Paulo Morais faz das palavras que tece nesta conversa um fluir tão sereno como os gestos que emprega na preparação dos seus pratos. Descrição e delicadeza viajam ao sabor do menu japonês Kaiseki que prepara. Uma versão vegetariana dos menus de degustação mensais que o chefe de cozinha apresenta no restaurante Kanazawa, porta número 3 da Rua Damião de Góis, em Algés. Nas mãos de Paulo Morais, com 30 anos de carreira, também coabita a técnica, muita. Sobre a bancada de preparação dos alimentos, há solenidade, organização e um labor que subtrai o desnecessário à confeção dos pratos.

Um despojar que é extensível à sala. O balcão em forma de L arruma oito lugares, dispostos a curta distância do chefe de cozinha. Os finais de dia de Paulo Morais constroem-se assim. Um mestre que recebeu de outro mestre.  Paulo acolheu o restaurante – diz-se o japonês mais exclusivo de Lisboa - das mãos do chefe de cozinha japonês Tomoaki Kanazawa. O nipónico que trabalhou em Portugal como cozinheiro oficial do embaixador japonês, acabaria por abrir no nosso país, em 2016, este Kanazawa. Um ano mais tarde Tomoaki deixou Portugal por razões pessoais. A Paulo Morais coube receber em legado o restaurante. Uma responsabilidade que, no primeiro momento, trouxe sobressalto ao chefe de cozinha português. Mas “uma vez dada a palavra a um japonês, não se volta atrás”, como conta nesta entrevista ao SAPO Lifestyle.

No momento de assumir as rédeas deste restaurante, pesou sobre Paulo a responsabilidade de acolher um templo da cozinha japonesa. Ao homem que trabalhou em casas como o Midori, no Hotel Penha Longa, o Bica do Sapato, o QB Essence, o Umai ou o Rabo d´Pêxe, coube uma herança de peso. Paulo tinha, então, de transportar a cozinha Kaiseki, praticada no Kanazawa, para as mãos de um português. Esta é uma mesa tradicional nipónica que equivale à alta cozinha ocidental. Neste caso firmemente ligada à sazonalidade e aos produtos frescos.

Na cozinha japonesa do mestre Paulo Morais vive sensibilidade e bom senso

Hoje, Paulo assume de corpo inteiro os seus menus. Conta-nos que gostaria de ter mais tempo. Talvez quando isso acontecer, surja aquela estrela que o universo da cozinha almeja. “Para já não está nos meus objetivos”. Um entrevistado que nos recorda o início da carreira, a má experiência num restaurante, o sentir a discriminação sobre uma colega. A cozinha japonesa menos bem tratada (“não é possível ter um bom restaurante de cozinha japonesa a vender muito barato”), as viagens, a pouca paciência de alguns jovens que enveredam pelo mundo da cozinha, também arrolam na conversa.

Um tête-à-tête ao sabor de um menu inteiramente vegetal e onde, em abono da verdade, não se faz notar a falta da proteína animal.  Na couve-flor grelhada com beringela assada e fumada e um vinagrete de romã; no tártaro de legumes, com puré de batata-doce e abóbora; no consomé com alga e dentro de uma caixinha de madeira, com organização imaculada, repleta de vegetais servidos delicadamente, chega-nos a essência deste Kanazawa.

Isto num cardápio que muda mensalmente e que conta com fornecedores com nomes que nos inspiram liberdade, como “Lugar do Olhar Feliz”.

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Aos 19 anos o Paulo entra no mundo da cozinha e não morreu de amores por este. Em que momento percebe que tinha aí um futuro? 

Foi quando entrei para o restaurante Furosato na praia do Tamariz. Na altura que pensei: ´oK afinal gosto de cozinha e consigo identificar-me com este mundo`.

Certo, mas há razões para, antes, não sentir empatia pela cozinha…

Sim, foram várias coisas, detalhes que me puseram de pé atrás, como a organização, os métodos de trabalho. Uma série de pequenas coisas não me incentivaram muito. Uma pessoa sai da escola com muitas teorias, cheia de conceitos sobre organização, sobre tudo em geral e não me pareceu que aquilo, naquele caso, estivesse ali a acontecer. Houve outro choque. Estamos a falar de 1989-1990, época em que fui estagiar para um restaurante com uma colega e senti que havia uma grande discriminação. Ali, não se encarava com bons olhos a entrada de uma mulher na cozinha. Quando acabámos o estágio e nos fizeram proposta de trabalho, eu iria ganhar mais do que ela, com a mesma experiência, o mesmo conhecimento. Não acho que me tenha destacado em relação à minha colega. Pareceu-me discriminatório.

Fui estagiar para um restaurante com uma colega e senti que havia uma grande discriminação. Ali, não se encarava com bons olhos a entrada de uma mulher na cozinha. Quando acabámos o estágio e nos fizeram proposta de trabalho, eu iria ganhar mais do que ela, com a mesma experiência, o mesmo conhecimento.

Foi também por essa época que o Paulo teve contacto com a cozinha nipónica. Houve logo química?

Foi o cheiro na cozinha, a organização, o método de trabalho deles e o chefe. Foram fatores determinantes. Não é que o chefe do restaurante anterior não fosse bom, mas este chefe teve a preocupação de me explicar tudo no início e, no final, fez as limpezas comigo. Fiquei surpreendido. Exigia, mas brincava connosco, estava connosco. Eramos uma equipa muito jovem e quando me disseram que iria trabalhar na chapa de metal [teppanyaki], à frente do cliente, achei aquilo tudo muito estimulante.

Na cozinha japonesa do mestre Paulo Morais vive sensibilidade e bom senso

Esta é uma cozinha que, a par com o respeito pelo ingrediente, exige muita organização. O Paulo considera-se um homem organizado?

[Risos] Tenho dois lados, o Paulo, aqui, no restaurante e o Paulo em casa. Em casa, não sou tão organizado como sou aqui e a família queixa-se um bocadinho. Contudo, sabem que tenho este lado organizado e metódico porque já me viram a trabalhar. Gosto de ter as coisas sempre organizadas. O trabalho flui muito melhor.

Vemos o Paulo a trabalhar e é quase uma encenação, como se estivesse num palco. Há de exigir muitas horas de preparação e ensaio.

A preparação acaba por ser ensaio porque, hoje, quando estava a preparar a refeição já a estava a ensaiar. Infelizmente não saem muitos menus vegetarianos e, quando tal acontece, tenho de antecipar muito bem que vegetais vou utilizar, como os vou combinar. Ou seja, quando estou a fazer as preparações já estou a pensar como é que os pratos vão evoluir.

No fundo, trata-se do culminar de um trabalho árduo que o Paulo empreendeu ao longo dos anos. Viajou para o Japão, contactou de perto com a arte culinária. Presumo que tenham existido momentos mais difíceis, aqueles em que se pensa, estou esgotado…

Nestes 30 nos de profissão, o momento mais traumatizante foi quando tive de fechar o Umai e demorei algum tempo a assimilar que tinha fechado. Entre eu fechar o Umai e começar a trabalhar no Rabo d´Pêxe, passaram perto de dois anos. Entretanto, voltei a dar aulas, tive o projeto do restaurante-escola do sushi, fiz consultoria, estava sempre ativo. Nesse período de um ano e pouco, quando comecei a ter acesso outra vez à matéria-prima, adorava. Era sempre o primeiro a chegar e a tratar do peixe porque é isso que me dá alento para continuar. Prefiro muito mais estar numa cozinha a fazer as coisas do que estar a planear ementas, a fazer fichas técnicas.

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Na primeira vez que vai ao Japão o que mais o marcou?

O mais emocionante na visita ao Japão, foram os japoneses em si, ou seja, a maneira como encaram o trabalho e o levam a sério, as horas de trabalho, o esforço, a dedicação. Fez-me perceber o quão limitados, às vezes, nós estamos. Eles são muito focados e trabalham muito. Recordo-me de um subchefe a cortar sashimi. As fatias eram todas iguais, certíssimas. É preciso muito treino e prática, mas também muito foco.

Para um chefe de cozinha ocidental deve ser complicado conseguir ombrear com essa obstinação pela perfeição.

Sem dúvida e eles admitirem que ainda não estão lá, que têm mais para aprender. Ora, isto mostra um pouco qual é a mentalidade deles.

Nestes 30 nos de profissão, o momento mais traumatizante foi quando tive de fechar o Umai e demorei algum tempo a assimilar que tinha fechado. Entre eu fechar o Umai e começar a trabalhar no Rabo d´Pêxe, passaram perto de dois anos.

A partir dos anos de 2000, o sushi tem um grande incremento em Portugal. O Paulo, como pioneiro, como viu e vê a forma como está a ser tratada esta vertente da cozinha japonesa?

Em 2000, os restaurantes se sushi começaram a abrir no nosso país. Entretanto, a partir de 2010 começaram a surgir como cogumelos e assim continua a ser. No início achei ótimo, julguei que iria haver mais exigência, mais conhecimento, a qualidade subiria. Não aconteceu isso, de todo. A qualidade veio a decair. Pensei: ´pelo menos vão aparecer muitos fornecedores`. Apareceram e, de facto, produtos que encomendava ao Japão, passaram a estar mais próximos, por exemplo em Espanha, onde encomendava mensalmente. Depois, surgiram fornecedores em Portugal. Mas também aqui a qualidade diminuiu. Em vez dos produtos bons que vinham do Japão, passámos a ter produtos próximos, mas com pouca qualidade, provenientes de outros países.

Na cozinha japonesa do mestre Paulo Morais vive sensibilidade e bom senso

Todos estes restaurantes para sobreviverem vão baixando a qualidade. Por exemplo, na compra de dez sacos de arroz, um é grátis. Para estabelecimentos inseridos em cadeias de restauração é benéfico, para mim não que tenho, aqui, oito lugares. Também pensei que com a nossa descoberta da cozinha japonesa viessem mais profissionais, com novas experiências e que aprenderíamos uns com os outros. Acabou por ser um bocadinho ao lado, tocando sempre na questão do baixo custo e na mínima qualidade possível.

O cliente que vem aqui ao Kanazawa percebe a qualidade. Mas num restaurante médio talvez não aconteça. Repare, não é possível ter um bom restaurante de cozinha japonesa a vender muito barato. Não pode ter peixe de qualidade e isso sem falar dos restantes ingredientes.

Ou pode estar em causa a própria saúde dos clientes porque estamos a lidar com uma matéria-prima frágil…

Em relação a alguns peixes de qualidade mais duvidosa, sem dúvida.

Por falar em riscos, já provou Fogu [peixe venenoso, preparado para consumo no Japão]?

Sim. Foi bom, é realmente diferente, mas em termos de peixe, não é mais espetacular do que uma barriga de atum, um lírio ou robalo, na época deles. Agora, que sentimos a adrenalina e o bater do coração, sem dúvida.

Na cozinha japonesa do mestre Paulo Morais vive sensibilidade e bom senso

Todos os cozinheiros têm a sua assinatura própria. Qual é a do Paulo Morais?

O mais transversal é o respeito pelo produto, o gosto pelo produto e o empenho que ponho nas coisas que faço. Ao longo destes anos de carreira, há uma coisa que sempre fiz e continuo a fazer, como as formações das minhas equipas. Sou cozinheiro há 30 anos e dou formação há 20 anos, sempre estive ligado a isso e sempre tive muito gosto em poder fazer as duas coisas ao mesmo tempo. No fundo, transmitir conhecimento e tornar as coisas mais acessíveis a todas as pessoas.

Hoje existe muita premência em mostrar e fazer algo. Os jovens, por vezes, não têm paciência. Encontra nos jovens que forma essa impaciência?

As pessoas querem de imediato mediatismo. Mas há muitos jovens que percebem que é um caminho longo e que se faz, se vai construindo. Recentemente, contei quantos alunos passaram pelas minhas mãos e, entre estes, os que têm estrela Michelin e não só, são vários. Isto não só pelas minhas mãos, mas também pela Escola Superior de Hotelaria do Estoril, onde sou professor, e são vários. O Gil Fernandes, da Fortaleza do Guincho, e o Filipe Manita, chefe de pastelaria que trabalha com ele; o João Alves, o braço direito do Alexandre Silva, também foi meu aluno. No Penha Longa está o Pedro Almeida. A Sara que é pasteleira também foi minha aluna, assim como o Diogo Rocha que ganhou a primeira estrela Michelin. Depois, se for analisar dentro das equipas hão de haver muitos mais.

Ao longo destes anos de carreira, há uma coisa que sempre fiz e continuo a fazer, as formações das minhas equipas. Sou cozinheiro há 30 anos e dou formação há 20 anos, sempre estive ligado a isso e sempre tive muito gosto em poder fazer as duas coisas ao mesmo tempo.

O Paulo e o seu Kanazawa já foram apontados como bons candidatos à estrela Michelin…

De momento não estou focado nisso. Muitas pessoas que aqui chegam e que já tenham comido em restaurantes Michelin perguntam porque não tenho uma estrela. Na realidade ainda não me propus a isso. Com a abertura do Tsukiji, as remodelações de equipas, senti que não estava pronto. Para a estrela Michelin penso que ainda me falta um ou outro detalhe que considero importante. No momento em que me sinta mais focado aqui, quando entrar em velocidade de cruzeiro, sim. Só quando puder estar aqui mais tempo é que me sentirei mais à vontade.

Temos estado à conversa sobre a cozinha japonesa, mas na realidade o interesse do Paulo pela Ásia vai além daquele país. Aliás, publicou um livro com outras gastronomias orientais.

Comecei a dar formação da cozinha japonesa na Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril. Mais tarde, o responsável do curso perguntou-me: ´achas que conseguias tornar o curso um bocadinho mais asiático? ´. Respondi que ia tentar. Deu-me carta branca para explorar as cozinhas asiáticas e dar a formação. À medida que ia descobrindo mais sobre a cozinha chinesa, coreana, até mesmo indiana, percebi que, afinal, o Japão ia buscar as referências ali. O Japão tem uma cozinha única, mas com influências dos vizinhos. O tofu, a soja, o miso, tudo isso vem da China e aí começou. Com o tempo, em termos pessoais, começou a ser mais interessante pesquisar, não só para aprender mais sobre a cozinha japonesa, mas também para conhecer as outras cozinhas. Há muitas variações indeléveis. Por exemplo, os coreanos apesar de terem uma cozinha muito semelhante à japonesa, utilizam o picante de uma forma que os japoneses nem pensam utilizar.

Na cozinha japonesa do mestre Paulo Morais vive sensibilidade e bom senso

O Paulo viaja com frequência à Ásia. Sente, aí, que a cozinha no seu todo vai no bom caminho ou começa a sentir-se a globalização e a perda das raízes culinárias?

Acho que que passa um pouco o que aconteceu no Japão nos anos de 1980/1990, com a americanização, a entrada dos fast food. Eles perderam um bocadinho da sua identidade, mas depois voltaram outra vez e perceberam que há muita gente a apreciar a sua dieta alimentar. Voltaram às raízes e perceberem o que é bom e o que não o é. No caso de outros países, considero que, apesar de perderem um pouco da sua identidade, nos meios rurais ela é forte. Por exemplo, na Tailândia vemos que na província há essa preocupação com a identidade e o querer fazer as coisas bem feitas.

Quando cozinha em Portugal faz algumas conceções e adaptações ao nosso palato?

A única coisa que ajusto é o picante. Percebo que o picante é uma coisa muito pessoal. Há pessoas que, por exemplo referem o wasabi e dizem que não. Mas explico-lhes que este não tem nada a ver com aquilo que costumam comer. Tem acontecido os clientes gostarem e saírem daqui a gostarem de wasabi. Quando o Kanazawa abriu veio com este intuito, o de alertar as pessoas para a cozinha japonesa, perceberem as nuances e o que é importante.

Muitas pessoas que aqui chegam e que já tenham comido em restaurantes Michelin perguntam porque não tenho uma estrela. Na realidade ainda não me propus a isso.

O Paulo recebe o Kanazawa como legado de Tomoaki Kanazawa. O que é que sentiu nesse momento?

Quando o Tomoaki Kanazawa falou comigo, disse-lhe logo que sim. Só depois é que me caíram as várias fichas e pensei: ´ eu não tenho capacidade”. Mas depois pensei: ´a partir do momento que dás a palavra a um japonês não voltas atrás´. E avancei. Progredi, mas foi uma grande adrenalina, um grande desafio. Quando fiz o primeiro estágio no japão, estava ainda no Penha Longa, ao regressar queria logo os Kaisekis no hotel. Mas ninguém os pedia. Toda a gente pedia as opções da carta, ou pediam sushi. Passado uns tempos deixei de os fazer. Quando vim para aqui, deu-me bastante gozo poder voltar a fazer isso e foi pensar: ´yes é mesmo isso que eu quero´.

Na cozinha japonesa do mestre Paulo Morais vive sensibilidade e bom senso

O que define a cozinha Kaiseki que aqui pratica?

Define-a os produtos locais, a sazonalidade, as tradições japonesas, os costumes, os sabores mais simples, tendo em conta que são menus longos. Tento que cada prato recrie a natureza. Isso é motivante.

Também é um desafio mudar todos os meses o menu…

Tenho clientes que aqui chegam e noto que ficam contentes com os detalhes introduzidos nos menus, que realmente estamos a usar os alimentos daquele mês. É estimulante perceber que estamos a fazer alguma coisa de bom.

O Paulo gosta de cozinha portuguesa?

Sim, gosto de muitas coisas. Gosto de bacalhau, do cozido à portuguesa e dos nossos enchidos.