No passado mês de setembro, e ao longo de quatro dias, um trio de chefs nacionais juntou-se à restauração e aos produtores locais das açorianas ilhas das Flores e do Corvo para contactar de perto com produtos ligados à identidade gastronómica local. Momento para vivenciar a natureza, as tradições regionais e partilhar conhecimento, a iniciativa visou  aprofundar e contribuir para uma maior e melhor oferta gastronómica na região.

Joel Vieira (chef no restaurante Tasquinha Vieira em São Miguel), Alexandre Silva (chef nos restaurantes Loco e Fogo, em Lisboa) e David Jesus (chef no restaurante Seiva, em Leça da Palmeira), regressaram dos Açores como uma bagagem cheia de emotividade, inspiração e espanto face à diversidade que encontraram no Grupo Ocidental dos Açores. A partilha de experiências locais decorreu em formato de encontros com os representantes dos restaurantes inscritos e estabelecimento aderentes à Marca Açores, na ilha das Flores. A iniciativa organizada pela Direção Regional de Empreendedorismo e Competitividade, com o apoio da Visit Azores, terminou com um jantar de prova convívio.

Sobre esta experiência açoriana conversámos com o chef David Jesus.

Como nasce esta sua colaboração neste projeto açoriano?

Convidaram-me para fazer parte deste grupo, para promover a Marca Açores. Como cozinheiro gosto acima de tudo de me ligar às pessoas e aos produtos. E, nada melhor do que ir para uma ilha onde, à partida, estamos limitados à dimensão do território, no sentido de promover tanto as pessoas como o trabalho que ali desempenham, assim como aquilo que produzem. Isso aliciou-me. Não esperava tanto. Aquilo que encontrei foi muito maior do que as minhas expetativas.

Ou seja, aquilo que encontrou foi inversamente proporcional à dimensão das ilhas.

São duas ilhas pequenas, mas, acredite, que aquelas 3700 pessoas que vivem nas Flores e as poucas pessoas que vivem no Corvo, têm ali uma dimensão emocional muito maior do que o espaço do território. Acho que mais do que falarmos também dos produtos e das ilhas, há que falar do espírito de resiliência que encontramos em algumas dessas pessoas e, noutras, quase um conformismo, ao aceitarem as coisas como são. Olham para a barreira geográfica e veem-na maior do que a sua vontade de fazer mais, de fazer acontecer.

Quatro dias, duas ilhas açorianas e um mar de emoções. Flores e Corvo vivem agora no chef David Jesus
Chef Joel Vieira e Alexandre Silva na ilha do Corvo. créditos: Divulgação

Sensibilizaram-no algumas histórias em particular?

Sim, pela negativa e pela positiva.

Vamos a isso, partilhe-as connosco.

Pela negativa foi, por exemplo, irmos à lota. Naquele dia em específico, na lota, o peixe era quase todo para exportação. E o restante peixe, muito pouco, ali vendido foi para consumo local. Logo, tivemos dificuldade em arranjar peixe fresco. Ou seja, se o mar estivesse ao pé era fácil [risos]. É complicado pensarmos nisso, pois embarcações próprias optam por nem vender o pescado, escondendo-o, a pô-lo à venda na lota. Era uma realidade que eu desconhecia. Pela positiva assinalo algo “que me tirou o chão”. No terceiro dia ficámos na freguesia da Lomba, nas Flores. E, aí, estava um grupo de senhoras já com bastante idade que cozinharam, provavelmente, um dos maiores banquetes que já comi na minha vida.

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E o que cozinharam as senhoras presentes no encontro que refere?

Cozinharam carne assada, massa sovada, muitos pratos tradicionais, uma mesa farta, com muita comida; várias sobremesas como arroz-doce, torta de coco, nem lhe consigo dizer tudo o que ali se cozinhou. Cada uma das cozinheiras explicou aquilo que fez. Emocionei-me de verdade. Só conseguia olhar para aquelas mulheres e pensar na minha avó. Neste momento aquelas senhoras vivem em mim. Não se trata apenas de ali estar a História a falar, houve emotividade, um receituário que faz parte daquela cultura e que não passa para fora. Vive naquelas senhoras uma força de vontade enorme. Nós, que tínhamos passado por algumas experiências menos positivas, olhámos para aquelas pessoas que podem estar confortáveis na vida, mas não param, fazem acontecer e acabam por promover a gastronomia. Aquele pequeno banquete foi a maior homenagem que as senhoras podiam ter prestado ao receituário. Isso arrebatou-me. Senti que, de certa forma, me delegaram a missão de conseguir acrescentar valor à gastronomia.

O David também teve outras experiências gastronómicas nas ilhas. Quer relatar-nos algumas delas?

Sim, no primeiro dia fomos jantar a um restaurante de peixe. A senhora estava tão nervosa que começou logo a cantar um fado de amor sofrido [risos]. Mostrou a gratidão, mas ao mesmo tempo a dureza do que é estar ali isolado. Marcou-me o facto de apresentar a realidade dela de forma crua, aberta. A Beta, o nome dessa senhora, por vezes tinha de dar açúcar, leite, farinha a outros moradores, porque o barco não atracava. Então, ela própria encarava o seu restaurante como um ato social para poder ajudar as pessoas. Ao mesmo tempo, também a Beta precisava de apoio. E começámos logo a tentar ajudá-la na cozinha. Dizíamos-lhe: “olhe, nessa situação, se fizermos assim o que acha?” E respondia-nos: “nunca tinha pensado assim”. Foi bonito porque ao longo de todas as nossas experiências nas Flores e no Corvo, conseguimos sempre criar ligações. Quando nós cozinhamos, os locais cozinharam connosco e, no jantar final, todos eles estavam super emocionados.

David Jesus
Chef David Jesus. créditos: Divulgação

Encontraram um receituário tradicional ainda vivo?

Há um exemplo que eu destaco muito desta viagem: íamos perguntando às pessoas sobre o receituário tradicional a preparar o momento seguinte, aquele em que iríamos cozinhar. E essas pessoas foram partilhando. Pareceu-nos um bom ponto de partida. Mas, no que toca às sobremesas, tudo aquilo que era receituário tradicional baseava-se essencialmente em produtos que não eram produzidos na ilha. Então, como é que pode ser regional? Havia que pensar no assunto. No primeiro dia visitámos uma queijaria, no segundo dia fomos visitar um apicultor e lembrei-me: por que não fazer uma tigelada? Podemos usar um pouco de banha, temos leite fresco, temos queijo fresco, tudo daqui. Na verdade, não é receituário cultural nem regional de lá, mas usamos produtos daquele local. Para mim foi o melhor que podia ter feito, ao procurar fundir aquilo que é a minha visão de mundo, sem barreiras, com os produtos daquele território.

Sobre David Jesus

Natural de Setúbal, aos 26 anos já conta com dez anos de experiência em cozinhas profissionais. David Jesus, um jovem apaixonado pela vida, cresceu entre a serra da Arrábida e o Rio Sado, fez escola em alguns dos restaurantes europeus, viveu mundo e hoje tem o seu próprio restaurante em Leça da Palmeira, o Seiva, onde expressa parte da sua visão e identidade num conceito plant-based “cozinha do mundo com um ponto de partida vegetal”.

Os chefs que participaram neste projeto tinham como objetivo apresentar propostas de pratos…

...sim, fizemos um jantar na aldeia da Cuada, nas Flores, só com produtos das ilhas, de forma a promover a marca Açores.

E o David Jesus, quais foram os pratos que preparou?

O menu foi todo pensado por nós. Tínhamos ideias, parávamos, falávamos e desenhávamos ali mesmo o projeto do prato. A nível de elaboração na cozinha dividimos as tarefas e fomos cozinhando. Eu fiz um menu 100% vegan para oito pessoas e depois fizemos um outro menu para 36 pessoas. A sobremesa foi ideia minha.

Quem marcou presença nesse jantar final, a culminar o projeto?

A restauração, habitantes, agricultores, representantes do governo regional. Pessoas que realmente tomam decisões. Foi bonito perceber que ali, num mesmo local, estavam todos a viver um mesmo momento. Se à partida a ideia que os agricultores e os restauradores tinham dessas instituições governamentais era menos positiva, porque sentiam que havia um distanciamento, ali todos estavam para o mesmo fim. Foi um momento unificador e arrebatador. Os presentes naquele jantar perceberem que duas pessoas exteriores à ilha revelaram uma grande vontade de fazer realmente a diferença.

O que se preparou e provou nesse jantar há de ter um trabalho à posteriori, certo?

Dois dias depois de termos regressado ao continente recebemos uma mensagem do proprietário de um dos restaurantes que estave presente no jantar. Disse-nos que tinha feito as nossas receitas. Foi bonito.

açores
Um banquete inesquecível. créditos: Divulgação

O David há pouco falou na questão dos produtos, da sua proteção, da identidade local. Quer desenvolver?

O país tem de ser protegido, tem de ser redirecionado, por exemplo, no sentido de favorecer a pesca. Ali, naquelas ilhas, mais do que a questão da sustentabilidade da pesca, porque é um problema que não se coloca, há que olhar para o problema da venda. No que toca às carnes, há que aproveitar melhor as peças, especialmente as menos nobres, pois são desperdiçadas. O mel é incrível, mas não é produzida quantidade suficiente para exportar. O Araçá, uma fruta que se encontra em abundância nos Açores é incrível. É um produto mágico. O queijo dali não é tão conhecido como o de outras ilhas açorianas, por não haver um volume de leite suficiente para produzir com vista à exportação. Há também que pensar que numa ilha onde existem mais de 50 tons de verde não haja um maior consumo de vegetal.

O David encontrou nas ilhas jovens interessados em apostar na cozinha local?

Não. E acho que isso não é um problema exclusivo das ilhas, isso é um problema que nós enfrentamos a nível nacional. As pessoas olharam para a cozinha e pensaram que era uma oportunidade numa época em que esta se tornou numa moda. Logo perceberam que tinham de trabalhar muito, que tinham de ser realmente bons. E depois começaram a desistir. Na maior parte dos casos, não há amor nem sentido de missão. Essa é a grande dificuldade desta profissão.

Está a pensar introduzir algum dos produtos na sua carta no restaurante Seiva?

Sim, aquela tigelada que referi está na carta do Seiva. Julgo que faz sentido estar presente. Foi um momento especial para mim. Agora, posso pensar naquela sobremesa, fora daquela ilha, mas sabendo que estão ali aquelas pessoas e o produto.