Na frescura da manhã, um restaurante assemelha-se a um palco despido de atores. Os adereços estão todos em cena, mas falta-lhes o ânimo dos intérpretes. No caso de um restaurante que só serve ao jantar, as 11 da manhã assemelham-se ao dito palco. Está lá tudo, uma cozinha soberba, aberta para a sala, sete mesas cenicamente dispostas no espaço, madeiras na decoração, espicaçadas na cor pelos apontamentos a negro das paredes. Não falta uma oliveira, disposta à entrada da sala. Os atores chegam aos poucos. Acenam ao encenador, numa breve reunião matinal. Por hora, tudo são preparativos em mais um dia no restaurante Loco, casa que convive com a proximidade da Basílica da Estrela, em Lisboa. Alexandre Silva, o chefe de cozinha, ou se quisermos o encenador, aguarda-nos.

Vamos conversar, perceber como se trilha o caminho para a estrela Michelin sem abdicar de princípios (Alexandre tem inclusivamente um manifesto de princípios) como a portugalidade, o apego aos territórios, aos nossos produtores. Isto sem desmerecer na técnica e no legado dos mestres da cozinha. Alexandre pede desculpa pelo discurso, quando vagueia. Está desculpado.

Na próxima hora há-de falar das forças primárias na cozinha: como o fogo (na génese do restaurante que abrirá em dezembro deste ano), das irritações (como desmerecermos as nossas raízes), da infância, do músico e fotógrafo que espreitam sobre o ombro do cozinheiro; da mulher, Sara, com quem partilha o negócio; da comida que prepara com afeto para a filha; do legado dos pais e avós. A avó, a pessoa que entregava à mesa, onde se sentava a meninice de Alexandre, uma cabidela de coelho que espevita memórias.

Na primeira pessoa, o chefe de cozinha que se apresentou aos portugueses no programa Top Chef, da RTP, que encontrou a sua assinatura no restaurante Bocca, que se apaixonou pelo Alentejo no Marmóris Hotel & Spa e que recebeu a estrela Michelin, em 2016, pouco tempo depois de abrir as portas do Loco.

Alexandre Silva - Memórias, apegos e irritações do chefe de cozinha que sonhou ser fotógrafo de guerra
Alexandre Silva com a sua equipa no restaurante Loco.

 Alexandre, há muito que aguardamos a abertura do seu novo restaurante, Fogo. É desta?

O Fogo está pronto. Estamos na iminência de abrir. Vamos começar a formar as equipas e o objetivo é estarmos de portas abertas no início de dezembro. Foram dois anos de obras. Por vezes, havia que destruir para refazer. Passados seis meses, aquilo que pensaste já não é o que queres. Sou uma pessoa picuinhas [risos].

Esta empresa é minha e da minha mulher, a Sara, somos sócios, e este é um projeto que nunca pensámos abrir. Se me dissessem há cinco anos que a empresa ia ter 75 colaboradores, eu não acreditaria. Mas a verdade é que, agora, iremos ter um projeto com a dimensão do Fogo, uma casa à nossa imagem. O Loco é um restaurante que concebi para ser feliz. Mas, por exemplo, não tenho um bar para receber os clientes, em suma para fazer outro tipo de coisas. No Fogo quero ter isso tudo. Foi difícil encontrar um espaço com capacidade para um restaurante com 450 m2, com áreas técnicas enormes. Sou uma pessoa que está na ação dentro do restaurante, ao lado da minha equipa. E também quero dar condições às pessoas que trabalham connosco. No final, se der para pagar as contas e deixar os colaboradores felizes, estou bem.

Fogo. A palavra alude a algo primordial, primeiro. É isto que procura, aproximar-nos das origens?

É exatamente isso. Quando pensei no projeto, há uns quatro anos e meio, não era viável lançar-me nele. Nós, portugueses, temos uma grande cultura de cozinha de fogo e não falamos nisso. Como se fosse vergonha. Sobre os grelhadores de rua que assam as sardinhas, o frango no churrasco. E ninguém fala da técnica que está na base e somos exímios a dominar essa técnica. Podem dizer-me que os japoneses são espetaculares com o grelhador do carvão, os escandinavos também, mas, na realidade, todo o mundo tem essa ligação primordial ao fogo.

Nós, portugueses, temos uma grande cultura de cozinha de fogo e não falamos nisso. Como se fosse vergonha.

De certa forma, com o fogo também nos quer aproximar da civilização. Partilha a ideia de que cozinhar os alimentos fundou as bases da civilização?

O fogo marca muita coisa. Tem poder destrutivo, mas também é um dos elementos da vida. Fascina o homem. É tão intenso que não conseguimos explicar porque nos deixa assim. O mesmo se passa com o oceano. Podemos olhá-lo todos os dias sem que nos percamos o fascínio. E, repare, o ser humano farta-se rapidamente das coisas. Certo dia, alguém no "Chefs on Fire" [evento anual em torno dos comeres no carvão] me perguntava se é preciso muita técnica para dominar o fogo. Respondi que é preciso instinto. Tens de ser quase parte daquilo, daquele domínio do fogo e dos elementos, se está a chover, se está vento se há humidade no ar.

Quando pensei no restaurante Fogo, foi exatamente para trazer isso de volta. Já pensei muito no assunto. Quantas vez nos dizem, “nunca mais comi uma sopa como a da minha avó, a minha mãe faz igual e não sai da mesma forma”. Pois, mas a mãe faz no fogão a gás e a avó fazia a mesma sopa no forno a lenha. O fumo modifica tudo, é como o sal, para além de ser quase antisséptico para algumas coisas, como os enchidos. Se eu estiver a cozinhar numa panela de ferro e o alimento tiver alguma gordura, vai absorver esse sabor do fumo.

Alexandre Silva - Memórias, apegos e irritações do chefe de cozinha que sonhou ser fotógrafo de guerra
Restaurante Loco: Sete mesas e um único menu, com 17 momentos. créditos: Paulo Barata

Um “picuinhas” vai pensar, inclusivamente, nas lenhas que usa?

Até encontrar as lenhas adequadas foi um trabalho difícil. Quisemos trabalhar com lenhas de árvores de fruto, comprá-las na altura da poda, guardá-las e conhecer os seus comportamentos. Saber onde ia buscar as lenhas de pereira, de macieira, de pessegueiro, de sobro, de azinho. Termos aquele fumo específico para fumarmos um peixe ou carne específicos, assar um cabrito, fazer o arroz, assar uns carabineiros, abrir umas amêijoas, como se faz numa Vila de Amêijoas [tradição de comunidades piscatórias algarvias]. Para nós, no restaurante, o protocolo não tem grande importância, se o serviço se faz pela esquerda, se pela direita. O que nos importa é a proximidade com o cliente, que este se sinta em casa, que a comida seja boa, que o serviço de vinhos seja competente.

Nas origens também estão os alimentos. Hoje vivemos afastados dessa raiz e com isso subtraímos-lhe valor. Sente que em cada prato faz a ligação entre esse princípio e os comensais?

Sinto uma grande responsabilidade sobre os ombros. Temos uma obrigação quase didática, de aqui mostrar o que enquanto país temos esquecido. É como perder um amigo porque somos preguiçosos, porque não mantemos o contacto. Somos preguiçosos para fazermos uns quantos quilómetros para irmos comer "aquele" prato.

Os cozinheiros também saem da escola e querem fazer um caminho muito fácil não querem conhecer os seus limites. Procuram um caminho de ascensão muito rápido, não pensando nessas coisas. Precisam de ter líderes que os saibam guiar, conhecer, ver a importância da comida regional, dos produtos regionais portugueses, de comprá-los nos seus territórios, porque todos ganhamos com isso. O contrário, é desmerecer a nossa identidade. E essa está no produto. Quando comes algo e consegues, com isso, transportar-te para casa. Isso passa-se em Portugal e em regiões do mundo onde deixámos alguma coisa.

Um dos traços mais fascinantes que temos é percebermos que os portugueses conseguiram influenciar a cozinha de todo o mundo. Vais à Tailândia comer e eles só têm as malaguetas porque os portugueses as levaram para ali. Ou seja, aquela cozinha nunca seria como é, não fosse isso. É como se nunca tivessem existido os Beatles. A música hoje não seria igual.

Sinto uma grande responsabilidade sobre os ombros. Temos uma obrigação quase didática, de aqui mostrar o que enquanto país temos esquecido. É como perder um amigo porque somos preguiçosos.

Na prática, temos por via desse esquecimento desinvestido nos territórios?

Ainda há pouca gente a pensar assim. Se não tiveres os valores bem definidos, não vais conseguir chegar lá. Digo a quem trabalha comigo que aquilo que ninguém nos pode tirar são os nossos valores. Infelizmente, há pessoas que não estabelecem essas bases, o que veio dos pais, dos avós. Depois isso traz esquecimento das coisas. Não tenho nada contra a globalização, mas deixámos quase de ser portugueses.

Contudo, em Portugal, estamos a crescer muito em termos gastronómicos, porque encontramos hoje profissionais com mundo, com manifestos escritos para as suas cozinhas. Trabalhei com uma pessoa, o chefe de cozinha Fausto Airoldi que me dizia “Alexandre, tudo o que tirares da tua profissão, tens de dar em dobro”. Eu, felizmente, tirei muito da minha profissão.

Alexandre Silva - Memórias, apegos e irritações do chefe de cozinha que sonhou ser fotógrafo de guerra
créditos: Paulo Barata

Há um momento em que já depois do seu curso de cozinha/pastelaria, decide ir estudar Gastronomia Molecular, no Instituto Superior de Agronomia. Fascina-o tudo aquilo que está nos alimentos? Não vemos mas influencia-os?

Tinha de perceber. Isto aconteceu quando o Joaquim Figueiredo andava em Portugal [encontra-se, desde 2004, radicado em França]. Certo dia vou assistir a uma conferência com a presença dele e da Paulina Mata [cientista, coordenadora de um mestrado sobre ciências gastronómicas]. E fez-se luz para uma série de perguntas. Porque é que a massa leveda? Porque é que aos ovos, se acrescentares açúcar, vão cozer as gemas? Ou seja, a cozinha não é só senso comum, não acontece por acaso, há ciência. Tudo isto me começou a fascinar tanto que me chegou a prejudicar.

A prejudicar?

Também já fiz muito mal à cozinha portuguesa. Fiquei fascinado com o espetáculo da cozinha molecular. Era miúdo e os miúdos gostam de espetáculo. Esqueci aquilo que os meus avós me passaram e entrei por um caminho na cozinha que nem sequer era português. Estava fascinado com o Adriá [Ferran Adrià, o chefe de cozinha catalão que liderou o restaurante El Bulli] e tudo aquilo que ele mudou na gastronomia. O tempo era outro, encomendávamos um livro e esperávamos três meses. Hoje é tudo rápido, as modas deixaram de existir. Tudo é replicado muito rapidamente.

Também já fiz muito mal à cozinha portuguesa. Fiquei fascinado com o espetáculo da cozinha molecular.

Certo, mas depois há um momento de remissão por parte do Alexandre?

Sim. Também trabalhei com as pessoas certas. O meu pai ensinou-me que não tenho de cozinhar nas melhores casas, mas com as melhores pessoas. Foi sempre o que fiz, mesmo ganhando mal, trabalhando muitas horas. Tinha sede de sabedoria. Até que chego ao Bocca, o primeiro restaurante onde fazia o que queria e tinha a minha cozinha e a minha equipa.

Antes, como subchefe, por vezes não me identificava com a cozinha dos chefes. Mas também não tinha de me identificar, tinha de fazer o que me pediam, a parte técnica e depois pôr em produção, fazendo a ligação entre o chefe e os cozinheiros. Ser subchefe é a posição mais ingrata dentro de uma cozinha.

Ao Bocca, ainda cheguei com uma 'asinha' de cozinha molecular. Mas sentava-se à mesa e pensava em tudo, nos talheres, onde é que descansavam na mesa depois de utilizados. E muitas coisas deixaram de fazer sentido.

Alexandre Silva - Memórias, apegos e irritações do chefe de cozinha que sonhou ser fotógrafo de guerra
Bacalhau confitado com puré de alho negro. Prato da carta do restaurante Loco. créditos: Paulo Barata.

Por exemplo?

Porque é que havia de perder três horas a fazer um esférico com pimento se, no final, vai saber a pimento? Durante seis anos da minha vida começo a depurar e chego ao Loco.

Se olharmos para a expressão latina, "Loco" significa “no lugar”. Para o Alexandre que lugar é este?

Aqui só me importa o produto. Em tempos tive um prato preto com um brócolo e um molho. As pessoas pensavam, “este tipo está doido”. Pois, para mim é mais do que o brócolo, é a origem das coisas, de onde vem a semente, quem a semeou, quem plantou o brócolo, quem o apanhou, quem o trouxe aqui. Aquele brócolo colocava o restaurante todo em contexto.

Tudo o que servimos aqui, sabemos a origem. Hoje em dia, a pessoa vai ao supermercado e tem de escolher entre uma curgete portuguesa e outra espanhola. Esta última custa menos 3 cêntimos e é a escolhida. Não nos importa a origem, nem como se deu a produção da curgete. É só um exemplo, mas podemos extrapolar para muitas outras realidades.

Ainda sobre o produto. Atualmente vivemos num movimento de mimetismo de conceitos e de frases-feitas, com a sazonalidade, a proximidade ao fornecedor. Nem sempre isso é um facto. Não corremos o risco de ter uma ficção?

Uma coisa é teres um projeto com sete mesas e dás uma média de sete jantares por noite e aí consegues fazê-lo, indo à origem, selecionando. Agora, se tens 60 lugares, se nunca paras, se nunca fechas, duvido que a sustentabilidade se faça a 50%. Claro que é importante alertarmos as pessoas para estes desafios. Mas, de que me vale dizer que o faço se, na realidade, não o faço? Os conceitos repetem-se uns aos outros. Vais ao centro de Lisboa e, em três restaurantes seguidos, a ementa é igual. É como a parábola do pescador que apanha muito peixe, o outro está ao lado e não apanha nada. O que é que ele faz? Vai tentar pescar onde está o outro. Mas não apanha nada. Falta-lhe a técnica.

Quando criei o Loco fiz um manifesto, com os 12 mandamentos da minha cozinha e nunca me desviei daí. Se alguém vem com uma ideia diferente eu digo "isso não encaixa".

Os conceitos repetem-se uns aos outros. Vais ao centro de Lisboa e, em três restaurantes seguidos, a ementa é igual.

O Alexandre afirma o Loco como um projeto orgânico. É viável abrir um restaurante com estas premissas e responsabilidade e, mesmo assim, torná-lo um projeto viável?

É viável. Tenho três restaurantes e podíamos pensar que os outros sustentam este, que é só um capricho. Não é bem assim, os outros não sustentam o Loco. Este é muito sustentável.

Quando abri pensei muito nisso: como abrir um "fine dining" pequeno? Se tiver um restaurante com 50 lugares, certamente não irá ficar lotado todos os dias. Aqui, tenho uma lista de espera com dois meses o que me dá uma margem para planear com muito tempo.

Abri sem carta. Avisaram-me “olha o guia Michelin”. Mas, claro, não podia ter carta, porque me iria reduzir o preço médio por pessoa. O que ia fazer? Vender pratos principais a 40 ou 50 euros para equilibrar as contas? Tinha dois menus e, mesmo assim, passado algum tempo tinha quebras. Aí, tive de criar o espaço aqui ao lado.

Alexandre Silva - Memórias, apegos e irritações do chefe de cozinha que sonhou ser fotógrafo de guerra
Carolina Pereira, Chefe de Pastelaria. Agência Amouse bouch

Um espaço onde o Alexandre criou uma área de investigação e desenvolvimento…

Sim, com uma equipa a criar, não só produtos, pratos e esquemas de trabalho novos, mas também para pensar como reduzir o desperdício. Por exemplo, o que fazemos com os quilos de borra de café que deitamos fora? Uma massa de café que parece quase um chocolate, ou com o mesmo produto fazer um vinagre. Há muitos caminhos. O que podemos fazer com os talos das cenouras, as cascas das batatas, as raízes dos coentros? Durante muito tempo andámos a desenvolver coisas que utilizávamos nos nossos menus. Algumas coisas não faziam sentido e acabámos por as abandonar. Muitas sim, e deixámos de ter muito lixo orgânico. Mas continuava. E então decidi que iríamos ter um só menu. Neste momento não temos desperdício na nossa cozinha.

Um menu com 17 momentos. Que história nos conta o Alexandre aí?

O menu fala muito sobre as minhas viagens, por onde passei e vê-se muito isso nas técnicas, mais Orientais, mais Ocidentais. Um dia, alguém me disse que “isto não é cozinha portuguesa”. Fez-me confusão e deixou-me a pensar. Mas, aquilo que fazemos aqui é cozinha portuguesa, só usamos os nossos produtos e vês o ADN português. De que me serve ir a um restaurante de cozinha regional alentejana que me apresenta uma carne de porco à alentejana, se a carne é espanhola, as amêijoas são vietnamitas e os coentros, calhando, também são espanhóis?

O menu fala dos nossos fornecedores, dos produtores e da nossa relação com eles, que justifica um ensopado de borrego ou a presença dos cuscos transmontanos. Fazíamos, por exemplo, uma cabidela de cuscos com coelho.

De que me serve ir a um restaurante de cozinha regional alentejana que me apresenta uma carne de porco à alentejana, se a carne é espanhola, as amêijoas são vietnamitas e os coentros, calhando, também são espanhóis?

Aliás, o Alexandre gosta muito de cabidela...

Sim. A cabidela era, e digo isto com pena, uma tradição familiar da parte materna. A minha avó, de dois em dois domingos, juntava a família toda em torno de um arroz de cabidela com coelho que ela própria criava e matava. Em miúdo, desde que me lembro como pessoa, até aos meus 25 anos existia esta tradição familiar. A minha avó queria toda a gente na mesa, acabava a cabidela e levava-a para a mesa. Era quase um ato religioso. Marcou-me. Entristece-me. Se não fosse um bocadinho preguiçoso também podia juntar a minha família em torno da cabidela. Acho que nunca tinha pensado nisso até agora. É isso que nos torna melhores pessoas.

Alexandre Silva - Memórias, apegos e irritações do chefe de cozinha que sonhou ser fotógrafo de guerra
Manuel Liebaut será o novo chefe residente do restaurante Fogo. créditos: Paulo Barata

Em Abrigada, no concelho de Alenquer, onde viveu a sua infância já era dado a experiências?

A minha mãe diz-me que fui sempre inconformado. Cresci numa família ligada às vinhas e ao campo. Não podia ter tudo. Mas, aquilo que era importante para mim, lutava muito por isso. Por exemplo, quis uma bicicleta para passear e consegui-a. Nunca fui uma pessoa de bens materiais. Talvez há dez anos tenha sido. Felizmente escolhi a mulher certa, que me alertou e me fez ver que, nalgumas coisas, estava muito errado. Mas sim, sempre fui uma pessoa muito inquieta e insatisfeita. Também quis ser músico e fotógrafo.

Quis ou ainda quer?

A fotografia é uma paixão. Gosto muito de fotografar em analógico, em grande formato, em pequeno formato. Ainda faço algumas coisas. Mas agora tenho uma filha de quatro anos e o tempo livre é para ela, para a família. Nunca me deixa triste. Temos o direito de estarmos felizes.

O Alexandre gosta de fotografar o quê?

Gosto muito de fotografia que não carece de preparação prévia, que é espontânea. O fotojornalismo impressiona-me. Quando vim para a cozinha, também fui para fotografia na ETIC. Depois, tive de optar e ganhou a cozinha. Queria ser fotógrafo de guerra. Entretanto, não segui esse sonho. Agora olho para trás e vejo que andar naquilo todos os dias, presenciar o horror, não seria fácil. Por seu turno, a música deu-me a consciência de que em Portugal, em cada área, só três ou quatro conseguem o reconhecimento.

No entanto, na cozinha, o Alexandre está nesse lote que se destacou. Não sente isso?

Sim e a responsabilidade é grande. As camadas mais jovens dizem-me essas coisas. Agora dou aulas na Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa e vejo que é um orgulho para os alunos eu poder ser o professor. Como teres um cachorro que cresce muito e se torna um grande cão, o teu amigo vai lá a casa e diz-te: “que cão grande tu tens aqui”. E tu nunca percebeste [risos]. Mas, há que ter cuidado, o ego mata as pessoas.

A minha mãe diz-me que fui sempre inconformado. Cresci numa família ligada às vinhas e ao campo. Não podia ter tudo. Mas, aquilo que era importante para mim, lutava muito por isso.

Ultimamente parece que a estrela Michelin incomoda alguns chefes de cozinha, inclusivamente, querendo devolvê-la. No seu caso, convive bem com a distinção?

Para nós, receber a estrela foi uma bênção, muito bom para o negócio. Dei um prazo de validade ao Loco de sete anos para concretizar algumas coisas. Esse prazo, depois da estrela, encurtou bastante. Já fiz coisas que tinha previsto mais à frente. Acaba por ser uma montra que ajuda a vender os outros espaços. Sabes porquê? Quando recebi o convite, em 2016, para ir à gala pensei, “há aqui qualquer coisa”. Também tinha tido o inspetor aqui, em março de 2016. Apresentou-se e veio falar comigo. Já tinham estado aqui outras pessoas. Em janeiro esteve cá um grupo de quatro inspetores, onde se incluía este inspetor. Esteve duas horas a falar comigo. Fiquei muito orgulhoso. Pensei que o Loco não tinha os requisitos suficientes para a estrela Michelin. Não tínhamos protocolos, toalhas, mas claro, temos produto muito bom, um fogão excelente.

Lisboa está a mudar com projetos como este. Pensava que o guia Michelin era uma coisa clássica, fechada e não é nada disso. Não era importante para nós se o guia não gostasse do Loco. Eu continuaria a fazer o meu trabalho. No dia em que decidir mudar isto tudo, não estou aí para ver se o guia gosta, ou não gosta. Porque acima de tudo tem de estar aqui a identidade do cozinheiro. Depois, se o cozinheiro não trabalhar em parceria com o produtor, nem sequer é cozinheiro.

alexandre silva
Paulo Barata

Pelo meio ainda há tempo para se lançar na produção de queijos, certo?

Neste momento não estamos a fazer queijo. Chegámos a ter 14 estilos diferentes de queijos. Mas não temos tempo. Há que estar uma pessoa só a trabalhar nos queijos e ter o leite adequado. É frustrante estarmos a lutar por desenvolver a técnica e depois alguém nos diz que não podemos fazer dessa maneira, devido à legislação. Isto quando temos conhecimento técnico e científico para fazemos, provavelmente até mais do que quem elabora a legislação. Isto só porque alguém decide que não podes fazer queijo com leite cru. Então como fazes um queijo de Azeitão?

Alguém tem de ter coragem de dizer as coisas e eu fui muito prejudicado por isso. Tens a obrigação de reclamar face àquilo que vai prejudicar a nossa identidade e cultura. Há todo um património visual que também é nosso. Como irmos a Trás-os-Montes e vermos as vacas a pastar. Ninguém nos pode tirar isso.

Alexandre, como é trabalhar com a sua mulher, a Sara? É comum ouvir-lhe dizer “vai com calma”?

Há sempre o risco de quando as coisas correm menos bem na empresa, isso acabar por ir para casa. Mas temos feito um trabalho importante nesse sentido. Eu e a Sara olhamos para a empresa como ela é, e para a componente familiar noutra dimensão. Como se aqui fossemos colaboradores e não sócios-gerentes. E, felizmente, as coisas têm corrido bem.

Como é cozinhar para a filhota?

[Risos] Ainda ontem cheguei a casa já passava da meia noite e meia e estive a fazer-lhe o almoço para levar para a escola. Fiz um javali, com arroz de aipo. Julgo que quando tinha três anos, a minha filha levou para a escola coelho de caça. Calhando dentro de dois ou três anos não vai gostar, mas agora adora os estufados e os guisados do pai. Acima de tudo, eu e a Sara queremos criar um bom ser humano que abrace causas nobres.

Qual é o ingrediente que está sempre na comida do Alexandre?

Não quero ser mal interpretado, mas é o sal. Respeito muito o sal, porque como dizia o Saravin [Jean Anthelme Brillat-Savarin, político e cozinheiro francês do século XVIII], o sal é o caviar dos pobres. Um alimento que foi muito importante para a história da humanidade. É como o fogo.

Loco

Rua dos Navegantes, n.º53-B, Lisboa

Contactos: tel. 213 951 861

Atualmente, muitos sítios fazem a ficha técnica de um prato e quando chegam ao item sal, apenas escrevem quanto baste. Mas o sal está em todas as casas portuguesas, como o azeite. Há um documentário de Ivan Dias chamado “Os Dias do Sal”. É muito intenso. Passa-se em Castro Marim, no Algarve, e trata das vidas da comunidade naquele lugar.