Ao fim de mais de 20 anos de políticas públicas de luta contra a violência doméstica é verdadeiramente decepcionante a constatação da divulgação dos resultados do Observatório de Mulheres Assassinadas relativos ao ano 2024. O número de mulheres assassinadas e mulheres vítimas de tentativas de homicídio por questões de género aumentou!
Foi anunciado um número de 20 mulheres assassinadas por questões de género e 53 mulheres vítimas de tentativas de femicídio.
Mais uma vez, e a par do sucedido dos anos anteriores, os crimes de femicídio foram cometidos por homens contra mulheres, o local do crime privilegiado foi a casa de morada de família e sabe-se também que a violência dos agressores perante as vítimas já era conhecida, seja por familiares e/ou pessoas conhecidas, seja pelas próprias entidades policiais por força de denúncias do crime de violência doméstica anteriormente efetuadas. E como resultado de mais um ano de carnificina contra mulheres temos mais crianças órfãs de mãe!
Esta realidade, além de assustadora, é profundamente vergonhosa! Estes números representam a incapacidade do sistema, no seu global, no combate ao crime de violência doméstica! Não podemos continuar a acreditar que basta denunciar a prática do crime de violência doméstica e que as situações abusivas ficam, dessa forma, acauteladas! Está à vista a total desadequação e insuficiência do trabalho desenvolvido nesta área.
O crime de violência doméstica é um flagelo com uma dimensão e uma complexidade extremas que exigem uma consciência social e envolvimento de toda a sociedade no combate ao crime. Não podemos continuar ano após ano a ouvir os números de mulheres assassinadas e achar que estamos a fazer um bom trabalho. Podemos e devemos fazer muito mais!
Não é mais aceitável a possibilidade de qualquer pessoa trabalhar na área da violência doméstica sem especialização. Saber como agir e quando agir de acordo com as particularidades do ou dos casos concretos é absolutamente crucial! Não podemos arriscar e cair no erro de menosprezar sinais de violência que vêm mais tarde a revelar-se em mais mortes de mulheres. Portanto, urge, sim, dar formação especializada a rigorosamente todos os profissionais que interagem com as vítimas, o que tem de passar a assumir um cariz obrigatório para todos os profissionais, priorizando-se os que trabalham na linha da frente com as vítimas.
A especialização vai permitir uma atuação precoce, ao nível da identificação mais apurada das situações de violência existentes por questões de género através dos diversos sinais e evidências de risco. Pelo que, denunciada a prática do crime, tem de haver avaliações de risco rigorosas, capazes de identificar e valorar os fatores de risco existentes, pois identificando-se o nível de risco e eventual risco de letalidade pode-se prever a continuação da conduta criminosa por parte da pessoa agressora e contê-la através de medidas judiciais provisórias, denominadas medidas de coação, que podem e devem ser tomadas na pendência dos processos-crimes.
Portanto, a formação de equipas especializadas fará toda a diferença na identificação do crime e suas especificidades, na identificação do risco existente e na contenção dos agressores, o que resultará numa aplicação eficaz da lei já existente e na construção de uma sociedade mais segura e muito mais respeitadora do Direitos Humanos das Mulheres.
Um artigo de opinião da advogada Ana Leonor Marciano, especialista em Direitos Humanos, violência de género, violência doméstica, Direitos das crianças.
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