Mas em abril, durante uma acalorada e longa assembleia municipal, Smith, uma assistente social de 57 anos, assistiu horrorizada ao momento em que Edgewood, no condado de Santa Fé, votava a favor da proibição do envio pelo correio das amplamente utilizadas pílulas para indução do aborto.

Os políticos locais por trás da medida estavam "embriagados com a atenção, a admiração e a adulação desses MAGA (acrônimo do movimento "Make America Great Again" - Torne a América Grande Novamente - do ex-presidente republicano Donald Trump) que se dizem cristãos", contou Smith.

Smith fundou o grupo "We Call 4 A Recall" (Convocamos uma revisão) para reunir assinaturas com o objetivo de bloquear a norma municipal até que seja submetida a um referendo popular.

O único que se opôs ao projeto na assembleia municipal, Filandro Anaya, declarou à AFP que foi chamado de "lixo" e alertado de que "iria para o inferno".

Após a Suprema Corte dos Estados Unidos anular o direito constitucional ao aborto em 2022, com uma decisão que deixou os estados livres para definir as suas próprias leis sobre o tema, o Novo México - governado pelos democratas - consolidou-se como um dos estados mais sólidos no amparo ao procedimento devido ao seu forte arcabouço legal.

Mas para contornar essa proteção, a comunidade rural de Edgewood, com pouco mais de 6.000 habitantes e na sua maioria republicana, seguiu os conselhos de advogados do estado vizinho do Texas que redigiram há três anos uma lei radical antiaborto chamada de "Lei do Batimento Cardíaco".

Um desses advogados, Jonathan Mitchell, agora representa Donald Trump num processo na Suprema Corte que procura excluir o ex-presidente (2017-2021) das cédulas eleitorais por causa do seu alegado envolvimento na violenta invasão do Congresso por uma multidão dos seus apoiantes, em janeiro de 2021.

As autoridades de Edgewood "foram enfeitiçadas por esses dois cavalheiros do Texas gritando todas essas maravilhosas coisas que eles acreditam que podem fazer", afirmou Smith.

A ameaça ao direito à interrupção da gravidez continua latente graças a esse projeto que está especificamente destinado a se estender por todo o Novo México.

"Catastrófico"

Assim como a lei do Texas, a regulamentação de Edgewood é projetada para incentivar os cidadãos a aplicá-la individualmente com ações legais contra qualquer vizinho que receba pílulas abortivas.

Edgewood inspira-se numa lei federal obsoleta de há 150 anos, que se tornou a nova ferramenta daqueles que se opõem ao aborto nos Estados Unidos.

A norma proíbe o envio de material "obsceno, impudico ou lascivo" como pornografia ou qualquer coisa "destinada à prevenção da conceção ou à obtenção do aborto".

Embora a lei quase não tenha sido aplicada em um século, Mitchell disse aos governantes de Edgewood que pretendia apresentar processos suficientes em várias jurisdições para gerar "uma divisão de poderes que obrigará a Suprema Corte dos Estados Unidos a intervir".

"Isto proibiria de forma efetiva o aborto em todo o país, ou o dificultaria muito mesmo em estados liberais como Nova Iorque, Califórnia e até mesmo no Novo México", disse Mitchell.

Se a mais alta instância judicial do país determinar que essa lei deve ser seguida à risca, seria "mais catastrófico" do que o previsto para o movimento a favor dos direitos reprodutivos.

As pílulas, que não representam riscos significativos para interromper gestações de até dez semanas, são usadas em metade dos abortos nos Estados Unidos.

"Cruzada"

Após duas tentativas fracassadas de realizar um referendo, Edgewood pretendia votar sobre o tema no próximo mês. Mas as autoridades locais não aprovaram a cédula proposta, então ainda não há datas previstas.

Ken Brennan, presidente de Edgewood e a favor da proibição, mostrou-se "desconfiado" com o atraso.

"Acredito que vá tudo diretamente para o gabinete da governadora. Não acho que queiram que o referendo aconteça. Porque se acontecer, as pessoas votarão a favor, o que não ficará bem para a governadora, que é muito a favor do aborto", explicou.

Porém, para muitos em Edgewood, a resolução não é da competência do governo local.

Frank Coppler, um promotor de Edgewood, advertiu aos governantes que eles não tinham "a autoridade necessária para adotar tal ordem". No entanto, seguiram o conselho de Mitchell.

"Nunca nos meus 50 anos a fazer este trabalho vi algo assim", declarou.

Para Marcia Smith, Edgewood tornou-se "um peão" na batalha contra o aborto que divide o país. Visitantes de cidades progressistas vizinhas até boicotam os seus restaurantes e festivais, exemplificou.

Marcia culpa as poderosas igrejas locais que considera "mais organizações políticas" do que locais de culto religioso.

Filandro Anaya, o funcionário municipal contrário à regulamentação, disse à AFP que "o único efeito desta norma foi dividir a comunidade".

Reportagem de Andrew MARSZAL