
Há objetos que, por mais pequenos que sejam, conseguem carregar séculos de história, poder e simbolismo. O batom é um deles. Mais do que maquilhagem, é uma espécie de talismã, seja em modo discreto ou mais gritante. Mas sempre com algo a dizer.
Basta um tubo — de ouro, acrílico ou plástico reciclado — para nos lembrarmos de como um simples gesto pode mudar tudo: levantar um dia, marcar uma posição, abrir caminho. Pintar os lábios é muito mais do que um retoque estético. É um ritual, por vezes invisível, de resistência, autoexpressão ou puro deleite.
Ao longo dos séculos, o batom acompanhou transformações sociais, guerras, revoluções, modas e plataformas. Cada cor carrega uma história e cada época teve o seu tom.
Desde as civilizações mais antigas, os lábios tingidos acompanharam as mulheres – e, por vezes, os homens – como bandeiras de identidade, resistência, vaidade e desejo. Dos pigmentos triturados na Mesopotâmia ao matte infalível do Ruby Woo da MAC, a trajetória do batom cruza-se com a própria história das mulheres: com os seus silêncios, as suas revoluções, e os momentos em que, com um só gesto, disseram tudo.
Do carmim dos Faraós à realeza de Isabel I
A viagem começa há mais de cinco mil anos, na Suméria, onde tanto homens como mulheres já usavam pigmentos naturais — nomeadamente pó de pedras semipreciosas — para colorir os lábios. Não era apenas uma questão estética: acreditava-se que esta prática invocava proteção espiritual e projetava poder. O mesmo se passava no Antigo Egito, onde maquilhagem era sinónimo de status social e um ritual. Cleópatra, estratega política e ícone de sedução, preferia misturas elaboradas de carmim extraído de cochonilhas, escaravelhos triturados e pigmentos vegetais.
Com o advento da Idade Média na Europa, o batom — e praticamente tudo o que não fosse rezar ou obedecer — passou a ser visto com desconfiança. A Igreja, com a sua visão moralista, associou o uso de maquilhagem, e em especial do vermelho nos lábios, à bruxaria, à luxúria e ao pecado. Ter os lábios pintados podia ser sinal de possessão demoníaca ou, pior ainda, de vaidade, o que era um verdadeiro escândalo.
Mas nem todas as mulheres se deixaram intimidar. No século XVI, Isabel I de Inglaterra fez do batom vermelho o seu selo real. A sua imagem — rosto esbranquiçado com pó de chumbo e lábios carmim intensos — tornou-se tão icónica quanto estratégica. Num tempo em que as mulheres no poder eram olhadas de lado, ela construiu uma estética autoritária e inconfundível. O contraste dramático entre a palidez e o vermelho vivo não era apenas tendência: era um statement visual que dizia, sem pedir licença, quem mandava.
Revolução em tubo
O batom como o conhecemos hoje só começou a ganhar forma no final do século XIX, quando a indústria da beleza deu um salto decisivo. Em 1884, a casa francesa Guerlain revolucionou o mercado ao lançar o primeiro batom em stick comercialmente disponível, uma verdadeira inovação que permitia transportar a cor nos bolsos ou carteiras com muito mais facilidade do que as pomadas ou pós usados até então. Mas foi só em 1923 que a verdadeira revolução aconteceu, com a invenção do mecanismo de torção — o famoso tubo que sobe e desce —, que tornou o batom portátil, prático e, acima de tudo, acessível. Esta pequena mudança mecânica mudou tudo: o batom deixou de ser artigo de luxo reservado às elites para se tornar companheiro inseparável das mulheres comuns, uma "arma" diária de confiança e autoafirmação.
Mas o batom não se ficou pela estética e tornou-se um símbolo político e social. Em 1912, as sufragistas norte-americanas usaram o batom vermelho como sinal de rebeldia e emancipação, desafiando as convenções que queriam as mulheres submissas e sem voz. O gesto, simples na aparência, carregava um grande peso: era uma forma visível de reivindicação de direitos e liberdade.
Durante a Segunda Guerra Mundial, o batom vermelho transformou-se numa ferramenta de resistência e moral. Elizabeth Arden, uma das pioneiras da indústria da beleza, distribuiu batons às tropas femininas, reconhecendo o poder psicológico do gesto: um sorriso pintado com cor vibrante que, num contexto de dor e incerteza, ajudava a manter a autoestima e a coragem. Diz-se que Hitler detestava o batom vermelho, vendo-o como símbolo de desafio e poder feminino e, convenhamos, isso já é razão mais do que suficiente para qualquer mulher usá-lo.
Do glamour ao grunge (e de volta outra vez)
Nos anos 1950, era impossível dissociar o batom do glamour cinematográfico. O ecrã era dominado por bocas esculpidas, cuidadosamente delineadas, que se tornaram imagens de marca das divas da época. Marilyn Monroe com o seu vermelho perfeitamente desenhado, Elizabeth Taylor com lábios tão intensos quanto o olhar, e Audrey Hepburn, que elevou o rosa pálido a símbolo de elegância. Todas transformaram o batom num acessório de identidade. Não se tratava apenas maquilhagem, era uma narrativa. O batom definia personagens, estados de alma e classes sociais. Ser mulher, ou ser estrela, era também saber usar o baton certo.
Depois vieram os anos 1970 e 1980 — e a ordem foi oficialmente desafiada. Cores como verde esmeralda, roxo metálico, azul eléctrico ou preto punk invadiram as ruas e os palcos, numa mistura entre disco, glam rock e revolução pessoal. O batom deixava de ser apenas sensual para ser político, artístico, até provocador. David Bowie usava-o. Grace Jones também. E milhões seguiram-lhes o exemplo. Era a década em que os limites da beleza eram alargados e reinventados. E o batom, sempre presente, era também uma peça dessa transformação.
A década de 1990 trouxe um novo regresso ao essencial. Madonna resgatou o vermelho absoluto com força iconográfica com o famoso Russian Red da MAC a tornar-se parte do seu estilo. Ao mesmo tempo, as passarelles e as séries televisivas (sim, falamos de "Friends") popularizaram os tons nude, os castanhos-rosados e os terracotas. Era o minimalismo em forma de maquilhagem: menos brilho, mais atitude. O batom fundia-se com o tom natural dos lábios, mas com um toque polido, numa beleza sem esforço que, na verdade, exigia precisão.
E então chegaram os anos 2000. O milénio abriu as portas ao brilho desmedido, ao gloss espelhado, ao batom líquido de longa duração que prometia resistir a beijos, copos, refeições e até sismos emocionais. Os lip glosses tornaram-se um fenómeno pop por direito próprio. Quem se lembra de Paris Hilton sabe: não era preciso batom vermelho quando se tinha um Juicy Tube da Lancôme na carteira. Um brilho adocicado, quase comestível, aplicado com o dedo ou diretamente do tubo, que simbolizava a inocência daquela década. O revivalismo recente destes glosses, trazido pela própria Lancôme 25 anos depois, confirma: mesmo os excessos dos anos 2000 têm agora estatuto de ícone.
A era da precisão e da performance
Nos anos 2010, o mundo da beleza entrou numa era de definição e precisão. As redes sociais — com destaque para o Instagram e o YouTube — elevaram a maquilhagem a um estatuto de performance. Foi também a década do reinado absoluto dos batons líquidos matte: pigmentos de longa duração, acabamento aveludado e aplicação com aplicador de precisão cirúrgica. Marcas como Anastasia Beverly Hills, Kat Von D e Huda Beauty definiram o padrão, mas foi Kylie Jenner que transformou o matte nude acastanhado num fenómeno global com os seus Lip Kits, gerando filas virtuais, falsificações em massa e, claro, milhões em vendas.
Ainda assim, o movimento não era apenas estético. O batom matte representava uma atitude: controlo, definição e autonomia. Era o gesto calculado da mulher que sabia o que queria — e que não precisava de retocar os lábios a cada meia hora. A beleza tornava-se uma ferramenta de autoexpressão, de forma meticulosa.
Mas foi também nos anos 2010 que o discurso sobre diversidade ganhou corpo e, com ele, o batom tornou-se mais inclusivo do que nunca. Em 2017, Rihanna lançou a Fenty Beauty com um manifesto claro: maquilhagem para todas as peles, todos os tons, todos os géneros. O Stunna Lip Paint em “Uncensored”, um vermelho puro que assenta em qualquer tom de pele, tornou-se num novo clássico. Era democrático, ousado, com a chancela da cultura pop, mas com substância.
Na transição para os anos 2020, surgiu um cansaço dos extremos. O brilho voltou com os glosses, mas com uma estética mais refinada. O batom voltou a querer parecer-se com lábios reais. O exemplo mais claro foi o Pillow Talk de Charlotte Tilbury, o nude rosado universal, com acabamento acetinado, usado por noivas, celebridades, mães e filhas. Uma cor que é quase uma "não cor", mas que funciona como um amplificador da beleza natural sem se dar por ele.
Ao mesmo tempo, o batom perdeu o seu monopólio como protagonista da maquilhagem. Durante a pandemia, os olhos assumiram o centro do palco (máscaras assim obrigaram). Mas o regresso do batom foi quase cerimonial. Quando os rostos voltaram a respirar ar livre, o gesto de aplicar batom foi sentido como libertação.
Hoje, entre batons refillables, fórmulas híbridas, opções veganas e acabamentos que vão do invisível ao vinil, o batom continua a adaptar-se, a desafiar, a resistir. Porque, em última instância, pôr batom é assumir controlo sobre a própria narrativa e essa é uma tradição que não sai de moda.
Os 15 batons mais icónicos de sempre:
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