que este livro fosse usado nas escolas também ele como objeto de identificação de uma época?
Sem dúvida, seja este ou outro livro que revele às pessoas, de forma menos académica, como era aquele quotidiano. Mostrar às novas gerações como era viver sob um regime autoritário ajuda a valorizar a democracia.
Comentários