Rita Nascimento, chefe de pastelaria, autora de livros como “A Vida Secreta dos Gelados Caseiros” e “Sobremesas 5-5-5”, marcou com o seu terceiro livro um novo encontro com os leitores. Fá-lo através da pastelaria que nos é especialmente grata. “Uma Pastelaria em Casa” (Arte Plural Edições), trata com carinho os companheiros dos nossos lanches matutinos e vespertinos, ou mesmo de um serão com sabor a gula. Bolos que cresceram connosco, não só nas montras das pastelarias, mas também dentro das nossas memórias.

A Bola de Berlim, o Bolo de Arroz, o Queque, a Pirâmide, o Palmier, o Mil-folhas, o Jesuíta e Travesseiro. Isto para citar apenas alguns entre as dezenas de bolos que Rita Nascimento nos desafia a produzir em casa. Isto com uma fórmula infalível: Com poucos ingredientes fazemos o milagre da multiplicação e a questão financeira não chega a ser um problema. Uma conversa onde Rita se apresenta igual a si mesma, jovial, otimista e de ideias bem firmadas.

Uma chefe de pastelaria que vê com orgulho os nossos pasteleiros, a doçaria nacional e que, sublinha, não querer engordar ninguém, apenas mimar as nossas memórias gustativas e as mesas lá de casa.

“A pastelaria é muito mais do que um bolo, acarreta uma memória afetiva”

Rita, antes de começarmos a falar de doces gostaria de perceber onde nasceu esta sua veia gulosa. Pego numa frase que usa na nota biográfica que acompanha os seus livros, “Passou a infância a lamber montras de pastelaria”. Tínhamos aí uma chefe pasteleira em potência?

Não literalmente [Risos]. Acho que nessa altura ainda não me passava pela cabeça ser pasteleira, era mesmo só uma gulosa em potência. Não equacionava sequer que a pastelaria fosse uma profissão, era uma coisa inatingível.

E quando é que se dá o clique de fazer desta arte profissão?

Em 2000 fui para os Estados Unidos da América estudar teatro e, nessa altura, naquele país iniciou-se um fenómeno que chegou a Portugal mais tarde, a abertura de escolas nas áreas da cozinha em geral e da pastelaria. Estas áreas começaram a ser vistas como uma arte e surgiram muitos interessados em estudá-las. Eu, estando nos Estados Unidos, estava no centro desta tendência e pensei: `isto do teatro é giro mas também podia ir por aqui`. Depois voltei para Portugal.

Como é que a Rita substanciou essa vontade?

Quando regressei ao nosso país senti necessidade de ir estudar pastelaria. Na época entendia-se a pastelaria como a de bairro, com a Bola de Berlim e o Pastel de Nata. Essa não era a pastelaria que eu me via a fazer no dia-a -dia. Nos Estados Unidos percebi que havia outro tipo de pastelaria, técnicas que eu queria apreender. Procurei, então, uma escola e acabei por ir estudar para Espanha, em Sevilha, numa instituição de hotelaria onde aprofundei pastelaria.

Bolos de arroz
Bolos de arroz
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Quais são os momentos mais marcantes dessa fase de estudo?

Estive três anos em Espanha, depois trabalhei seis meses em Itália num restaurante com três Estrelas Michelin, trabalhei num hotel no Reino Unido e, mais tarde, voltei para Portugal. Volvido algum tempo comecei a trabalhar numa empresa de gelados.

O que nos traz a Rita com o seu livro “Uma Pastelaria em Casa”?

Com "Uma Pastelaria em Casa" quero levar às pessoas o resgate das memórias dos bolos com sabor de verdade, que infelizmente se estão a perder. Nós temos uma pastelaria muito rica, com imensa variedade e história, no entanto a nossa produção de pastelaria é cada vez mais industrializada. A geração mais nova talvez não sinta, mas a minha geração sentiu, porque foi quando começaram a surgir os preparados e a pastelaria industrial. Também surgiu devido à necessidade das pastelarias reduzirem custos, o que significa reduzir pessoal e hoje isso consegue-se fazendo-o com sacos, passamos nas pastelarias de dez para dois pasteleiros.

Também devido à massificação da oferta?

Sim, a pastelaria mais industrializada é comum nas empresas grandes mas também nas mais pequenas e, realmente, houve um ponto de viragem. Quando eu comia um bolo de arroz sabia a bolo de arroz e um queque sabia a queque. Hoje comemos um desses bolos numa pastelaria e não tem o sabor de antigamente. Neste livro o que procuro, sem me afastar muito da matriz dos anteriores, é simplificar ao máximo. Ou seja, que todas as pessoas, com mais ou menos experiência na pastelaria, consigam fazer as receitas. Não é um livro para profissionais. Não resgatei receitas, desenvolvi-as tendo como base a minha memória e simplifiquei-as para que todos conseguissem fazê-las em casa.

Ou seja, quem adquirir esta obra não encontra nem ingredientes, nem utensílios, estranhos a uma cozinha caseira?

Sim, a dada altura eu digo no livro que todos os ingredientes citados, vamos encontra-los no supermercado do bairro. A maior parte destes bolos fazem-se com os ingredientes básicos: açúcar, farinha, manteiga, ovos e pouco mais.

Estas também são receitas económicas?

São, estes ingredientes têm todos preços acessíveis.

Húngaros
Húngaros
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A Rita abre o livro com uma dedicatória pouco usual, aos pasteleiros. Quer falar-nos dela?

Acho que isso tem a ver com o fato de para mim a pastelaria ser muito mais do que um bolo, acarreta uma memória afetiva de eu ir com a minha avó, após as aulas, comprar um bolo. Para mim é importante esta memória e não o comer o bolo. A pastelaria está envolta numa magia e muitas vezes não temos noção que nela estão implicitas as pessoas que trabalharam durante a noite. As pessoas saem de manhã de casa, numa correria com os filhos. Vão à pastelaria para comer um pastel de nata morno e não têm consciência que alguém se levantou às duas horas da manhã e trabalhou muito, para que o pudessem estar a comer. Os bolos que apresento neste meu novo livro são de pastelaria caseira, contudo não quis deixar de mencionar esses profissionais. Pessoas quase invisíveis, com uma vida familiar e social muitas vezes afetada. Trabalhar à noite é duro.

No que respeita a estes bolos de pastelaria geralmente não existe um registo histórico escrito. A Rita fez uma desconstrução para depois construir o bolo?

Sim e foi um processo complicado porque fui buscar as minhas memórias, o que quer dizer que tive de fazer vários testes com os bolos. No passado cada pastelaria tinha a sua receita, não podíamos dizer que existia “a” receita do bolo de arroz. Hoje em dia os bolos são iguais em qualquer pastelaria porque partem todos dos mesmos sacos. O que fiz foram receitas ao meu gosto, mas espero que as pessoas também gostem.

A Rita muitas vezes diz que para si a pastelaria é uma brincadeira. Mas uma brincadeira metódica que exige muito esforço e dedicação?

Digo que é uma brincadeira no sentido em que as receitas não são estáticas e o livro é um pouco a prova disso. Como se fosse uma brincadeira de Legos. Sendo criativos, podemos, com os mesmos elementos, construir várias coisas. Sabendo fazer uma massa folhada, podemos partir para outras receitas. No livro estão cerca de 20 receitas usando a massa folhada de diferentes formas. Isso para mim traduz-se na brincadeira de que falo.

Por isso o livro tem um capítulo introdutório no qual a Rita explica receitas base…

Exacto, e depois no fim do livro, além do índice por ordem alfabética, também quis um índice por elaboração para que as pessoas possam perceber que se lhes sobrar, por exemplo, massa folhada podem fazer outra receita. Rentabilizam receitas e tempo.

Vamos imaginar que não sou pasteleiro de profissão ou de vocação, pego no livro e vou-me iniciar. Qual é a base ou fórmula infalível para alguém que começa?

Primeiro ler a receita do princípio ao fim. Não o fazer é uma falha grande porque a pessoa que lê só o principio não percebe que existe um tempo de espera e isto é muito comum. Um bom exemplo é a massa folhada que tem determinados tempos de espera, se uma pessoa quer fazer cornucópias tem de perceber que não o vai conseguir em meia hora. Depois de perceber todo o conceito é começar.

Este livro explora as memórias da pastelaria nacional, mas também espreita outras geografias, dada também a sua experiência de ter trabalhado no estrangeiro. O que é que a fascina noutras latitudes em termos do bolo?

Se analisarmos as 80 receitas verificamos que eu devo ter usado somente uns dez ingredientes. Ou seja, com coisas tão simples, há muita criatividade que depois também é adaptada à geografia. Por exemplo, nós temos muitos doces à base de gemas porque nos conventos as claras eram usadas para engomar, não é por acaso que no Algarve a base dos doces é a amêndoa, fruto comum na região. Acho interessante e fascinante como a nível geográfico esses doces foram sendo desenvolvidos.

Até porque condições de temperatura e outras condicionam o seu desenvolvimento…

Sim, por exemplo as Brisas do Lis, de Leiria, quando foram para o Brasil foram adaptadas para o quindim, porque aquele território tem muito coco. Mais tarde, o quindim volta a Portugal e encontra o seu antepassado, as Brisas do Lis.

Se tiver de escolher alguns dos bolos que estão no seu livro quais os que salienta?

Não posso deixar de referir o Pão-de-ló Folhado porque é uma receita que engloba várias coisas: massa folhada, pão-de-ló e doces de ovos que são três elementos usados em vários bolos. Em termos de textura acho que também resultou muito bem.

Numa época em que se fala de dietas e alimentação equilibradas a Rita traz-nos algo que é quase proibitivo. Vive bem com esta questão?

Eu gosto de fazer bolos e sou gulosa, mas é claro que não sou apologista de comermos um bolo todos os dias. Muitas vezes questionam-me a propósito das receitas que apresento no meu canal no YouTube. É claro que não passo os dias a comer bolos. Posso, no período de uma semana, comer uma fatia, não como o bolo inteiro. Acho que quando vamos comer devemos fazê-lo bem para ficarmos satisfeitos, e em casa controlamos o que comemos.

Pirâmides
Pirâmides
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No livro as receitas da Rita são importantes mas também tem fotografias que são muito apelativas.

Sou eu que tiro as fotografias. Não sou fotógrafa, mas gosto de passar a minha imagem, gosto de mostrar as fotos como eu gosto de as ver.

Este livro pode ser usado no dia-a-dia mas também em épocas festivas, certo?

Sim, pensei nele de forma a não ser sazonal mas poder ser usado durante todo o ano. Também pensei nas pessoas que estão fora do país e na possibilidade de o poderem usar porque sei que se há algo de que têm saudades é dos nossos bolos, assim podem “matar saudades”.

Regra geral, nós portugueses temos complexo em relação a outras realidades, tendo a Rita estudado e trabalhado fora do país acha que ficamos a dever a outras pastelarias?

Somos complexados, é uma carga cultural, mas não vejo dessa forma em relação à nossa pastelaria. Se há algo de que nos orgulhamos é da nossa pastelaria. Se um estrangeiro perguntar a um português que bolo comer, invariavelmente o nosso conterrâneo vai referir o Pastel de Belém. A nossa pastelaria é muito rica e variada porque nós somos muito criativos. Por exemplo no Alentejo os bolos são feitos à base de banha e de outros ingredientes simples e são maravilhosos. Isto tem muito mais valor do que por exemplo França que tinha recursos e usava manteiga e chocolate.

Quando a Rita está em contato com pessoas de outras nacionalidades e lhes dá a provar um bolo o que dizem eles da nossa pastelaria?

Depende muito. A nossa pastelaria, quando em comparação com outras, acaba por ser muito doce. Tudo o que se relacione com doces de ovos adquire um gosto muito particular. Se eu for ao Japão e comer um doce glutinoso, à partida, provavelmente, também não vou gostar. É um gosto que se adquire, provavelmente um japonês não irá gostar de um doce de ovos. Os espanhóis e italianos que estão mais próximos gostam, mas outros povos estranham. O pastel de nata conquista toda a gente, é universal.

Em sua opinião existe mais algum bolo com potencial para extravasar fronteiras?

Isso é uma coisa engraçada, porque nós damos a provar um bolo a um estrangeiro e é-nos dito que no país existe um bolo parecido. Por exemplo, as nossas farófias aproximam-se das Île Flottante francesas. O Pastel de Nata é o mais icónico porque não há noutro país um bolo semelhante. Há algumas cópias, mas estamos bem encaminhados, com a internacionalização do pastel de nata.

A Rita multiplica a sua atividade como autora de livros, no seu blogue “La Dolce Rita” e canal do Youtube com nome homónimo. Com tudo isto nunca se quebra o fascínio?

Não, procuro sempre novas abordagens. Querendo, todos os dias posso fazer um bolo diferente. Isto fascina-me mais do que estar todo o dia fechada numa pastelaria com a mesma rotina. Por isso respeito tanto as pessoas que fazem os mesmos bolos durante anos e anos.